Os efeitos do Desenrola Brasil sobre a inadimplência e a recuperação de crédito foram neutralizados pela perda de capacidade de quitar dívidas da população de baixa renda, impactada pelo comprometimento da renda com apostas esportivas (bets), segundo levantamento da Crediativos, empresa de aquisição e recuperação de crédito da MGC Holding.
O saldo renegociado de débitos vencidos pelo público de menor renda caiu 9% em 2024 na comparação anual, depois de um aumento de quase 17% no ano anterior.
Segundo Eduardo Martins, diretor executivo da Crediativos, o comportamento do devedor na base de dados do estudo − que conta com cerca de 65 milhões de CPFs −, foi fortemente influenciado pelo avanço das bets no País no último ano, com padrões fora das tendências históricas, mesmo num cenário de maior formalização no mercado de trabalho acompanhado de crescimento de renda.
Entre os fatores que explicam esse impacto estão a queda de quase 25% na busca por renegociação; redução do ticket médio dos acordos fechados, que saiu de R$ 716,63 para R$ 590,74; e o recuo do índice de recuperação de crédito dos consumidores que recebem algum tipo de auxílio governamental. A conclusão é que o dinheiro, antes priorizado para o pagamento de dívidas, estava sendo comprometido por despesas não mapeadas no mercado formal.
O temor por fraudes em ambientes digitais e a desinformação também contribuíram para a queda na conversão de acordos.
“Essa degradação da renda coincidentemente bate com o crescimento das bets. Pela forma como elas vêm sendo divulgadas, a população mais vulnerável acaba tentando buscar nessas apostas uma forma de ter dinheiro extra, mas no fim do dia perde seus recursos e não consegue pagar suas dívidas”, afirma o executivo.
Sem efeito
Esse cenário de deterioração contrasta com os objetivos do Desenrola Brasil, que, apesar de seus esforços iniciais, não conseguiu conter a tendência de alta na inadimplência, especialmente entre o público prioritário do programa (pessoas com renda de até dois salários mínimos ou inscritas no CadÚnico).
O programa renegociou R$ 53,07 bilhões em dívidas e levou a uma queda de 8,7% na inadimplência da população de baixa renda, apontou o Ministério da Fazenda. No entanto, nos meses seguintes o combo inflação e juros elevados, aliados à ainda oferta restrita de crédito e ao desvio de parte dos recursos para as apostas esportivas, comprometeram o orçamento das famílias, forçando o aumento da inadimplência e da fatia da renda destinada às dívidas.
Entre julho de 2023 e maio de 2024, o comprometimento de renda das famílias com o Sistema Financeiro Nacional (SFN), segundo o Banco Central, recuou de 27,3% para 25,7%. No fim do ano passado, o indicador avançou para 26,9% e hoje se encontra quase no mesmo patamar que no início da iniciativa. O programa também não conseguiu reverter o avanço do número de inadimplentes no País, que encerrou 2024 com cerca de 2,06 milhões de pessoas a mais do que em 2023, conforme dados do Serasa.
“O efeito do Desenrola, olhando os números antes e depois, foi nulo. O que se viu posteriormente no mercado e no comportamento do devedor foi um agravamento do endividamento, totalmente ao contrário das expectativas de que a melhora no emprego impulsionaria a busca por acordos de negociação”, afirma o diretor-executivo da Crediativos.
Procurado, o Ministério da Fazenda classificou o programa como “ação emergencial” e afirmou que trabalha em uma agenda de reformas para evitar o endividamento e promover a melhoria do ambiente de negócios e redução do custo do crédito.
Renda comprometida trava renegociação
Sem mudanças estruturais relevantes, a restauração da condição de crédito de muitos que participaram do programa foi comprometida.
Foi o caso do auxiliar de logística, Bruno Sales, de 30 anos, que fez duas renegociações de dívidas na esperança de melhorar seu acesso ao crédito. Mas, com o orçamento apertado por outras dívidas contraídas para jogar em apostas esportivas, ele não conseguiu manter os acordos assumidos.
O vício em bets fez Bruno usar as economias que tinha e grande parte do seu salário para sustentar a dependência nos jogos nos últimos dois anos. Ele não só deixou de pagar algumas parcelas do financiamento do imóvel onde mora em Anápolis, como também contraiu dívidas ao aumentar os limites dos cartões de crédito e recorrer a um empréstimo consignado. Hoje, seus débitos somam cerca de R$ 30 mil.
Com a renda comprometida, principalmente por conta dos descontos em folha do consignado, Bruno precisou de ajuda para manter o financiamento e adiou sonhos.
“Antes das bets, eu pagava tudo em dia e até conseguia guardar um pouco de dinheiro. Atualmente, meu salário serve apenas para pagar as contas que são prioridades e renegociar as dívidas aos poucos”, diz.
Apostas já afetam o consumo e o varejo
As famílias de menor renda foram as que mais deixaram as contas em atraso por causa das bets no último ano, saindo de 26% de inadimplentes em janeiro para 29% em dezembro, de acordo com dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC).
Felipe Tavares, economista-chefe da entidade, alerta para o risco da inadimplência entre a população de baixa renda crescer ainda mais neste ano.
Foi identificado um movimento fora do comum ao longo de 2024 no aumento do endividamento de pensionistas do INSS. Essa variação, afirma Tavares, pode estar ligada ao uso de empréstimos destinados para jogos de aposta.
O desvio de renda para apostas reduziu a compra de bens e serviços, causando perda de R$ 103 bilhões no varejo no ano passado. “A grande preocupação é a significativa perda de qualidade de vida das pessoas porque essa mudança causada pelas bets acaba levando à queda do consumo de itens essenciais”.
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