Conheci Marcelo Sandmann numa situação meio atípica. Ele estava morando por seis meses no Rio de Janeiro para fazer um curso de pós-doutorado na Universidade Federal Fluminense e eu residia em São Paulo na época, mas estava lançando meu livro de poesia ‘Piada Louca na Cidade Maravilhosa’. O ano era 2015 e fizemos, com meus companheiros do Radiocaos, um evento filmado no Estúdio Hanói, do músico Arnaldo Brandão. O agitador cultural Tavinho Paes convidou poetas cariocas e curitibanos que estavam morando no Rio para fazer um sarau de primeira qualidade. Sandmann estava entre os convidados e leu poemas de impacto como Uma Bala de Borracha na Coxa que se pode ouvir aqui. Conversamos um pouco naquele dia e mal sabíamos que três anos depois estaríamos juntos num projeto musical de que falarei mais adiante.
Marcelo Sandmann tem pelo menos quatro dimensões, fora as que não conheço. Além de poeta com sete livros já lançados, é músico (tecladista e compositor de duas bandas de Curitiba), exerce a crítica literária no blog Nervo Lírico e é professor de Letras na Universidade Federal do Paraná. Em suma, trata-se de um artista inquieto que não se limita a escrever grandes livros de poesia como este ‘Não Cicatriza’ que estamos resenhando aqui. Publicada pela Editora Kotter, com o apoio da Lei de Mecenato da Fundação Cultural de Curitiba, esta obra consolida Marcelo como um dos nomes significativos da poesia brasileira contemporânea.
Quando li o livro pela primeira vez, achei que os poemas tinham sido escritos na pandemia, pela dureza dos temas tratados. Perguntei pra Sandmann: eles foram premonitórios ou a coisa já estava muito feia e ainda não tínhamos percebido? Ele me respondeu: “Os poemas foram escritos entre 2015 e o início de 2019, quando concluí o livro. São bem anteriores à pandemia. Apesar de serem poemas líricos, que tratam sobretudo de questões subjetivas, e não poemas de intervenção política ou social explícita, eles refletem muito do que já estava pairando no ar por aqueles dias no Brasil e no mundo, e veio se intensificar ultimamente”.
Na orelha do livro, o antropólogo Hermano Vianna escreve com propriedade: “É necessário alertar: dentro de sua cápsula de delicadeza extrema este livro contém uma violência incandescente. Beleza assustadora. Poesia no duro, na “dura treva””.
O poema que dá título ao livro demonstra bem o que Hermano quis dizer.
NÃO CICATRIZA
Para Norma Müller
Escrever como quem saca
uma faca
e fere de morte
a pessoa amada.
Escrever como quem
pronto socorre,
aninha no colo,
pensa as feridas.
Escrever o que corta,
o que cura,
o que não cicatriza.
Este petardo também pode ser visto, pela voz do autor, num clipoema. É uma outra sacada interessante deste projeto literário: foram produzidos cinco clipoemas dirigidos por Francisco Sandmann e Ferrerístico, dando uma visão mais aprofundada do texto escrito. Sobre isto, Marcelo me disse: “Meu filho, Francisco Sandmann, produziu alguns clipoemas bem bacanas a partir do livro, que foram divulgados por ocasião do lançamento, em outubro de 2021. Ele mexe com cinema, artes plásticas, música. Pensamos em desenvolver esse diálogo entre poesia e vídeo, agora num projeto de maior fôlego, uma espécie de livro em média metragem. Mas ainda vamos amadurecer essa ideia com calma”.
Outra contribuição importante para o ‘Não Cicatriza’ vem do poeta e artista plástico Carlos Dala Stella, que escreve a sua Apresentação. Ele diz que o livro responde à dureza do tempo presente com uma sobriedade igualmente violenta, negando-se no entanto a toda sorte de excessos. É um livro de verbos: sangrar, morder, mastigar… Decorre desta atitude uma lírica de guerra, de contínuo estado de alerta, com o mundo que nos cerca e com o poeta ele mesmo. Isto fica bem explícito no clipoema Palavras na Boca.
