Nas primeiras quintas-feiras de cada mês tenho escrito sobre personalidades controvertidas por sua genialidade. A vida de Brian Douglas Wilson, nascido em 20 de junho de 1942 e falecido recentemente, em 11 de junho de 2025, é um prato cheio para este tipo de histórias. Foi um músico, cantor e compositor americano fundador e líder da banda Beach Boys e considerado um dos maiores músicos do século XX, em meio a uma vida conturbada por alucinações e drogas pesadas. Junto com os seus irmãos Dennis e Carl Wilson, o primo Mike Love e o amigo Alan Jardine, interpretou músicas que fazem parte do manual do rock.
Sua vida foi bastante conturbada. Teve uma infância problemática, repressiva por parte do pai Murry Wilson. Sofria com surras e procurou refúgio na música. Um desses murros o deixou quase surdo do ouvido direito. Ainda bem que o ouvido esquerdo era absoluto. Esses “estímulos” não o afastaram do seu refúgio. Era apaixonado por jazz e The Four Freshmen, enquanto seu irmão mais novo Carl era louco pela guitarra de Chuck Berry. Dennis Wilson, irmão do meio, surfava nas praias californianas e arranhava na bateria no início, enquanto seu primo Mike Love cantava no coral da igreja. Esta seria a espinha dorsal dos Beach Boys.
As primeiras composições de Brian surgiram depois que Dennis descreveu-lhe a sensação de como era pegar ondas (curiosamente, Brian nunca surfou) e falavam apenas de carros, corridas de carros e, de surfe e praia. Depois veio a fase das músicas de garotas. “I Get Around”, a primeira música dos BB’s a atingir o topo das paradas norte-americanas, foi, segundo o próprio Brian, o ponto de transição das composições despretensiosas e adolescentes para um trabalho mais rico harmonicamente, mais complexo e mais artístico, apesar do reconhecimento musical dos primeiros discos da banda.
A maturidade harmônica e musical de Brian Wilson começou a ser notada em músicas como “California Girls”, “Help me Rhonda”, além das canções dos álbuns “Today!” e “Summer Days (and Summer Nights)”. Depois de ouvir o “Rubber Soul”, dos Beatles, Brian decidiu compor um álbum bom do início ao fim, como ele achou que o “Rubber Soul” era. A partir de então, começou um projeto audacioso, que contaria com a participação dos melhores músicos de Los Angeles e com a parceria de Tony Asher pondo letras em algumas de suas canções, além de vocais que mais pareciam de anjos, como era o do Beach Boys.
Lançado em 16 de maio de 1966, “Pet Sounds” é um marco na história da música pop contemporânea. Inovador, está à frente de seu tempo e é, sempre que são feitas listas dos melhores álbuns de todos os tempos, colocado como tal. A revista MOJO, em 1995, classificou “Pet Sounds” como o melhor álbum de todos os tempos. A revista “Rolling Stone”, em 2004, o classificou como o 2ª melhor álbum de todos os tempos, depois do “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles.
Brian concebeu e compôs “Pet Sounds” praticamente sozinho. Não tocou os instrumentos, mas ditou como tudo tinha que soar, partindo de esboços de partituras que distribuía aos músicos. Àquela altura, a banda que era o contraponto americano aos Beatles, vivia o auge com uma música jovem sobre sol e surf. Os integrantes —incluindo irmãos e um primo de Wilson— rodavam o mundo em turnês enquanto ele ficava em casa compondo novas músicas, por ter se afastado dos shows para lidar com distúrbios psicológicos. Quando falou para seu pai que estava com problemas mentais, a resposta foi: “não seja um maricas. Não seja um bebê. Entre lá e crie algumas músicas boas.”
Foi o que Brian fez – gerando texturas sonoras irreproduzíveis. Não é algo que se resume à tecnologia, ainda que ela tenha sido indispensável na confecção do álbum, mas tem a ver com a capacidade criativa da mente perturbada de um gênio antissocial. Há dezenas de sons em cada uma das faixas de “Pet Sounds”, alguns vieram de objetos como latas de refrigerante e buzinas de bicicleta. Isso sem contar os instrumentos praticamente inutilizados na música pop, como theremin, cravo, tímpano e diferentes tipos de piano e de sopros, entre outros.
