O papel do pediatra vai além do cuidado clínico: ele é um guia essencial para ajudar os pais na criação dos filhos. É um médico que atua na prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças, mas também orienta os pais sobre vacinação, alimentação, sono, comportamento e outros aspectos fundamentais da infância.
É o pediatra quem monitora os marcos mais importantes do desenvolvimento global da criança, seja por meio de informações baseadas em evidências ou fornecendo apoio emocional aos pais.
Diante de uma relação tão estreita entre médico e família, o Estadão conversou com seis pediatras para saber o que eles aprenderam depois de terem filhos e como a maternidade ou paternidade impactou seu trabalho. Veja a seguir o depoimento de cada um.
Ana Cristina Zöllner é pediatra desde 1992 e mãe da Ana Carolina, de 32 anos
Ana Cristina, de 59 anos, é 1ª secretária da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e presidente do Departamento Científico de Bioética. Também atua na diretoria da Sociedade de Pediatria do Estado de São Paulo (SPSP). É professora de Ética na Universidade Santo Amaro, onde coordena a Comissão de Residência Médica.
Quando me tornei mãe, vivi um verdadeiro choque de realidade. Eu vinha de uma formação médica bastante estruturada, marcada por protocolos rígidos e uma abordagem pedagógica muito técnica. Engravidei cerca de um ano e meio após concluir a residência médica e, naturalmente, carregava comigo todos aqueles ensinamentos formais, acreditando que minha filha seguiria as orientações dos grandes mestres da pediatria, como se fosse um manual.
Mas logo percebi o quanto a prática é diferente da teoria. Nada saiu como nos livros. A rotina que se estabeleceu foi, na verdade, conduzida por ela – foi minha filha quem me ensinou como lidar com a amamentação, com o sono, com a alimentação e até mesmo com a organização do meu próprio dia. E esse aprendizado continuou ao longo do crescimento dela, chegando até a adolescência.
Um dos momentos mais difíceis para mim foi a amamentação. Eu tinha plena convicção, como médica, da importância do aleitamento materno. Mas, na prática, vivi uma mastite severa, que me obrigou a fazer várias adaptações e um tratamento para conseguir continuar amamentando. Mesmo assim, não consegui atingir a qualidade que eu esperava. Foi um momento de muito conflito interno – me sentia como se tivesse falhado. Só consegui seguir em frente com o apoio fundamental do pediatra da minha filha e do meu obstetra.
Essas situações nos mostram como a realidade é diferente da teoria. Entendi, na pele, a dor e a frustração que tantas mães sentem quando precisam interromper ou adaptar a amamentação por motivos que estão fora do nosso controle.
A maternidade me ensinou que os protocolos são importantes, sim – eles servem como faróis que iluminam o caminho. Mas a direção real a gente descobre no dia a dia, com amor, escuta e conexão com nossos filhos.
Essa experiência transformou profundamente a forma como atuo como médica. Antes, muitas vezes, ao atender uma mãe, eu interpretava sua resistência às orientações como falta de vontade ou colaboração. Hoje entendo que, na verdade, ela está tentando encontrar o melhor caminho para cuidar do seu filho, conciliando o que a ciência diz com o que a intuição e a realidade impõem. Quando ouvimos de verdade o coração dessa mãe, conseguimos adaptar os protocolos de forma mais humana e, ainda assim, científica.
Daniel Becker é pediatra há 42 anos e pai da Ana, de 30 anos, e do Ilan, de 27
Daniel, de 66 anos, é pediatra, sanitarista, palestrante e escritor. Ativista pela infância, saúde coletiva e meio ambiente, foi o primeiro médico brasileiro a trabalhar na organização Médicos sem Fronteiras, atuando em campos de refugiados na fronteira da Tailândia com o Camboja. É professor aposentado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), cocriador do Programa Saúde da Família e fundador do Centro de Promoção da Saúde (CEDAPS), ONG de referência no cuidado a populações carentes.
Quando me tornei pai, a primeira coisa que aconteceu foi eu concordar, pela primeira vez, com um provérbio que antes me parecia apenas curioso: “Antes de ter filhos, eu tinha três teorias sobre como criá-los. Agora tenho dois filhos e nenhuma teoria”. Isso resume bem o que vivi. A teoria é simples quando vista de fora, mas a prática da paternidade é incrivelmente mais complexa, desafiadora e cheia de nuances.
