Esta coluna é a terceira de uma série que não tem o propósito da autorreferência, pois quer graça maior do que quando o professor não se sai bem? O que importa é o humor, a blague, e o professor de Matemática, muitas vezes é o alvo preferencial de chacotas.
Até mesmo entre os caminhoneiros, há aquele que percorre esse Brasilzão rememorando a sua antiga 4ª série, tendo como inscrição no para-choque: “Minha vida é como a Matemática, cheia de problemas.” Mas a bem da verdade, a Matemática é rainha e serva de todas as ciências, porém não admite indiferença ou “mornice”: é têmpera racional da mente ou bicho-papão, é enlevo ou ranger de dentes.
Nesta semana, no dia 14/3 (14 de março), cuja grafia em inglês é 3/14, celebra-se o Dia Mundial do π = 3,14…, o mais notável símbolo matemático o π, é a letra inicial da palavra grega περιφέρεια, que significa a periferia da circunferência. O símbolo foi proposto por William Jones em 1706, e Euler popularizou a notação. Sabemos que o π é um número irracional e é a razão entre o comprimento da circunferência e o seu diâmetro.
Em vista da boa aceitação de uma parte de meus leitores, os presenteio com mais três causos (os anteriores você, querido leitor, encontra disponível no link ao final deste texto, clicando em “aqui”):
Que aula de bosta!
Em décadas passadas, os cursos preparatórios para o vestibular mantinham normalmente aulas aos sábados, em um dos quais, em pleno verão inclemente, as salas estavam lotadas com potentes e barulhentos ventiladores. Neste dia, eu tinha de ministrar aulas pela manhã e também à tarde.
Meu sogro, vindo do Mato Grosso, me intimou: “Ao meio-dia de sábado, vamos comer uma feijoada no Senac”. “Ok”, respondi, “só que tenho aulas às 13h30, inclusive não vou beber nada” (até porque ele sabia que a única concessão que eu fazia ao álcool era a Malzbier — hoje uma esquisitice).
Sentamo-nos à mesa, e o sogrão chamou o garçom:
— Por favor, duas caipiras de vodca!
Tentei argumentar, mas qual nada, e até pensei que apenas uma não iria prejudicar a minha aula. Mas não satisfeito, ele mais uma vez foi incisivo:
— Por favor, garçom, mais duas caipiras!
Gelei e tentei argumentar que não podia. O sogrão tinha fama de “coronel”, mas, sempre brincalhão e espirituoso, deu o seu “conselho”:
— Experimente uma vez na vida, você vai entrar alegre, vai se divertir e os alunos vão amar, ainda mais sendo aulas de Matemática num sábado à tarde.
Sem alternativa e terminado o almoço, saí correndo para dar aula. Ao subir no tablado, percebi que estava levitando, língua enrolada, mas num esforço sobre-humano peguei o giz e no quadro tentei desenhar um sólido geométrico, do qual tinha que deduzir a fórmula do volume e da área. Olhava para a figura, torta, desengonçada, um horror, por maior que fosse o meu esforço. Bateu o sinal do intervalo e, como eram duas aulas geminadas, fui direto ao banheiro mais próximo, que era o dos alunos, onde vários deles lá se encontravam.
Entrei, coloquei minha cabeça debaixo da torneira e fiquei jogando água no rosto, para refrescar, quando um deles entrando gritou:
— Puta que o pariu, que aula de bosta!
A sogra e minha falha semântica
Mais uma de feijoadas: nós, professores de Matemática, fundamos uma associação denominada AMO² — Associação dos Matemáticos Oprimidos e Opressores (oprimidos pelos patrões e opressores dos alunos) — e nos reuníamos uma vez por semestre em algum restaurante.
Certa feita, decidiu-se que iríamos a um cuja feijoada tinha sido premiada como uma das melhores de Curitiba e, ademais, o proprietário havia sido um professor de cursinho.
Então, em meio a tantas histórias e gargalhadas, comentei com os amigos quão delicioso estava aquele prato que nasceu na senzala e que só perdia para a feijoada que minha mulher fazia. E contei um causo que rendeu boas risadas, acontecido com minha sogra, uma mulher bem-humorada, sagaz em suas boas tiradas. Certa feita, eu disse a ela:
— Casei-me com sua filha por causa da feijoada!
E a sogrinha foi rápida no gatilho:
— Ah, não sabia que mudou de nome!
Aqui antiguidade é posto, viu professor novato?
Em 1974, passei no concurso da UFPR para a única vaga de professor da disciplina de Cálculo Diferencial e Integral, realizando um grande sonho de minha vida. Entusiasmado, durante todo o período de férias de verão que antecederam o noviciado no cargo, estudei muito e me preparei para as aulas que ministraria. Eis que, uma semana antes do início do ano letivo, o então chefe do Departamento de Matemática, Prof. Jaime Cardoso, me chamou e foi direto ao ponto: você não mais vai dar aulas de Cálculo e sim de Geometria Analítica e Álgebra Linear.
Uma bomba no meu colo. Refeito, ousei responder a ele que fiz concurso para Cálculo e queria dar aula de Cálculo, pois não gostava das disciplinas que estava me oferecendo e muito menos queria ser assistente do Prof. Barsotti. De pronto, o Prof. Jaime Cardoso, que tinha a alcunha de “Jaime Louco”, me respondeu:
— Aqui no Departamento ninguém quer ser assistente do Barsotti, e eles têm preferência na escolha das aulas. Ou você pega ou chamo o 2º colocado.
O Prof. Barsotti foi a pessoa mais emblemática e temida da história do Centro Politécnico, pelas reprovações elevadíssimas, a ponto de se cunhar uma frase muito repetida: “é mais fácil descobrir a cura para o câncer do que passar por média com o Barsotti.” Além de motejos e muitas lendas sobre sua genialidade, frases ultrajantes contendo o nome dele eram frequentemente encontradas em banheiros e em praticamente todas as carteiras das salas de aula.
Os alunos tinham-no como um cartesiano, essencialmente racional, e havia uma lenda que, quando contava a história dos Três Porquinhos a seus filhos, assim iniciava:
— Era uma vez uma floresta F, que continha um conjunto de três porquinhos {P1, P2, P3}, com P1 > P2 > P3 …
Mal sabia eu que seria, durante 11 anos, assistente dele: preparava aulas até a meia-noite e em finais de semana, muitas vezes renunciando ao bem-bom de um recém-casado. Mas, sendo sincero, a convivência com o ele me levou a admirá-lo, pela sua elevada cultura e sabedoria, tendo sido comigo sempre extremamente acolhedor. Sobre sua mesa de trabalho lia-se uma única frase, em bom latim: Homo sum; humani ninhil a me allenum puto – verso de Terêncio (c. 190 – c. 159 a.C.), comediógrafo romano. Traduzindo: “Homem sou; nada do que é humano reputo alheio a mim.”
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