Antônio Delfim Netto foi Ministro da Fazenda (1967-1974), da Agricultura (1979) e do Planejamento (1979-1985). Seu recente falecimento (12/08) suscitou diversas homenagens e textos laudatórios. Esta coluna pretende contribuir para o debate sobre sua gestão como Ministro do Planejamento na crítica conjuntura do ano de 1982 que precedeu a moratória da dívida externa brasileira no ano seguinte.
Delfim Netto chegou ao cargo de Ministro do Planejamento em agosto de 1979 em substituição ao recém nomeado Mario Henrique Simonsen. A queda de Simonsen do cargo foi inédita na Ditadura Militar (1964-1985), se constituindo no único caso de troca do titular daquela pasta. Simonsen havia adotado uma política recessiva que visava combater a inflação e o crescimento da dívida. O problema é que ambas as iniciativas estavam em antagonismo com a lógica de legitimação política com base no crescimento econômico adotada pela Ditadura Militar desde o início do período conhecido como o “milagre” da economia brasileira (1969-1979).
Delfim Neto prometeu nada menos do que a reedição de um novo “milagre” econômico, por cujo êxito era considerado responsável. Na verdade, o acelerado crescimento econômico daquele período foi devido ao imenso rearmamento financeiro do Estado, o qual voltou a agir como dinamizador da economia. Este foi um resultado das reformas econômicas legadas pelo governo Castello Branco (1964-1967), por um lado; e, por outro, do prolongado crescimento da economia mundial. A esse respeito ver a coluna “As reformas do governo Castello Branco e seu legado (1964-1966)” disponível aqui (https://hojepr.com/coluna-dennison-reformas-governo-castello-branco-legado/)
O contexto em que Delfim Neto tomou posse no cargo já era marcado pela crise do balanço de pagamentos, resultado da iminência de uma grave recessão mundial que se seguiria ao Segundo Choque do Petróleo (1979). O crescimento econômico ainda era considerável, com uma expansão do PIB de 6,8% naquele ano. A inflação se tornava cada vez maior, chegando a taxa anual de 77%. Mas o pior de tudo era o déficit externo do balanço de pagamentos de US$ 10,5 bi. Mesmo se verificando o ingresso capital estrangeiro no montante de US$ 6,5 bi, continuou a ocorrer a redução das reservas internacionais do país que caíram em US$ 2,9 bi.
A eclosão da Revolução Islâmica no Irã levou a um segundo choque do petróleo (1979), desencadeando uma recessão econômica mundial. Ao mesmo tempo ocorreu uma imensa elevação das taxas de juros para tomada de empréstimos pelos países em desenvolvimento por parte dos bancos internacionais: de 8,7% em 1978 para 17% em 1981. Essas taxas subiriam ainda mais face à moratória mexicana, chilena e a ameaça da Argentina, bem como pela alta dos juros nos EUA. Como resultado ocorreu uma crise do balanço de pagamentos no Brasil levando a um déficit de US$ 3,5 bi. Pela última vez em sua história econômica recente se verificou um alto crescimento do PIB que naquele ano de 1980 se expandiu em 7,2%.
O ano de 1981 se caracterizou pela combinação simultânea e inédita de dois fenômenos: alta inflação e recessão econômica. Havia chegado o tempo da estagflação. A inflação disparou atingindo 110,2% naquele ano. Pela primeira vez na História Econômica do Brasil o PIB se tornou negativo, encolhendo 1,6%. A dívida externa atingiu US$ 61,4 bi o que exigia o pagamento de US$ 7 bi/ano ou 65,6% de todas as receitas obtidas com exportações a títulos de juros e rolagem do débito principal. Como a indústria brasileira seguia sendo intensiva de importações, foi decidido fazer uso das empresas estatais para captar empréstimos internacionais a taxas mais favoráveis e ao mesmo tempo seguir pagando pelas compras externas essenciais.
