Dando continuidade à publicação do poemas do projeto Doze Trabalhos de Hércules, produzido por Samuel Lago e Rodrigo Barros para o programa radiofônico Radiocaos (ver aqui), hoje temos “Aves do Estínfalo” de Antonio Thadeu Wojciechowski. Veja aqui a leitura de Thadeu para o poema.
“Essa chama que brilha além da mente
revelará o caminho e o que fazer!”
Hércules diz, para em si mesmo crer
e dizimar o caos e as trevas entre
pensamentos, remorsos e matanças,
que sufocam seu ser com as lembranças.
Noite escura, no céu afrodisíaco,
estrelado, minguante, a lua risca
uma vírgula e seu olhar nem pisca.
“Doze signos, sou nada no Zodíaco…”
Repete várias vezes e adormece,
ao lado da fogueira que o aquece.
Acorda com o sol a pino, suando
sob a pele de leão, completamente
febril, desorientado. O que sente
deixa-o sem saber onde, como ou quando
tudo começou e por que está ali.
Hera uma vez e mais outra o seu álibi.
No sangue de sua esposa e de seus filhos,
nas serpentes do berço… Era Hera,
a mãe de todos os seus males sobre a Terra.
Um frêmito de luz dança em seus cílios
e um arrepio percorre sua espinha.
Hércules ergue-se e, feroz, caminha.
Montanhas íngremes, vales, trovões,
abismos sem fim, neve, tempestade,
monstros soltos por toda a eternidade…
Com a força de mil centuriões,
quebra mandíbulas, destrói obstáculos,
imagina esmagar Hera e seus tentáculos.
“Ódio! Ódio sagrado! Imortal!”
Louco, grita aos céus, ferindo os astros.
Está só, do que foi não há mais rastros,
do que é ou será não há sinal.
Mas ouve ainda as palavras de Euristeu:
¬– Aves do Estínfalo? O problema é seu!
“Por Zeus! Onde amarrei a minha clava?!
Serão meus atos peças do destino
ou tudo que serei eu mesmo assino?
O lago a que cheguei meu passo trava
e à sua volta a morte vive em círculos,
como se aqui impedisse novos ciclos”.
Outrora, lobos, com rosnados e uivos,
às tais aves cerraram dente e garra,
levando-as a morrer, meio na marra.
Um fatal engano imaginá-las extintas: espécimes vivos
refugiaram-se em longínquas serras,
onde a fartura multiplicou as feras.
Séculos se passaram. De repente,
não mais que de repente, estão de volta,
levando medo, mortes e revolta
à aldeia pobre, simples e inocente.
O terror é completo e ao rei cabe
dar um fim antes que o povoado acabe.
Euristeu é ignorante; mas não burro.
Dar a tarefa a Hércules salvou-o
da ira de Hera e da boca do povo.
Feliz com seu plano, vangloria-se:
– Nem lavo as mãos nem fico sobre o muro,
só tiro o meu da reta e faço a festa.
Ninguém sai vivo daquela floresta!
Euristeu vibra com sua própria astúcia.
Hera o mantém em rédea curta e grossa,
e ao menor deslize o mingau engrossa.
– Que destino o meu! Hera e sua súcia
pedem cada vez mais empenho e morte.
Estou lançado à minha própria sorte!
Longe dali, Hércules faz o reconhecimento
centímetro a centímetro da área,
milimetricamente; da calcária
à pantanosa, cada sedimento
ou obstáculo foi devidamente
catalogado e impresso em sua mente.
“A voz do povo é a voz de Zeus”,
pensou quando exaurido entrou na aldeia.
Ávido por notícias, fez a ceia,
bebeu até sentir-se como um deus.
Daí dormiu cercado de aldeões
ao som de pragas e de maldições.
Ao despertar, sorveu do poço fundo
água fresca, translúcida e beatífica,
então sua natureza pacífica
veio à tona alegrando a todo mundo.
Apagados ressaca e fogo, riu,
riu tanto que algo assim jamais se ouviu.
Mas alegria de pobre dura pouco.
Hércules pede informações completas
e segue ágil por curvas e retas,
louco, muito louco mesmo, ô loco!
Nada o detém nem chuva, sol ou vento,
brandindo a clava, urge seu intento!