Wilson se inspirou no estilo de gravação do tipo “parede de som”, criado pelo produtor Phil Spector, que consistia em produzir massas sonoras densas e robustas, com muitos instrumentos tocando uma mesma nota em uníssono. Os baixos, por exemplo, eram gravados com músicos tocando as versões elétrica e acústica do instrumento ao mesmo tempo, gerando graves encorpados.
Ele fez o mesmo com outros instrumentos, como diferentes tipos de piano e teclados tocados juntos ao mesmo tempo. Como notou o pesquisador e produtor musical Charles L. Granata no livro “Wouldn’t It Be Nice: Brian Wilson and the Making of the Beach Boys’ Pet Sounds”, de 2003, as pequenas diferenças de afinação entre os instrumentos tocados de maneira simultânea criaram texturas inatingíveis por meios eletrônicos. Dá para comparar ao funcionamento de um coral, que gera uma massa sonora única ao combinar vozes particulares cantando uma mesma melodia. Nem todo mundo soa perfeitamente afinado, e a particularidade dessas imperfeições contribui para a personalidade da sonoridade resultante, sem que seja possível notar que algo está ligeiramente fora do tom. Wilson fez isso com instrumentos, e não com vozes.
A inventividade também permeia a orquestração do disco. Em vez de aplicar arranjos da música clássica na música pop, Wilson deu uma abordagem do pop à música clássica. É outro caso de influência em Paul McCartney, que à sua maneira tentou inovar na orquestração dentro dos Beatles. Por baixo disso tudo, estão as composições. Saía de cena o surfista descolado, entrava o jovem inseguro que adentrava a vida adulta. Ainda que depois tenham negado, os integrantes do Beach Boy desaprovaram as letras de “Pet Sounds” antes de concordarem em lançar o disco. Eles teriam alegado que o álbum era artístico demais, que não entendiam a poesia, que a temática não combinava com o estilo da banda e não conseguiriam reproduzir aquilo nos shows.
Wilson começava a manifestar uma condição que o acompanharia pelas décadas seguintes, o transtorno esquizoafetivo. Numa entrevista de 2006 à revista americana Ability, ele afirmou que uma semana depois de tomar LSD, na época em que fez “Pet Sounds”, começou a ter alucinações em que ouvia vozes. Também já afirmou que a maconha teve um papel fundamental na criação da obra. “O uso de drogas começou a crescer, porque pensei, ‘se posso criar ‘Pet Sounds’ usando drogas, então posso fazer algo melhor ainda usando drogas.’ Então, fiz ‘Good Vibrations’ sob drogas. Aprendi a funcionar com as drogas, e isso melhorou meu cérebro, o jeito que eu era, me deixava mais conectado com minha sanidade”, ele disse em 2016 ao jornal San Diego Union-Tribune, da Califórnia.
A beleza de “Pet Sounds” é resultado dessa confusão —a inspiração convivendo lado a lado com a insegurança abastecida pelas alucinações. Tudo isso num momento da vida em que Wilson vivia problemas no casamento. “Pet Sounds” é uma das grandes obras do tipo “chegada à maturidade”, mas é sobretudo um disco sobre inadequação. Trata diretamente da ansiedade de não se sentir pertencente a uma determinada época, a uma determinada sociedade, a determinados relacionamentos e, em última análise, a uma determinada existência.
Em fevereiro de 2024, Wilson recebeu o diagnóstico de demência. Ele viveu os últimos anos com um “grave distúrbio neuro cognitivo” que o impedia de cuidar de si. Em 11 de junho de 2025, mês passado, foi anunciada a sua morte aos 82 anos. Sua família não compartilhou nenhum detalhe adicional, incluindo a causa mortis. O ator John Cusack, que interpretou o músico na cinebiografia Love & Mercy, escreveu, “O maestro morreu – o homem era um coração aberto com duas pernas – com um ouvido que escutava os anjos. Quase literalmente. Amor e misericórdia para você e sua família esta noite”. Elton John o homenageou citando-o como uma de suas “maiores influências” e o descreveu como um “gênio musical” e “revolucionário”. Outros músicos e artistas que prestaram homenagem a Wilson incluem Ringo Starr, Bob Dylan, Carole King, Keith Richards, Mick Fleetwood, Ronnie Wood, Nancy Sinatra, Julian Lennon, Sean Ono Lennon, John Cale e Cameron Crowe.
