Dando continuidade à publicação do poemas do projeto Doze Trabalhos de Hércules, produzido por Samuel Lago e Rodrigo Barros para o programa radiofônico Radiocaos (veja aqui), hoje temos “CAVALARIÇAS DE ÁUGIAS” de Roberto Prado.
Veja aqui a leitura de Roberto Prado para o poema.
A nobreza de Micenas cochichava pelos cantos
e o povo espalhava às gargalhadas no mercado
que quando Hércules retornava de suas tarefas
o rei Euristeu corria do trono à latrina, todo borrado.
E o medo mais uma vez soltou o seu intestino
quando o herói trouxe vivo o terrível javali.
Enfiou-se Euristeu em piriri numa ânfora gigante
Em falsete berrou que afastassem o bicho dali.
Hera, sentindo lá das alturas o cheiro nauseabundo
que emanava de seu lamentável campeão,
como deusa que era, fez daquela porcaria adubo
para nutrir a sua mais nova inspiração.
Criou um trabalho diferente de todos os demais
um desafio não de coragem, mas com quádrupla função:
humilhante, ridículo, perigoso e impossível,
daqueles que não apenas mata, mas joga a alma no chão.
Hermes, o mensageiro, transmite a Euristeu
que Hércules deveria em apenas um dia limpar o estrume
das famosas cavalariças de Áugias, rei de toda Élida,
que havia feito de sua depressão um deletério perfume.
Ao receber a missão Hércules achou fácil demais
bastava somente lembrar onde havia deixado a pá
mas ao perceber o sorriso maroto de Euristeu
desconfiou que havia algo mais por detrás.
Hércules sabia que Áugias não era um canastrão,
como Euristeu. Havia sido um dos argonautas,
voluntário da pátria que navegou o mundo com Jasão
enfrentando homens, deuses, feras e feitiçarias.
O que não sabia era que as décadas de poder
haviam corrompido as fibras do herói da nau Argos
fazendo daquele que defendia os mais fracos
um acumulador que dava ao povo dias amargos.
Mais que a justiça, o reino e a família
Áugias amava os magníficos corcéis imortais
que recebeu do Olimpo por ter encarado perigos terríveis
sem vacilar, sem fugir da briga jamais.
Os animais haviam se multiplicado aos milhares
e ocupavam descomunal estrebaria em bando,
mas o hobby do rei não gerava emprego
nem para alguém limpá-las, de vez em quando.
Comendo tudo o que viam pela frente
e não voltando o estrume para os campos
a terra foi ficando cada vez mais doente
enquanto roncava a barriga do povo.
Além de tudo, Áugias virou ladrão de cavalos
pois nas corridas de quadrigas em louvor a Zeus
ao ver animais especiais dizia ao condutor:
“- Largue as rédeas, gostei deles, agora são meus.”
Mas isso Hércules não sabia ao partir para a proeza
calculando que com o rei que ele conheceu
a vida do povo da Élida devia ser uma beleza,
livre dos perigos e com muito teatro e cantoria.
Ao entrar no reino a verdade o escureceu.
O povo estendia a mão a quem passava na estrada,
as lavouras subnutridas, os campos em ruínas
e a raquítica colheita reservada ao cocho da cavalhada.
A produção de esterco era proporcional à gula
daqueles ginetes sadios e potrancas faceiras
e como jamais pegassem qualquer doença
Áugias há trinta anos não esvaziava as cocheiras.
O tempo grudou no chão aquela maçaroca
que os milhares de cascos compactavam fundo
espalhando muito longe um cheiro de chorume
como nunca se viu igual nesse vasto mundo.
Antes de ir ao rei pedir permissão para a tarefa atroz
Hércules visitou o local e sentiu o tamanho da encrenca
Apenas 24 horas? Era tarefa para gerações de heróis
trabalhando em ritmo de pirâmides do Egito.
E o pior: como em tudo que vinha da mente de Hera
o trabalho escondia no fundo uma grande armadilha.
Assim que perfurasse aquele esterco sedimentado
libertaria toneladas de gás venenoso e explosivo.
Prudente, Hércules estudou a área das cavalariças
calculando tudo com seus olhos de teodolito.
Assuntou um pouco rabiscando com a faca na areia
até que levantou dizendo: – Aí é bonito!
