Faça um teste e digite a palavra ANARTE no Santo Google: não aparecerá uma mísera informação sobre este evento cultural que impactou Curitiba como um meteoro desgovernado no início dos anos 1980.
Para desvendar este mistério, a primeira coisa a se fazer é descobrir quem foi Reynaldo Jardim. Filho de um militar negro e de uma descendente de argentinos, ele nasceu numa família humilde de quatro filhos na cidade de São Paulo, no ano de 1926. Só pôde entrar na universidade porque conseguiu uma bolsa na primeira turma de jornalismo da PUC paulistana. A partir daí, começou uma carreira de mais de 60 anos como jornalista e poeta. Seus alvos eram jornais, revistas, suplementos, emissoras de rádio e de televisão. Numa matéria do Correio Braziliense a respeito de sua morte, assim foi descrito: “Parecia aqueles cientistas excêntricos das histórias em quadrinho, dominados por um instinto indomável e furioso de criação, a desferir relâmpagos. A sua loucura era da espécie criadora e lúcida sem a qual as pessoas, as instituições e as nações adoecem de inércia ou inanição. E quem estava por perto também era atingido pelas chispas do poeta, jornalista, artista gráfico, escultor e desenhista morto em 2011, aos 84 anos”.
Sem sombra de dúvida, Jardim é o mais importante jornalista cultural da história da imprensa brasileira. Criou o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil e o jornal O Sol; foi editor dos jornais Correio da Manhã e Última Hora; comandou a revista Senhor; dirigiu a icônica Rádio Mundial, onde inventou/descobriu o Big Boy, sim, o grande disk jockey pioneiro em trazer para nossos dias músicas que estavam começando a despontar como as novas tendências no exterior: funk, soul e rock and roll.
Sua primeira grande sacada foi o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, o mais influente caderno de cultura da história da imprensa brasileira. Em suas páginas floresceram a poesia concreta, o movimento neoconcreto e o cinema novo, movimentos que alcançaram repercussão internacional. De início, Reynaldo fazia um programa de poesia na emissora de rádio do JB e pediu para criar uma coluna na versão do jornal impresso, no espaço de um caderno de receitas gastronômicas. Chegou e logo tomou conta do caderno inteiro dizendo: “Eu sou expansionista, transformei energia sonora em energia gráfica”. Para o suplemento atraiu a seguinte constelação de artistas: Glauber Rocha, Ferreira Gullar, Mário Faustino, Mario Pedrosa, Antonio Houaiss, Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Ligia Clark, entre outros.
Outra criação de Jardim foi O Sol, jornal eternizado na música Sem Lenço Sem Documento, de Caetano Veloso. A proposta era fazer um jornal inovador com gente jovem no explosivo ano de 1967 e tinha como editores Zuenir Ventura, Otto Maria Carpeaux, Carlos Heitor Cony, entre outros. Reynaldo era o editor-chefe. Durou pouco, um pouco mais de seis meses, mas marcou a vida de Ruy Castro, Ziraldo, Henfil, Tetê Moraes. Segundo ela, que dirigiu o documentário O Sol, caminhando contra o vento: “Eu trabalhava na diagramação e era orientada por Reynaldo, uma bomba criativa. Inventava o tempo todo. Era uma explosão de criatividade e de ideias para jovens de pouco mais de 20 anos. Foram meses tão intensos que pareceram décadas”.
Reynaldo Jardim chega à Curitiba
Se você consultar a biografia de Jardim na Wikipédia não ficará sabendo que ele viveu em Curitiba durante 12 anos nas décadas de 1970 e 1980 e que graças ao seu espírito criativo deixou marcas indeléveis na redação de vários jornais, entre eles os extintos Diário do Paraná e Correio de Notícias. Aqui, foi casado com a jornalista Marilu Silveira, sua parceira na criação dos suplementos culturais Anexo, publicado aos domingos no DP, e Polo Cultural, uma produção independente de cultura e arte.
Everton de Oliveira Moraes nos dá um panorama da época em sua tese de Pós-Graduação em História “CORTAR O TECIDO DA HISTÓRIA”: CONDUTAS E IMAGENS DO TEMPO EM PAULO LEMINSKI E LUIZ RETTAMOZO (1975-1980):
“Em 1976, o poeta Reynaldo Jardim desembarcava em Curitiba a convite de uma rede de televisão local – TV Paraná –, que pretendia colocá-lo na coordenação de uma “reforma” gráfica e conceitual da programação da emissora. Jardim, em entrevista concedida mais de dez anos depois, relata que, ao se deparar com a estrutura física e a aparelhagem “ultrapassada” da emissora, acabou desistindo do projeto, sendo convidado, em seguida, para trabalhar no jornal Diário do Paraná, órgão ligado ao mesmo grupo que comandava a TV. A oportunidade que, segundo ele, lhe havia aparecido de surpresa, possibilitou, entre outras coisas, a articulação para a criação de um suplemento cultural, o Anexo. Entre os encontros casuais e aqueles mobilizados por sua rede de contatos, Jardim reuniu uma equipe – entre os quais Paulo Leminski, Luiz Rettamozo, Rogério Dias, Marilu Silveira, Solda, Nelson Padrella, Alice Ruiz, etc. – e criou um ambiente em torno ao qual surgiu uma ideia: fazer de Curitiba um polo cultural, capaz de produzir informação cultural de alta densidade e com alto grau de inovação, de fazer frente a cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, de derrubar as barreiras que impediam de circular livremente fora do âmbito regional.
Reynaldo Jardim, entre outras coisas, pretendia reunir, e de fato reunia, boa parte dos agitadores da arte e da cultura na cidade, abrindo espaço para um pessoal mais criativo, mais novo, dentre os quais suas duas lembranças, na entrevista supracitada, foram justamente Leminski e Rettamozo, um editor de texto do suplemento e outro editor de arte.