Mas, nada melhor para finalizar este tributo do que ouvir uma parte desta história incrível pela boca do próprio gênio, que lançou em 2018 sua autobiografia “Eu Sou Brian Wilson”. Aqui reproduzo trechos do capítulo inicial do livro:
ABERTURA
Royal Festival Hall, Londres, 2004
Foi difícil e também foi fácil. Na verdade, ambas as descrições são verdadeiras. Meu amigo Danny Hutton, do Three Dog Night, gravou uma música, “Easy to be Hard”, que eu canto para mim mesmo em minha cabeça às vezes: “É fácil ser difícil, é fácil ser frio”. Está frio agora. É o inverno de 2004 em Londres, e estou me preparando para subir ao palco do Royal Festival Hall. Algumas das músicas que eu vou cantar falam a respeito de sol e praia. Não há muito de uma ou de outra dessas coisas em Londres neste momento. Mas há água – o Royal Festival Hall fica diante do rio – e algumas das músicas são sobre isso.
Quando eu cheguei aqui, estava caminhando pelo lugar e ouvi alguém dizer que o auditório foi construído originalmente em 1949, e reformado no outono de 1964. Foi um grande ano, 1964. Foi o ano de tudo. Os Beach Boys fizeram uma turnê mundial. Estivemos na Austrália em janeiro com Roy Orbison e passamos por todos os Estados Unidos em julho. Chamaram aquela turnê de Summer Safari, e nós tocamos com pessoas como Freddy Cannon e The Kingsmen.
Quando não estávamos em turnê, estávamos gravando: “Fun, Fun, Fun” e “The Warmth of the Sun” no começo do ano, “Kiss Me, Baby” no fim do ano, e mais canções do que alguém é capaz de contar entre esses dois extremos. Lançamos quatro discos: três álbuns de estúdio (incluindo um especial de Natal) e um álbum ao vivo. E isso veio nos calcanhares de 1963, um ano quase tão movimentado quanto – três álbuns e viagens constantes em turnê também.
Não é sempre que eu volto a escutar aquelas músicas antigas, mas sempre penso nelas, e tento imaginar o que havia na minha cabeça naquela época. Nem sempre consigo visualizar uma imagem clara. Às vezes são recortes de imagens. É difícil voltar para onde você estava, entende? No decorrer dos anos, toquei músicas novas e músicas antigas. Toquei as duas aqui no Royal Festival Hall – minha banda e eu viemos em 2002 para tocar “Pet Sounds” na integra, e as pessoas adoraram. Foi no verão. Mas esta noite é diferente. Esta noite é o momento que eu venho temendo há meses, e imaginando há anos.
Esta noite, na segunda metade do show, vamos tocar “SMiLE”, o álbum dos Beach Boys que nunca chegou a ser lançado, pela primeira vez. Que diabos eu estava pensando? Por que raios achei que isso seria uma boa ideia? “SMiLE” devia ser a sequência de “Pet Sounds” no meio dos anos 1960. O projeto degringolou por vários motivos. Degringolou por todos os motivos. Algumas das músicas que deviam aparecer no “SMiLE” saíram em outros discos no decorrer dos anos, mas o álbum verdadeiro acabou afundando e demorou décadas para voltar à superfície. Eu finalmente passei a dar atenção a ele novamente e o concluí. Aos sessenta e poucos anos, fiz o que não consegui fazer quando tinha vinte e poucos. Foi isso que me trouxe a Londres desta vez.
Estou sentado na plateia do teatro.
Todos estão se preparando. O que me trouxe aqui para Londres? É difícil manter uma linha coesa de pensamento. Há tantas pessoas indo de um lado para o outro, muitos músicos. Eu os ouço afinando seus instrumentos ou trocando acordes, mas também os ouço conversando: tanto os músicos daqui quanto outros músicos do passado. Ouço Chuck Berry, que foi um dos primeiros artistas a transformar o boogie-woogie em rock n’ roll. O que Chuck pensaria se visse todos esses violinos, violoncelos e instrumentos de sopro? Provavelmente passaria direto por eles e subiria ao palco com uma banda que contratou assim que chegou à cidade. Ouço Phil Spector, que fez todos aqueles discos maravilhosos nos anos 1950 e no começo dos anos 1960. A voz de Phil é assustadora, sempre me desafiando, sempre me lembrando de que ele surgiu primeiro. Wilson, eu o ouço dizer dentro da minha cabeça, você nunca vai conseguir criar nada melhor do que ‘You’ve Lost that Lovin’ Feeling’ ou ‘Be My Baby’, então nem tente. No entanto, talvez ele queira que eu tente. As coisas nunca são simples com Phil, especialmente quando ele está na minha cabeça. Simples é algo que ele jamais foi. As pessoas dizem que demos o nome de “Pet Sounds” ao nosso álbum, em parte, como um tributo a ele. É só dar uma olhada nas iniciais. Ouço também o meu pai na minha cabeça. Sua voz é mais alta do que as outras. “Qual é o problema, companheiro? Você tem coragem? Tudo isso é por sua causa? Por que tantos músicos? Rock n’ roll é duas guitarras, um baixo e bateria. Qualquer coisa além disso é só para alimentar o seu ego”.
