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Acidente na curva parabólica

26/04/2022

A tendência à velocidade é inerente ao ser humano. Corrijo: a nem todos. Dorival Caymmi foi o mais lento dos brasileiros conhecidos, o que não o desmerece. O bicho preguiça é um símbolo da fauna nacional, embora não represente o andar do brasileiro médio.

 

Estabelecido o pressuposto, grassava no país, décadas passadas, a febre da velocidade. Os do sexo masculino consideravam que sua masculinidade funcionava melhor quanto maiores as rotações por minuto do carro que dirigiam. É como se a virilidade de que dispunham viessem do acelerador. As garotas esperavam mais do que tamanha indigência hormonal.

 

Não se fala aqui de vocações automobilísticas, que essas nos foram muito vitoriosas. Falemos dos exibidos, os pouco dotados de talento. Esses contribuíram – e seguem sua sina – para aumentar as taxas de mortalidade de acidentes de trânsito.

 

No contíguo bairro ao que habitava minha família, localizava-se outro, a congregar a aristocracia local. O Jardim Los Angeles abrigava as famílias dos novos e dos velhos ricos. Suas poucas ruas traziam nomes da política norte-americana, como Abraham Lincoln e John Forster Dulles, que jamais teriam imaginado ver seus nomes nominando ruas de paisagismo inspirado nas bucólicas cidades de seu país, com asfalto perfeito e arborização abundante.

 

Juntemos, então, os ingredientes para o cozido perfeito. Um adolescente de muito ímpeto e nenhuma prática implora a seu pai um reles, simples, mero carrinho de rolimã, sem imaginar o que tal simplório pedido iria incendiar na imaginação paterna.

 

De pronto levantou-se o homem da poltrona. Iniciou ali, na companhia do filho, uma trajetória por madeira – comprou uma tora, que mandou passar no torno, e uma prancha de madeira de lei –, rolamentos em ferros velhos e parafusos nas lojas do ramo.

 

Carpinteiro por hobby, o pai habilidoso construiu um carrinho em que, sob a frente triangular, havia um batente para o eixo não entrar por baixo da prancha. Rolamentos grandes para impulsionar melhor o bólido e eis que, ao fim da tarde de um sábado, o mecânico-chefe liberou o jovem piloto para encarar a parabólica. Montado em sua Ferrari de rolimã e munido de um boné de jóquei, tratou de descer a John Foster Dulles sentindo na cara o vento dos intrépidos.

 

Em meio à ladeira, considerou estar a velocidade acima do imaginado, mesmo momento em que lembrou que sua arataca não possuía freios. O medo chegou tarde demais. O carrinho entrou esgualepado na curva que em nada lembrava a mítica Parabólica de Monza. Menos ainda as curvas de Indianápolis responsáveis por arrebentar o pé de Nelson Piquet.

 

Mas a um intimorato piloto, o perigo é que o move. Com a inclinação da curva ao contrário do que reza a lógica, problema detectado apenas depois que o carrinho já estava derrapando sem controle, o piloto – que seja – foi jogado para o asfalto, enquanto seu bólido se enfiava nas trincheiras de barro que cercavam a pista. (Nota do editor: a confluência das Ruas John Foster Dulles e Abraham Lincoln é formada por uma curva fechada, em descida, não sendo uma pista. Cem metros depois da curva encontra-se a residência da família Boesel, cujo componente de maior popularidade, o ex-piloto, campeão mundial de carros de turismo, Raul Boesel, muitas vezes completou a curva em alta velocidade, sem nunca ter sido jogado às trincheiras de barro).

 

Resgatado o veículo, restou ao ex-futuro Senna de bairro voltar para casa. Um exame solitário no banheiro detectou canelas e coxas com escoriações graves, pretas de asfalto, três dedos da mão direita inutilizáveis, o que não fazia diferença para um sujeito esquerdofrênico, um joelho do tamanho de três mamões, o outro parecendo dois abacates.

 

Seguiria desastrado pela vida, descartadas todas as demais opções.

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