Recentemente, revisitei o clássico absoluto O Poderoso Chefão (1972, disponível na Netflix) e não pude deixar de pensar: como um filme pode ser tão perfeito? E não digo isso como uma fã deslumbrada. Quando digo “perfeito” me refiro a como tudo se encaixa tão bem na tela, como o ritmo da narrativa é tão trabalhado e como o roteiro se materializa tão bem através das atuações, dos cenários e da trilha sonora. Então comecei a imaginar (e pesquisar loucamente) sobre como foi a produção.
Quando pensamos em O Poderoso Chefão várias coisas vem à mente: um dos maiores filmes da história, o longa que acumulou dez indicações e três estatuetas do Oscar, o definidor do gênero de máfia, e por aí vai. Mas é difícil de se acreditar que, na verdade, ele é resultado de um processo de filmagem caótico, que contou com interferência da máfia, discordâncias intermináveis entre a produtora e o diretor e muito, mas muito improviso. Por isso, a coluna desta semana propõe uma autópsia do filme.
A história você provavelmente já conhece. Baseado no best-seller de Mario Puzo, publicado em 1969, a trama narra o drama da família Corleone, na Nova Iorque pós-Segunda Guerra. Em cenário onde as grandes famílias de mafiosos começam a se envolver com o tráfico de heroína, o patriarca Don Corleone (Marlon Brando) discorda do novo negócio, e precisa brigar para defender seu poder, entre assassinatos e traições envolvendo as Cinco Famílias. Quando Don Corleone é baleado, seu filho mais novo, Michael (Al Pacino) é obrigado a assumir os negócios da família.
O enredo era uma receita para o sucesso. Tanto que, a Paramount Pictures comprou os direitos para a adaptação quando o romance de Puzo ainda era um manuscrito, proposta que o autor aceitou para pagar suas dívidas com jogos de azar – começou bem. Com o desejo de que a produção fosse “o mais italiana possível”, a produtora chegou a oferecer a direção para Sergio Leone, que respondeu com um sonoro “não”. Foi apenas depois de ouvir mais cinco recusas de outros cineastas, que a Paramount chamou Ford Coppola, que topou dirigir o projeto apesar de no começo não ter depositado muita fé na história, que recebeu diversas mudanças. Se a ideia inicial da produtora era fazer um filme ambientado no Kansas dos anos 70 e gravado no estúdio, Coppola tinha outros planos: o longa deveria se passar em Nova Iorque e na Sicília, entre 1945 e 1955, gastando um pouco mais do que os executivos da produtora gostariam.
As divergências não acabaram por aí. Com um processo de escolha do elenco conturbado, até Orson Welles e Elvis Presley (imagine que horror) entraram na cotação para interpretar Don Corleone. Apesar do ótimo trabalho escolhendo os atores para papeis como Sonny Corleone (James Caan), Fredo Corleone (John Cazale) e Kay Adams (Diane Keaton), a contratação de Al Pacino não agradou e Coppola foi até mesmo ameaçado de demissão. Apesar do talento indiscutível, o ator era bem inexperiente. Em entrevista, Al admitiu que quando gravou a famosa cena do casamento na Itália onde precisava falar italiano, dançar uma valsa e sair de carro, não sabia falar a língua, dançar ou dirigir.
Como se não bastasse desagradar a máfia de Hollywood, a produção também desagradou a máfia de verdade. Um dos grandes nomes das Cinco Famílias na vida real, Joe Colombo, atuou através de uma organização ítalo-americana para impedir o uso dos termos “máfia” e “cosa nostra” no longa. Diante de várias ações para atrapalhar o início das filmagens, não restou outra opção para o produtor, Albert S. Ruddy, senão negociar com a liga. As concessões foram tantas que até mesmo o guarda-costas do street-boss Andy Russo ganhou um papel no filme. Lenny Montana interpreta o guarda-costas do próprio Don Corleone, Luca Brasi, e, inclusive, roubou uma câmera do set.
Deixando essas coisinhas de lado, afinal “amigos e negócios: água e azeite”, o jeito Coppola de dirigir já é o suficiente para dizer que a produção de O Poderoso Chefão não foi nada convencional. Até o gatinho que fica no colo de Don Corleone nas cenas iniciais não fazia parte do roteiro. O bichinho foi achado no estúdio e acabou escalado para fazer uma pontinha no filme. O cineasta curtia o improviso, e incentivava que os atores ficassem livres em cena e escolhia usar takes com erros. Para completar, Marlon Brando não decorava suas falas, e deixava bilhetinhos por toda parte com as frases de seu personagem.
Em uma mistura de teoria do caos, armas e cannolis, chegamos à conclusão de que O Poderoso Chefão é perfeito por acidente. Foi um milagre ter saído do jeito que saiu, e o mais importante: sem o Elvis Presley. Promovendo o encontro entre a velha-guarda dos filmes clássicos na pele de Brando e noa geração da American New Wave, com atores como Al Pacino e Robert Duvall (no papel do conselheiro Tom Hagen), o longa inaugurou uma nova fórmula de se fazer thriller policial, à qual o cinema deve muito até hoje. Ah, e para quem também tem muito medo de sequências, eu garanto: vale muito a pena emendar no segundo filme (agora, o terceiro tem a atuação da Sophia Coppola, considerada por muitos mais criminosa até mesmo que o Al Capone. Daí se você quiser ver é por sua conta em risco).
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