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29/03/2024



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‘Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades’: Crise existencial, psicodelia e jornalismo

 ‘Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades’: Crise existencial, psicodelia e jornalismo

A coluna desta semana é dedicada a quem está afim de ver um filme diferentão. Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades (2022, disponível na Netflix) parece estranho até para quem já está acosumado com o estilo do diretor, o mexicano Alejandro González Iñarritu. Com a prateleira cheia de prêmios desde o seu primeiro longa, o cineasta não teve medo de arriscar mais uma vez. Agora, o tom autobiográfico – afinal, Inãrritu fez sua carreira sem se preocupar com as fronteiras e se tornou um queridinho de Hollywood – se mistura com o humor nonsense para contar a história de um jornalista mexicano que ganhou fama nos Estados Unidos e passa por uma crise de identidade (e de meia idade). Além de ganhar o espectador pelo roteiro instigante e fora de ordem cronológica, a película é uma experiência visual surrealista, chegando a receber uma indicação ao Oscar de Melhor Fotografia (ok, perdeu para Nada de Novo no Front, mas valeu a indicação).

 

Silverio (Daniel Giménez Cacho) é um jornalista e diretor de documentários mexicano que migrou para os Estados Unidos, onde consolidou sua carreira. Prestes a receber um prêmio internacional de jornalismo, ele volta ao México, onde é obrigado a encarar seu passado e o passado do seu país. Quando suas memórias começam a invadir seus dias, Silverio, cada vez mais melancólico, percebe como não se enxerga mais em sua terra natal e em si mesmo. Em terras mexicanas, ele olha para todos os lados e não consegue se identificar com mais nada. Suas relações familiares estão distantes – sua filha mais velha vive em outra cidade, seu filho mais novo prefere o inglês ao espanhol e não teve muita atenção do pai na infância, e sua esposa ainda sofre por um aborto de anos atrás. O jornalista então começa a questionar a si mesmo, suas escolhas e a legitimidade de seu sucesso. Paremos por aqui para não dar spoilers.

 

 

O filme desafia o espectador. É daqueles que te fazem ficar parado na frente da TV em silêncio e encarando a tela com os créditos subindo no final, só tentando processar o que acabou de assistir. Mais interessante que a narrativa em si, são as escolhas do roteirista, Nicolás Giacobone. O argentino também assinou as produções de Iñarritu Birdman (2015) e Biutiful (2010). A mistura de linhas temporais e entre memórias e acontecimentos e o que é real e surreal – como já diz o título – dão um toque de dinâmica e ritmo que um filme com um tema tão denso precisa. Além disso, os diálogos, carregados de metáforas e ironias, impulsionam a história de forma muito inteligente.

 

O destaque vai para a cena em que Silverio encontra o colonizador espanhol Hernán Cortés em uma pilha de cadáveres de indígenas. Cortés, que se autointitula o primeiro mexicano, escuta do jornalista, que começa a perceber a ironia da situação, que “às vezes, pensamos que somos de vários lugares, quando na verdade não somos de nenhum”. Logo, os indígenas começam a se levantar e descobrimos que o que parecia uma alucinação de Silverio, na verdade, é um set de filmagem. Quebra de expectativa total.

 

Bardo segue nessa mesma lógica por 159 min. É cheio de exageros, que chegam a ser cômicos, como uma das cenas de abertura no hospital que retrata um “parto ao contrário”. As produções de produções sempre tiveram uma pegada experimental. Desde seu filme de estreia, Amores Perros (2000), que ganhou o Oscar de Melhor Filme Internacional, já é possível perceber a quebra da linha narrativa tradicional – três histórias se cruzam a partir de um acidente de trânsito na Cidade do México. A mesma lógica é seguida nas suas produções seguintes, 21 Gramas (2003) e Babel (2006), que foram gravados em vários países e fecham a famosa Trilogia do Caos, baseada na teoria do efeito borboleta. Em suas Falsas Crônicas de Algumas Verdades, os estímulos visuais e sonoros criam uma atmosfera psicodélica da qual não é possível sair. Não é daqueles filmes que você pode bancar o espertão e descobrir ainda no meio o que o diretor queria dizer. Não é daqueles que tudo se resolve simplesmente com “era tudo um sonho”.

 

Iñarritu, assim como outros diretores mexicanos como Guillermo Del Toro e Alfonso Cuarón, passaram a frequentar os tapetes vermelhos de Los Angeles e a fazer parte do cenário estadunidense das superproduções de cinema. É por esse motivo que seu novo filme celebra o retorno às raízes, mas sem antes questionar se isso é possível. Silverio, que produz um documentário sobre a situação de imigrantes atravessando o deserto e os exibe para a elite de Los Angeles em uma sala de cinema. É nesse momento em que ele se pergunta: Será que me vendi? Será que não me tornei apenas um instrumento na mão da indústria americana? É aí que fica claro o porquê da decisão de colocar um jornalista mexicano como protagonista. Autocrítica corajosa do diretor. É por essas e outras que Bardo marca a evolução do cinema de Iñárritu, com um tom maduro, mas ao mesmo tempo mais permissivo. Filmaço.

 

 

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