Um dos primeiros desafios com minha filha foi com a alimentação. Aos 18 meses, ela simplesmente parou de comer quase tudo. E isso me desesperava. Como médico, eu teorizava que ela ia adoecer, ficar desnutrida, que estava tudo errado. Mas nada disso aconteceu. Ela cresceu saudável, mesmo comendo muito pouco durante toda a infância. E só foi começar a comer melhor anos depois – com o primeiro namorado, com a sogra. Foi aí que eu aprendi uma das lições mais valiosas da paternidade: quando não estiver dando conta, terceirize.
Pai e mãe não precisam (e frequentemente nem conseguem) dar conta de tudo sozinhos. Muitas vezes, alguém de fora — um avô, uma avó, uma professora, uma babá, um cuidador — consegue ajudar a criança de forma mais eficaz justamente porque tem um pouco mais de distância emocional. E isso é saudável. Nós, pais, somos “angustiados crônicos”. E, quando estamos muito ansiosos com algo, a criança sente. Não é manipulação. É conexão emocional. E isso, às vezes, bloqueia os caminhos para a superação.
Outra coisa: cólica. Por muito tempo eu achava exagero até viver isso com minha filha. Ter uma criança chorando de dor sem parar, sem conseguir consolar, é desesperador. Nunca mais minimizei a dor de um pai ou de uma mãe passando por isso. Aliás, acredito de verdade que a melhor pós-graduação que um pediatra pode fazer é ser pai ou mãe. A prática transforma completamente a maneira como a gente enxerga os pacientes e seus cuidadores. A teoria continua importante, claro, mas a vivência ensina em outra camada, mais profunda.
Como pai, tem um ritual que recomendo para todas as famílias: contar histórias antes de dormir, rir, imaginar, viajar com os livros… Isso constrói um vínculo muito especial. Os momentos de leitura com meus filhos estão entre as melhores lembranças que guardo da paternidade. São memórias que aquecem o coração.
Outro conselho: evite a superproteção. Se tem algo de que me arrependo um pouco foi ter sido permissivo demais com meu segundo filho. Em alguns momentos, fui superprotetor e hoje vejo que ele teria ganhado mais autonomia se eu tivesse estabelecido limites mais firmes. Criança precisa de afeto, mas também de regras claras e firmes.
Aprendi também que criar filhos exige, antes de tudo, aceitar quem eles são. A mãe deles gostaria que eles seguissem a medicina. Nenhum quis. Minha filha se interessou por saúde pública, minha área, mas o meu filho nasceu músico. Tinha música na alma — o avô tocava violão, a avó era pianista. Hoje ele é produtor musical, faz trilhas para filmes e publicidade. E está feliz. Isso é o que importa. Quer ver seu filho feliz? Aceite quem ele é. E o ajude a trilhar o caminho que ele escolher. Tentar moldar uma criança para caber no nosso projeto de vida é um erro que, infelizmente, ainda vejo se repetir.
Daniela Gerent Petry Piotto é pediatra há 20 anos e mãe da Júlia, de 13 anos, e da Laura, de 9
Daniela, de 47 anos, é doutora em reumatologia pediátrica e atua como professora afiliada ao Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), integrando o setor de Reumatologia Pediátrica.
Nenhum livro de pediatria prepara a gente para viver os desafios reais da amamentação e da privação de sono. Hoje, ao atender gestantes, sempre pergunto: “Você tem lido sobre amamentação? Está conseguindo descansar?”. Porque não adianta viajar para o exterior, comprar mil acessórios modernos que talvez nunca usem com seus filhos, se não houver preparo emocional e suporte para os primeiros dias com o bebê.
Depois de tantas noites com um bebê nos braços, no peito, no limite do cansaço, eu entendi: o que a criança mais precisa é de acolhimento, presença e segurança. Uma frase que eu definitivamente abandonei foi: “Criança tem que dormir sozinha, no berço. Não pode dormir mamando”. Porque, sinceramente, tem algo mais bonito e poderoso do que um bebê adormecer no colo, mamando, no aconchego da mãe?
O colo não estraga. O colo acalma, fortalece o vínculo e dá confiança para o bebê explorar o mundo depois. Aprendi que cada família encontra o seu próprio jeito — e tudo bem se esse jeito não estiver nos livros. O que realmente importa é o cuidado verdadeiro, o amor do cotidiano.
Também achei que seria muito difícil deixar de trabalhar porque amo profundamente a minha profissão. Mas, quando me tornei mãe, as prioridades mudaram. O amor, o cuidado, a entrega… tudo ganhou um novo sentido. Descobri que, naquele momento, ser mãe era tudo o que eu precisava e queria ser. E foi mais natural do que eu imaginava.
Hoje respeito profundamente as mães que mudam de carreira para estarem mais presentes, ou que decidem viver a maternidade de forma mais plena, ainda que isso signifique deixar para trás uma profissão. Cada escolha é válida. Cada caminho merece ser acolhido.