Quando ouço essas vozes, tento afastá-las. Estou tentando sentir a sala e pensando em como as músicas vão ganhar vida aqui dentro. E também estou tentando sentir onde eu me encaixo em tudo isso… Há outras vozes também, junto com Chuck Berry, Phil Spector e o meu pai. As outras vozes são piores. Estão dizendo coisas horríveis sobre a minha música.
“A sua música não é nada boa, Brian.
Vá trabalhar, Brian. Você está ficando para trás, Brian. Isto é o fim, Brian.
Nós vamos matar você, Brian.”
Durante toda a minha vida eu tentei descobrir uma maneira de lidar com elas. Tentei ignorá-las. Não funcionou. Tentei espantá-las com álcool e drogas. Não funcionou. Tomei todo tipo de medicação, mas, quando eram do tipo errado, o que geralmente ocorria, também não funcionava. Passei por toda espécie de terapia. Algumas foram horríveis e quase me mataram. Algumas foram bonitas e me tornaram mais forte. No fim das contas, tive que aprender a viver com elas. Sabe o que é isso, lutar com essas sensações por todos os dias da sua vida? Espero que não. Mas muitas pessoas sabem, ou conhecem alguém que sabe. Todo mundo que me conhece também conhece alguém que sabe. Muitas pessoas no planeta enfrentam algum tipo de doença mental – foi o que aprendi com o passar dos anos, e isso faz com que eu me sinta menos solitário. É uma parte da minha vida. Não há como evitá-la. Minha história é uma história de música, de família e de amor, mas é uma história de doença mental também.
Lembro-me do que estava pensando: o passado. Ressuscitar SMiLE é tanto o passado quanto o presente. Quando não terminamos o álbum, uma parte de mim também ficou inacabada, sabe como é? Consegue imaginar como é deixar a sua obra-prima trancada em uma gaveta durante quase quarenta anos?
Essa gaveta foi aberta lentamente. Ela se abriu um pouco numa festa de Natal na casa de Scott Bennet, onde toquei “Heroes and Villains” ao piano, e depois umas pouco mais quando David Leaf me disse para tocá-la num show-tributo no Radio City Music Hall. Neste show as minhas músicas foram interpretadas por outras pessoas, como Paul Simon, Billy Joel, Vince Gill e Elton John. Algumas foram grandes sucessos, mas duas delas foram músicas que havíamos gravado para o “SMiLE”, apresentadas da maneira que as imagináramos originalmente. Vince Gill, Jimmy Webb e David Crosby tocaram “Surf’s Up” e a plateia lhes deu – e também à canção – uma longa ovação em pé. Eu não conseguia acreditar naquilo. Estava chocado.
Eu estava sentado em uma banqueta na lateral do palco e David Crosby se aproximou e disse:
– Brian, de onde você tirou esses acordes do caralho? São incríveis!
Eu fiz que não com a cabeça e disse: – Sabe, eu me despedi daquela música há muito tempo.
Em seguida, fui ao palco e toquei “Heroes and Villains” pela primeira vez em mais de quarenta anos. Havia prometido na festa que faria aquilo. A ovação foi gigantesca. O grande George Martin chamou a banda Heart, que tocou “Good Vibrations”. Não consegui acreditar no que ele disse sobre mim, naquele momento e novamente mais tarde:
– Se tivesse que escolher uma pessoa como o gênio vivo da música pop, eu escolheria Brian Wilson… sem “Pet Sounds”, “Sgt. Pepper” jamais aconteceria, foi uma tentativa de igualar “Pet Sounds”.