Chegando ao pântano grudento estaca,
peso de pesadelo em pés e pernas,
dias escuros, noites sempiternas
com perfume carniça de cloaca.
Areia em ampulheta movediça,
seu corpo afunda em lama enfermiça.
Um tronco retorcido quebra o galho:
metros que parecem ter quilômetros de extensão
são percorridos a fé e oração.
Enfim, uma ilhota lhe serve de agasalho.
Lento passo em câmera sonolenta,
preguiça em movimento que nem tenta.
Do nada, um raio acende uma fogueira!
Em meio a um festival de sombras, Hércules
pensa, mas o que pensa são hipérboles
não são a realidade verdadeira.
“Será Atena que me estende um fio
ou é Iolau que prima pelo tio?”
Arruma o fogo e seca a capa única,
Invulnerável a qualquer ataque.
Distrai-se… e quase tem um piripaque
ao não achar o címbalo na túnica.
Mas ele está firmemente atado ao arco
E à aljava, e não perdido em meio ao charco,
como a princípio pensou.
Hefesto, Deus do Fogo e dos Metais,
jamais o perdoaria se o perdesse,
pois não há nenhum outro como esse,
com o poder de alcançar notas infernais.
E, o que é melhor, forjado em vulcão, com maestria,
pelo bam-bam-bam da siderurgia.
Hércules recebeu-o na partida,
sem saber para que lhe serviria.
– Guarde-o bem e proteja-o, um dia,
nesse címbalo augusto haverá vida!
Disse-lhe mais Hefesto, cabisbaixo:
– O que lhe atingirá não vem de baixo!
Por ser mais feio que bater em velho,
e manco, Hera, ao ver seu rosto, lançara Hefesto morro
abaixo, maldizendo o próprio corpo.
Mas por Tétis salvo, seu evangelho
foi a ourivesaria e a ela deu
os requintes reais com que nasceu.
Claro que entre suas belas obras
o címbalo perfeito se destaca,
mas as joias que a mãe vira-casaca
viu e quer não dá para chamar de sobras.
Hera o engana e o leva ao Olimpo,
onde Hefesto um dia vai tirar tudo a limpo.
A deusa Tétis, que o criou e amou,
foi sua estrela-guia e único norte.
Hera, a mãe, o sentenciara à morte,
mas para Hefesto a história nem bem começou,
esfrega as mãos e diz para si mesmo:
– A vingança tem sempre bons atalhos,
Hércules é um com esses trabalhos!
No front, Hércules, ilhado e recomposto, se prepara:
com sangue da Hidra embebe suas flechas.
Entre os troncos, encontra largas brechas
e, pouco a pouco, mais nada o separa
do campo de batalha. Então, ataca.
Sua clava age como um bate-estaca.
A fúria é tanta que afugenta as três,
que o tinham atacado de emboscada.
Porém, todo esse esforço deu em nada.
Que estratégia usaria desta vez?
As aves pareciam invencíveis!
Que metais usou o incrível ourives?
Em bronze entalhou suas asas; o bico, em ferro,
e as penas voam como flechas vivas.
Hércules fica sem alternativas.
Mas ao tocar no arco ouve um berro
ou som muito pior que o som do inferno,
pois destruía seu ouvido interno.
O címbalo chocara-se a um tronco
ao se soltar do arco por acaso.
Hércules xingou-se por ter feito pouco caso
do que lhe dissera Hefesto.
Mas agiu se preparando para o estrondo:
Ao tampar com argila seus ouvidos,
os seus problemas foram resolvidos.
Então agita firme, rude, forte,
e o som produz um efeito bombástico:
metais derretem moles como plástico,
aves caem no chão sem causa morte.
As que levantam voo e são flechadas
tombam em agonia, envenenadas!
A floresta está viva! Sem as asas
que impediam a luz de entrar em cena,
o Sol, livre, pinta em ouro uma açucena
e em mil pontos se espraia pelas águas.
Pássaros voltam a cantar enfim.
A vida renasce, e um dia assim promete não ter fim!
Aos poucos, aldeões se aproximam vacilantes,
tímidos, como animais em perigo.
Mas ali não há mais nenhum sinal do amigo,
Hércules já vai tarde por terras distantes.
Nunca mais, nunca mais, Aves do Estínfalo,
Tristes, ouvem no vento a voz do címbalo!
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