E houve um momento em que meu conhecimento médico me salvou. Foi quando fiz o diagnóstico de câncer da minha própria filha, por causa de uma dor na perna. Como mãe, percebi que havia algo errado – ela deixou de brincar, mas não teve febre, não parecia uma dor comum. Como pediatra, soube que era grave. Pedi um hemograma e veio o diagnóstico: leucemia. A Laura tinha 7 anos. Aquele momento mudou tudo. Hoje, acredito que precisei ser pediatra para ser mãe dela. Para estar ao lado dela com clareza, coragem e a força que só o amor aliado ao conhecimento pode proporcionar.
Durante o tratamento, decidi conscientemente deixar de lado o papel de médica. Confiei na equipe de oncologia pediátrica e assumi integralmente o papel de mãe. Entreguei os cuidados a eles e a Deus porque sabia que sozinha eu não daria conta. Foi um exercício profundo de humildade, fé e entrega.
Antes de ser mãe, eu dizia no meu consultório: “É só manter a rotina que tudo se encaixa. Dá para trabalhar, cuidar dos filhos”. Hoje eu digo: “Faça o que for possível. Siga seu coração. Respeite seu tempo”. Ser mãe é um mergulho profundo em um amor sem medidas. E a gente só entende mesmo quando vive – dia após dia, no chão da maternidade real.
Mônica Levi é pediatra há 33 anos e mãe da Laura, de 30 anos, e da Elisa, de 26
Mônica, de 58 anos, é presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) e integrante da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP) e da Sociedad Latinoamericana de Infectologia Pediatrica. Pneumopediatra, contribuiu em publicações como Manual Prático de Imunizações (Editorial Nacional, 2015) e Imunizações (Editora Segmento Farma, 2011).
Minha mãe dizia que tinha medo de eu ser muito rígida com minha filha, mas aconteceu justamente o oposto. Eu era extremamente prática, tinha “mão boa” para procedimentos: punção lombar, coleta de sangue em recém-nascido, tudo isso fazia com segurança. Mas bastou minha filha ter uma inflamação nos olhos, precisar de colírio de nitrato de prata, que eu simplesmente travei. Era a minha filha. A teoria toda parecia longe, quase inútil.
Descobri também que o sono é algo muito individual, que vai muito além das recomendações. E, para mim, o sono foi a parte mais difícil. Minha filha chorou todas as noites, até um ano e três meses. Eu não sabia mais o que fazer. Um dia, exausta, adormeci com ela no colo, na minha cama. Acordamos às nove da noite. Foi aí que percebi: o que ela queria era dormir junto, não queria ficar sozinha e por isso chorava tanto. Ela estava alimentada, não tinha nenhuma manifestação de dor. Desde então, dormiu comigo até os sete anos. Isso, claro, é totalmente contra o que aprendi na residência e, até então, o que eu orientava para as famílias.
Outra coisa que me transformou foi entender o impacto de pequenos problemas na rotina de uma família. Antes, eu não compreendia como uma mãe podia sair de madrugada para um hospital com uma criança com o nariz escorrendo. Achava exagero até eu viver isso. Um nariz entupido vira um caos: a criança não dorme, vomita, não respira direito, e isso gera exaustão, irritação, conflitos entre os pais. A maternidade me fez ver o bebê dentro do contexto familiar, não isolado.
Minha percepção sobre a amamentação também mudou. Eu mesma vivi duas realidades: minha primeira filha mamou até um ano e quatro meses. Já a segunda, só um mês e meio. Eu tentei de tudo: me afastei do trabalho, bebia litros de água com ela no peito… Mas o meu leite simplesmente secou. Foi frustrante. Como estudante, eu achava que isso não existia — e existe, sim. E dói.
Com a chupeta também foi assim: minha filha mais velha largou sozinha, sem crise. A segunda fez da retirada um drama diário. Prometia que ia jogar fora, pisava em cima e cinco minutos depois chorava, urrava querendo de volta. Demorou um ano até conseguirmos tirar. Cada criança é única e por isso precisamos rever esses conceitos tão rígidos da pediatria. Ser mãe foi o que me ajudou a entender isso.
E a verdade é que, por mais maravilhosa que seja minha experiência como mãe, é também um grande desafio. Ter filhos exige abrir mão de muita coisa: da carreira, da rotina, do sono, da liberdade. Hoje eu respeito profundamente quem decide não ter filhos. A maternidade exige entrega — e nem todo mundo deseja ou pode abrir esse espaço na vida. E está tudo certo.
