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26/04/2024



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Espada no bucho

 Espada no bucho

Bucho, a dobradinha da culinária tradicional brasileira, nada tem a ver
com o feito deste capítulo. Serve apenas para descrever o local em que
o instrumento cutucou o corpo da, como diriam os sanguíneos jornais
daqueles tempos, indigitada vítima.

Estabeleça-se desde logo o local do duelo, havido na Curitiba dos anos
1980, em Santa Felicidade. Com justificada fama, estava lá instalado um
restaurante chamado Costela do Amantino, em que eram servidas porções
generosas da iguaria, a desmanchar na boca dos fregueses como manjares
dignos de paxá.

Constava da lenda urbana ter o bíblico Adão, conhecedor profundo das
virtudes costelares, provado e aprovado com louvor o assado em
epígrafe.

E Amantino, o costeleiro, quem seria? Soube-se depois que se tratava de
um sobrevivente da 2ª Guerra, a recordar como o personagem de Fernando
Brant e Milton Nascimento, em Conversando no Bar, da campanha da
Itália e do tiro, que levou. Ou não.

Hermann Sheffield, amigo meu, trabalhava à época em uma empresa de
publicidade, conhecida também por feitos cívicos, entre as quais dar
feições à Campanha das Diretas Já. Tudo era motivo para que se
comemorasse, eis que o país estava em vias de reencontrar a democracia.

O cenário era perfeito. Na costelaria todos se lambuzariam, a carne era
farta como personagens de Federico Fellini. Os brindes seriam erguidos,
os copos tintilariam. A noite prometia a glória.

Os romances de Capa/Espada mostram que em tais horas surge o mocinho,
libertador da jovem mantida em algum cativeiro insalubre como pena por
seu amor maldito. Eis que ele se materializa no ambiente.

Não na forma de um príncipe encantado, mas na de um office-boy, já
dominado por algumas caipirinhas e estimulado pela porção subversiva
daquela empresa, o pessoal da área criativa.

O herói sobe na mesa em que eram servidas as porções da Eva e se dá
ao direito de pronunciar um discurso. Eram poucas palavras, ainda que de
fundada importância. Do alto daquela pirâmide, ou melhor, da rústica
plataforma, entoa seu grito de guerra:

“Está criado o Partido Socialista Operário dos Offices-boys do
Brasil”.

As batidas das mãos sobre a mesa mambembe fizeram tremer o chão: eram
pequenos aplausos bêbados. Alguns gritaram “apoiado”, outros riram.
Uma cena de pastelão, não fosse a reação do nervoso proprietário do
pedaço. Aos berros, exigiu a derrubada do rapaz, a dizer, sua saída da
napoleônica posição sobre a mesa.

Hermann, homem precavido, nada voltado aos prazeres dionisíacos, tomado
pela indignação dos justos, enfrenta de peito aberto aquele suserano
das costelas.

O agressor recuou de forma estratégica para se colocar atrás do
balcão. Do fundo da churrasqueira, puxou um espeto e desferiu a ameaça
nos intestinos do desarmado Hermann Sheffield.

Bem, vamos concordar: na história da literatura jamais alguém usou
expressão tão tacanha como “desferiu uma ameaça”. Desfere-se
golpes, como se sabe.

O intimorato homem das letras, encurralado entre paredes, nada disse,
nem tempo houve para tanto. O filho do espadachim entrou em ação,
convenceu o pai a devolver o florete às profundezas do fogo e deu por
encerrada a ameaça. Inclusive o festim do office-boy.

Ao pobre Hermann, além de sua parte no repasto, restou a humilhação
de pedir um banheiro. Aqueles do restaurante não serviriam ao
propósito, estavam submersos pela incontinência urinária da
freguesia.. Então, no reservado do próprio soldado das forças
brasileiras, nosso herói sentou aliviado. Sem precisar fazer força,
assistiu à debandada das suas entranhas, apavoradas pela ponta daquele
espeto assassino.

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