Enquanto caminhava para o palácio real
veio-lhe uma ideia de jerico na cachola
talvez causada pelo gás venenoso
ou de muito dar ouvidos à baixa corriola.
Diante do rei Áugias, escondeu sua missão sagrada
e cobrou do monarca comissão para limpar a imundície.
Dez por cento de toda a tropa e nenhum alazão a menos
pediu Hércules mergulhado na própria sandice.
Áugias fez ouvidos de mercador e aceitou de pronto,
pois se Hércules falhasse estaria bem morto
e se por um aborto da natureza triunfasse
não lhe pagaria coisa nenhuma, de qualquer jeito.
Como Áugias, afamado sovina, não regateou,
o santo de Hércules ficou desconfiado
e pediu para o nobre príncipe Fileu
fiar o acordo com o fio do seu bigode.
Para uma suja tarefa, um acordo espúrio,
pois Hércules estava ali a mando de Euristeu
lavando a consciência, recuperando a honra
para ganhar a imortalidade em nome de Zeus.
Sem sentir que a titica lhe havia feito a cabeça
e cobiçando dois prêmios, Hércules pegou no pesado.
Sabia que os rios Alfeu e Peneu estavam a jusante,
três metros acima do nível do excremento empedrado.
Com sua clava abriu uma formidável comporta.
E relembrando o que aprendera de cálculo e tabuada
com o centauro Quíron, lançou os rios ao dique vigarista
tal qual uma criança brincando na enxurrada.
Feito isso, correu ligeiro ao curral gigante
para espantar os corcéis daquele lugar nojento.
E diante da beleza dos que habitavam as baias
o olho cresceu ao lembrar dos seus dez por cento.
Voltou ao monte, rompeu a represa
e a torrente desceu limpando cocheira por cocheira.
Após essa descarga recolocou os rios no curso
com a facilidade de quem fecha uma torneira.
O povo foi chegando, admirado com a cena.
A cavalariça estava resplandecente
e o estrume curtido espalhado por toda a terra
era um tesouro de fertilidade na Élida decadente.
Mas Hércules não parou para os cumprimentos,
foi direto ao palácio do rei fazer o acerto.
Em menos de um dia dera conta do combinado
e agora só faltava a parte melhor: o pagamento.
Áugias esperava felicíssimo com as novidades
ainda mais depois que um fofoqueiro chamado Lepreu
justificou sua intenção de não cumprir o prometido
ao revelar que o trabalho já estava na conta de Euristeu.
Recebeu Hércules com um sorriso até a orelha
e disse: “Nobre Hércules, como paga de serviço tão perfeito,
escolha entre os meus preferidos um corcel de sela
e volte com ele a Micenas prestar contas ao seu rei.”
Hércules segurou a fúria e respondeu de bate pronto:
“Aceito a oferta e é montado na sela desse cavalo
que levarei comigo dez por cento de sua manada
conforme acertamos solenemente nessa mesma sala.”
Áugias perdeu o fôlego de tanto dar risada
e disse que não lembrava de ter feito tal acordo
e que aquilo só poderia ser efeito do chorume
que na mente de Hércules despertou o olho gordo.
Foi quando Fileu, filho do rei, pediu a palavra
e declarou ser testemunha e fiador do tratado.
Áugias, irado, disse que a jura não era válida
pois por aquela tarefa Euristeu já havia pago.
Hércules se despediu, jurando um dia
vir pegar na marra aquilo que era seu.
Áugias, contente, se preparou para a guerra,
não sem antes exilar o honesto filho Fileu.
Ao voltar com aliados tebanos, argivos e árcades
Hércules viu que Áugias era osso duro.
A coragem do ex-argonauta não tinha limites
e as batalhas eram o seu amor mais puro.
Hércules só venceu essa guerra pela traição
rompendo uma trégua em honra a Poseidon
para esmagar com um exército em fúria
os soldados desarmados em pacata procissão.
O heroico cobrador tomou Élis e sem zum-zum-zum,
entregou governo e prisioneiros intactos a Fileu.
Deu os cavalos aos aliados e não aceitou nenhum
por já haver recuperado a sã consciência.
Áugias? Caiu do cavalo, mas morreu de velho.
Fileu? Virou o maior rei e acabou com a miséria.
E Hércules, olhando as plantações cobrindo colinas
viu que não recebe por fora quem quer a vida eterna.
Leia outras colunas Frente Fria aqui.