Toda violência do livro é abrandada pela presença da água ou da música em poemas em que o poeta atinge uma “quase felicidade”. Os dois temas não são casuais: Sandmann é um exímio nadador e confessa que já escreveu mentalmente alguns poemas numa piscina ou no mar. Outra faceta importante para ele é a música. Como compositor e tecladista participou dos álbuns: Cantos da Palavra (Curitiba: Independente, 1998), com parcerias com Benito Rodriguez, interpretações de Silvia Contursi e produção musical de Paulo Brandão; Conselho do Bom (Curitiba: Independente, 2014), com músicas de Cláudio Menandro para as quais escreveu letras em parceria com Benito Rodriguez; e No Silêncio da Canção (Curitiba: Independente, 2014), primeiro CD do grupo curitibano ZiriGdansk, somente com canções de Sandmann e parceiros. Atualmente, ele continua o trabalho com o ZiriGdansk e entrou na banda Orquestra Sem Fim em 2018. Como escrevi no início desta resenha, este é o projeto musical em que nos reencontramos: junto com Rodrigo Barros (vocal e guitarra), Walmor Douglas (guitarra), Miguel Zattar (guitarra) , Carlos Lins (baixo), Oscar Marinero (bateria), eu (Sérgio Viralobos) nos vocais e Sandmann nos teclados, temos feito shows e vídeos (na época da pandemia) no últimos cinco anos. Veja o vídeo da música Ativei Meu Avatar, composta por Sandmann, Viralobos e Rodrigo Barros.
Por último, perguntei pro Marcelo: “Qual o seu poema preferido do livro? Sempre tem um”. Ele respondeu: “O livro é dedicado a meu pai, Antônio José Sandmann, que foi professor e que me introduziu no mundo da arte e da literatura. Ele faleceu em 2017. Há alguns poemas em que ele está presente. Apesar de não ser um poema muito típico do meu estilo de escrita, gosto especialmente do último, “As Montanhas, O Mar, As Cidades (e uma breve contrição)”. É provavelmente meu poema mais pessoal.”
Por coincidência, ou não, é também meu poema preferido de ‘Não Cicatriza’. Vamos a ele:
AS MONTANHAS, O MAR, AS CIDADES
(E UMA BREVE CONTRIÇÃO)
Você me levou para conhecer as montanhas
Nas manhãs frias de inverno
O caminho era árduo, a lama entrava nos sapatos
As raízes agarravam nossas pernas
Os galhos riscavam o rosto, os braços
Aquela subida íngreme que jamais tinha fim
Era sal e cansaço o que ali nos dizíamos
Eu menino tentando acompanhar a passada
Sem saber se era logro a alegria que você prometia
Mas depois, heróis felizes à luz do meio-dia
Nos ombros do gigante que havíamos prostrado
Contemplávamos o horizonte extasiados
E nosso prazer ainda mais se avivava
Na água fresca que bebíamos do cantil
Você me levou para conhecer o mar
Nos dias mais quentes do ano
O sol lambendo firme nossas costas
Caminhávamos dezenas de quilômetros
Na areia dura, na areia mole da praia
Molhando os pés, o rosto, as mãos
Você me contava coisas que eu jamais saberia
Você que falava tão pouco, tão pouco quanto eu
Depois fazíamos o caminho de volta
Até o guarda-sol, que era aceno e limite
E então corríamos em direção às águas
Penetrando as ondas, devassando as águas
Livres e felizes eu e você
Livres e felizes no corpo do mar
Você me levou para conhecer as cidades
De outros estados, de outros países
Longes Alemanhas, misteriosas Minas Gerais
E tantas e tantas e tantas mais
Em cada cidade sempre uma igreja
As muitas igrejas que nós adentramos
Circunspectos, reverentes, mirando os vitrais
As colunas, as abóbodas, o Cristo, os santos
Sempre um santo a quem acender uma vela
A oração sincera no genuflexório
O sinal da cruz na entrada e na saída
E depois as praças, as ruas palmilhadas
E o lanche que a fome fazia banquete
E o desejo de conquistar o mundo
*
Você me levou para conhecer o mundo
E eu, perdido nesse mesmo mundo
Vez ou outra venho visitar você
Da dura treva da velhice sem memória
Você me olha e não me reconhece
Ou mal me conhece, mas eu conheço você
“Filho, por que me abandonaste?”
Poderia dizer, não diz, jamais irá dizer
E a essa pergunta que por você eu me faço
Dolorosamente eu me faço
Insuportavelmente eu me faço
Eu calo a resposta aqui neste poema
Este poema que você não vai ler
Este poema que eu não quero escrever
1 Comentário
Muito bom!!!!
Queria conhecer mais.