O produtor dos Beatles disse aquilo a meu respeito; era difícil até mesmo de imaginar. Fiquei muito honrado.
Estou sentado aqui na plateia do teatro, meditando, mas sem estar realmente meditando. Percebo todas as pessoas indo de um lado a outro. Algumas delas querem parar e me lembrar de como o espetáculo desta noite irá acontecer. Começaremos com um programa acústico, depois tocaremos alguns materiais dos meus álbuns solos, seguidos por alguns dos primeiros sucessos dos Beach Boys e algumas canções do Pet Sounds. Em seguida, faremos um intervalo, e voltaremos com o momento pelo qual todos estão esperando: “SMiLE”, finalmente.
Alguém para perto de mim e limpa a garganta. Ergo os olhos. É Jerry Weiss, que é meu assistente de turnê há anos.
– Ei, Brian – diz ele. – O teatro está abrindo as portas agora. Vamos para os bastidores Obrigado – eu respondo. – Onde está Melinda?
Melinda é minha esposa.
– Está no seu camarim. Vamos até lá.
Em vez disso, porém, eu quero ir até o camarim da banda. É o que se deve fazer antes de um show, pelo menos depois de tentar encontrar a vibe do auditório.
Você tem que ficar com os músicos e conversar sobre as coisas que estão prestes a fazer. Pergunto a Jerry onde fica o camarim da banda e ele parece ficar decepcionado por um segundo, mas me leva até lá mesmo assim.
Darian é o primeiro que vejo. -Oi – eu cumprimento. – Importa-se se eu me sentar aqui com vocês por alguns minutos?
– É claro que não. Como está se sentindo? Está pronto?
– Estou pronto – eu digo, mas, como ele me perguntou, eu também lhe conto a verdade. Estou um pouco assustado e nervoso. Você acha que as pessoas vão gostar?
– Mais do que gostar. Elas vão amar. Você não vai acreditar no quanto. E depois…
Darian foi para o outro lado da sala agora, e eu não consigo ouvi-lo direito. Sou quase completamente surdo do ouvido direito. É assim desde que eu era criança. Um músico profissional que não consegue ouvir em um dos lados da cabeça? É engraçado, mas não é. No decorrer dos anos eu aprendi a fazer isso funcionar no estúdio, mas é mais difícil no palco, onde você tem que saber tudo que está acontecendo à sua volta.
É difícil manter a afinação quando você não consegue ouvir tudo que está sendo tocado. O som lá em cima pode ser esmagador, e tenho somente um retorno de áudio à minha esquerda. Tem que estar posicionado perfeitamente, senão tudo que consigo ouvir é ruído. E, é claro, há aquelas vozes na minha cabeça. Às vezes elas sobem comigo ao palco. Às vezes, no meio de alguma canção, eu perco a concentração porque elas estão ganhando força. Eu sempre consigo superá-las, mas nunca tenho certeza de que vou conseguir fazer isso da próxima vez.
Estamos a dez minutos do início do show. Jerry me diz que há muitas pessoas que eu conheço na plateia esta noite. Pergunto onde elas estão sentadas. Quero poder vê-las do palco. Isso me ajuda com o nervosismo: saber que a plateia não é uma onda enorme, mas muitos rostos que eu já conheço. Melinda está sentada no centro, bem à minha frente. Vou poder olhar direto em frente, vê-la e sentir o seu apoio. Jean Sievers, a minha empresária, está logo ao lado dela; ela me ajudou a chegar aqui também. Van Dyke Parks, que trabalhou no “SMiLE” comigo, escrevendo as letras, também está bem na frente com a sua esposa Sally. Roger Daltrey chegou cedo ao teatro e veio até os bastidores para dizer um alô. Wix e Abe, da banda de Paul McCartney, estão lá embaixo.
George Martin está lá embaixo. Estou pensando em todos os seus rostos e tentando não deixar que o medo de subir ao palco me domine. Ele cresce e depois recua. Se eu me acostumar ao ritmo, vou conseguir compreendê-lo melhor. Alguém diz algo que não consigo entender direito à minha direita, e me viro para que a minha orelha boa consiga captar o som.
– Hora de ir – diz a voz. – Hora de ir.
As luzes ficam mais suaves e eu ouço o som da plateia ganhar força.
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