Vilma Francisca Hutim Gondim de Souza é pediatra há 25 anos e mãe da Laiza, de 32 anos
Vilma, de 60 anos, é vice-presidente da Sociedade Paraense de Pediatria (Sopape) e coordenadora estadual do Programa de Reanimação Neonatal da SBP no Pará. Neonatologista, é preceptora da Residência Médica em Pediatria da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará, onde também atua como coordenadora estadual do Método Canguru.
Sou pediatra neonatologista, mas minha formação começou pela psicologia, com ênfase em educação especial. A escolha pela medicina veio como um chamado da minha trajetória – já naquela época, eu sabia que queria trabalhar com crianças. Provavelmente, minha vivência como irmã mais velha de sete filhos, crescendo na zona rural do interior de Goiás, teve forte influência sobre essa escolha. Desde cedo fui envolvida pelos meus pais no cuidado dos irmãos menores. Esse exercício precoce do cuidado materno, ainda na adolescência, moldou tanto minha escolha profissional quanto a forma como vivi e entendi a maternidade mais tarde.
Minha filha Laiza nasceu quando eu ainda estava concluindo o curso de psicologia. Ela nasceu de 36 semanas, por cesariana, após uma distócia que impossibilitou o parto normal — que era minha preferência. Amamentei exclusivamente até os seis meses, sem o uso de chupetas ou mamadeiras, e a introdução alimentar ocorreu de forma tranquila. Acho que minha vivência anterior, ajudando minha mãe, me deu um certo “treino” que facilitou esse período.
Também tive o privilégio de ser acompanhada por professores da faculdade, o que me trouxe segurança e me mostrou como o cuidado pode ser feito de forma respeitosa e acolhedora. Nem toda mãe tem rede de apoio, estrutura emocional ou condições práticas para exercer a maternidade com tranquilidade. E é por isso que acredito tanto no trabalho em equipe: precisamos acolher não só a criança, mas a mãe também. É necessário ter empatia e olhar para a realidade daquela mulher, sem julgamento.
Ser mãe e pediatra me ensinou que a maternidade não é inata – ela é construída. É um processo de aprendizado constante, e cada mulher vivencia de forma única. Não existe receita pronta. O bebê também nos ensina – e muito. A ansiedade, o medo, as comparações podem interferir, e muitas vezes o bebê chora mais, tem mais cólica, não dorme bem.
O que temos no consultório são orientações, apoio e a necessidade de respeitar os limites da mãe, do bebê e do momento. A informação baseada em evidências é fundamental, mas ela sozinha não dá conta da experiência. Cada parto é único, cada bebê tem seu ritmo e cada mãe tem sua própria história.
Mara Lucia Schmitz Ferreira Santos é pediatra há 36 anos e mãe de dois filhos, um de 29 anos e outro de 26
Mara Lucia é neurologista pediátrica. Atua no Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba, como preceptora responsável pela Residência Médica em Neurologia Pediátrica e coordenadora do Ambulatório de Doenças Raras.
Como médica, sempre perguntei às mães quanto tempo elas, os filhos e os companheiros dormem, mas depois que me tornei mãe essa preocupação ganhou uma dimensão diferente. A privação de sono, com o tempo, vai deixando a gente mais irritada, impaciente, nervosa. E isso afeta tudo: o humor, o trabalho, a rotina em casa. Hoje dou mais ênfase a esse ponto nas consultas porque sei o quanto o sono afeta a saúde mental, emocional e física da mãe e da família.
Quando você é mãe, você sente o desespero dos pais, entende o medo real, a urgência. Isso muda tudo.
Aprendi ainda que ser mãe é também duvidar, às vezes enxergar demais, outras vezes de menos. A gente precisa de uma rede de apoio, de um olhar de fora, especialmente em momentos mais difíceis. E me arrependo das vezes em que não pedi ajuda.
Curiosamente, algo que eu achava que seria muito difícil – cuidar de uma criança – se revelou uma das coisas mais simples e bonitas, desde que a gente se permita viver isso. Achei que seria complicado, cansativo, cheio de regras, mas percebi que a criança quer o básico: presença. Quer brincar, estar junto, ouvir uma história, dormir e acordar com você. Quer colo. E isso, quando vivido com entrega, é mais leve do que eu imaginava. Foi uma surpresa positiva da maternidade.
Se eu pudesse dar um conselho hoje, seria: compreenda o seu filho. Esteja presente. Eu sei o quanto isso é desafiador nos dias de hoje. Existe uma cobrança enorme para sermos mães perfeitas, profissionais impecáveis, mulheres fortes. É muita pressão. Mas o tempo com o filho, o olhar atento, a escuta, o vínculo – isso constrói não só a criança, mas também a mãe.
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