Em 1982 a crise econômica se aprofundou, mantendo-se ainda num contexto de estagflação. O PIB reagiu moderadamente crescendo 1,4%, mas a inflação seguiu muito alta acumulando 99,7%. A pior de todas as notícias era o aumento do déficit externo para US$ 9 bi. Verificou-se acentuada queda no investimento estrangeiro. Novos empréstimos internacionais foram tomados apenas para pagar juros da dívida externa.
Foi nesse contexto que explodiu a crise da dívida externa dos países latino-americanos. A moratória mexicana foi declarada em agosto de 1982. A dívida externa do México chegava a US$ 86 bilhões, levando aquele país a pagar juros da ordem de US$ 21 bilhões ao ano. Também o Chile declarou moratória, suspendendo temporariamente os pagamentos da sua dívida externa.
A confiança dos credores externos do Brasil na nossa capacidade de seguir pagando os encargos da dívida externa caiu abruptamente. O Brasil em 1982, no contexto conhecido como “setembro negro”, apenas para fechar seu balanço de pagamentos, precisou de um empréstimo adicional de 3 bilhões de dólares, captados junto a bancos oficiais e comerciais.
Este teria sido o momento óbvio para se decretar uma moratória da dívida externa. O custo do pagamento dos juros consumia mais que toda receita obtida com importações e, nesse ritmo, as reservas brasileiras em moeda conversível logo se esgotariam. Se o Brasil ficasse sem reservas se tornaria um dependente da boa vontade dos bancos estrangeiros para seguir rolando a dívida externa e ao mesmo tempo pagar pelas importações das quais não podia prescindir. Nesse cenário, muito desfavorável, seriamos obrigados a aceitar quaisquer imposições de nossos credores. E foi exatamente isso que aconteceu.
A decisão de Delfim Netto de postergar ao máximo a declaração de uma moratória da dívida externa se deveu às eleições de 1982. Estas foram eleições quase gerais, nas quais todos cargos eletivos foram colocados em disputa, menos o de Presidente da República. O partido do governo não desejava disputar eleições sob a pressão de um acordo com os credores internacionais. Assim, Delfim Netto decidiu pelo adiamento de um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) o qual seria anunciado apenas depois das eleições.
O resultado foi desastroso. Quando finalmente foi divulgado o acordo com o FMI em janeiro de 1983 as reservas haviam se reduzido a quase nada, obrigando o governo brasileiro a aceitar todas as imposições de seus credores. O custo político e econômico foi extremamente alto.
A política econômica do Brasil sofreu a imposição da fórmula ortodoxa de ajuste típica do FMI, como pré-condição para avalizar novos empréstimos: redução da emissão de dinheiro, restrição ao crédito, desvalorizações cambiais frequentes, eliminação de subsídios, restrição a aumentos salariais. O objetivo de tais imposições era obter equilíbrio fiscal e favorecer a geração de excedentes exportáveis, indispensáveis para gerar os dólares necessários para pagar os credores externos.
Teve início então a primeira das “décadas perdidas”. Verificou-se a queda do PIB em -5,0%. Teve início a desindustrialização brasileira com a queda de 23% das indústrias de bens de capital, bem como a ampliação da ociosidade da capacidade produtiva que atingiu 50%. O desemprego subsequente provocou acentuada queda dos salários e aumento do subemprego. A estagflação se acentuou com a inflação chegando a 211%. Diante da crise econômica aumentou o estímulo à especulação financeira uma vez que a compra de títulos da dívida pública federal era mais segura e rentável que qualquer investimento produtivo. A economia continuou regredindo com o PIB acusando uma queda de 10% entre 1980 e 1984.
O que se pode concluir é que a condução da política econômica sob Delfim Netto no cargo de Ministro do Planejamento foi desastrosa. Tal constatação, contudo, não encontrou lugar entre as várias falas com que foi saudada sua vida e obra por ocasião de seu falecimento. Trata-se de um indicador a mais da decadência e mediocrização do jornalismo econômico em nosso país.
Dennison de Oliveira é Professor Sênior de História na UFPR e autor de “História do Brasil: política e economia”. Para adquirir clique aqui. ()
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