Foi em 6 de fevereiro de 1977, numa edição especial do caderno Anexo, que o projeto Polo Cultural foi lançado “oficialmente”, com ares de grandiosidade: o prefeito, o secretário de Cultura e outros administradores ligados a área da cultura foram ouvidos, assim como artistas renomados da cidade e de fora dela, jornalistas, historiadores, críticos de arte, empresários, etc. Todos foram convidados a responder a pergunta: “Como fazer de Curitiba um polo cultural?”. Durante toda a semana o suplemento lançou números com debates a respeito do mesmo tema.
Submetido, também, segundo Jardim, às intervenções e limitações impostas pelos “donos do jornal”, o Anexo passaria por um processo de desgaste que marcaria o seu fim, mas também motivaria a criação de um jornal de cultura independente e alternativo. Um ano após o lançamento da edição especial, Jardim lançaria o jornal Polo Cultural, que surgiu como um desdobramento daquele projeto ao qual o suplemento deu início. A publicação também vinha com a ideia de agregar e divulgar a produção de artistas e críticos locais, propiciando encontros entre eles e o aparecimento de projetos mais organizados. Durou aproximadamente um ano, congregando artistas locais e nacionais, divulgando tendências estrangeiras”.
Na época, o prefeito era Jaime Lerner, com sua gestão urbana revolucionária. Um gênio criativo como Jardim foi muito bem vindo e logo foi nomeado para dirigir o Solar do Barão, que era um polo artístico antes da criação da Fundação Cultural de Curitiba. Do alto deste cargo, no ano de 1981, Reynaldo teve a ideia de criar um movimento denominado ANARTE, cujas apresentações se dariam num circo montado em pleno Largo da Ordem. Antes, ele lançou seu manifesto com pérolas como: “Todas as hierarquias estão mortas. A mulher do futuro não terá seios. Anarte: o suporte enquanto anotação signal. Anarte: toda arte é mental, portanto social, uma vez que o mental individual é uma ficção, como o homem individual é uma ficção. Estratégia: utilização da cidade como suporte. Anarte: cidade, campo unificado. Espaço e tempo de invenção. Anarte: profecia: Rafael Greca será o próximo (ou o próximo) prefeito de Curitiba. Anarte: Depois de Picasso e Matisse, o que você está fazendo com este pincel na mão?”.
O Circo do Palhaço Sacaralho
Como dissemos acima, foi montado no Largo da Ordem o Circo do Palhaço Saca-rolha, carinhosamente apelidado de Sacaralho pelos artistas anarquistas. O evento durou cerca de uma semana e a ideia era apresentar novidades criativas nas áreas das artes cênicas, poesia, música, etc… Eu e meus comparsas Renato Quege e as irmãs Mônica e Andreinha Giovannetti nos inscrevemos pra cantar num coral dirigido pelo maestro carioca Luiz Cláudio. A obra seria a peça concretista e cacofônica Êpini, do argentino vanguardista Roque de Pedro. Lembro que entramos no circo da ANARTE carregando um caixão de defunto que depositamos no palco. Dali saiu o maestro com uma cenoura na mão pra reger o coral muito louco. Depois da apresentação, colocamos outro “defunto” no caixão: o músico negro Carlito Caveira, famoso na cena underground da época. Fizemos um féretro até o prédio onde Ziraldo estava dirigindo um debate sobre Humor. Ao chegarmos lá, o Carlito se levanta do caixão e brada: eu sou o humor negro!
Em depoimento para a coluna FRENTE FRIA, o músico Luiz Ferreira lembrou de alguns momentos da ANARTE:
“Gostava de todos os inscritos, lembro bem do José Buffo, declamando um poema com um violão, em pé, com um pé em cima de uma cadeira. Uma senhora com três filhos pequenos dizia: ‘não estou entendendo direito esse circo aqui… acho que ele é o palhaço…’. Nisso o Buffo se empolga e num rompante estraçalha o violão na cadeira lembrando Sérgio Ricardo em 1967, causando terror na senhorinha, que pega as crianças e exclama ‘vamo embora que isso aqui não vai acabar bem…’ rsrsrs… Logo depois aparece o poeta Alberto Puppi estralando a língua em outro lado do circo, intrigando as pessoas que procuram quem é o engraçadinho. Todo mundo de olho no cara, ele calmamente folheia seus poemas e os lê, um a um, sem medo de ser feliz, enquanto a plateia despreparada ia se retirando, um a um, só ficando os valentes. Chegou a minha vez, resolvi dar uma chance para os que se apresentassem depois e toquei duas de minhas canções mais populares: uma paródia country/sertaneja ‘Camisa Cor de Rosa’ e um baião de protesto ‘Tropeiro Cangaceiro’. Alguns desavisados transeuntes até voltaram para ver o que estava acontecendo. Me senti um pop star, embora a proposta fosse causar estranheza (vanguarda é assim, né?). Foi uma semana de integração entre vários artistas de várias áreas, que acabaram parceiros na época e alguns até hoje colaboram entre si. É o que acontece entre mim e meus parceiros musicais, como o Sérgio Viralobos, Rodrigo Barros, Thadeu Wojciechowski, Roberto Prado, Marcos Prado, Edilson, Edson Vulcanis e outros malucos, parceiros menos constantes. Claro que tínhamos que ser unidos pelo Reynaldo Jardim, o cara que descobriu o Big Boy, que trouxe pro Bananão o rock and roll e que dali veio a Contrabanda, que virou o Beijo AA Força, que virou… ah, mas aí já é outra história…”
O artista multimídia Rodrigo Barros, com a memória bastante avariada, recorda estes flashes da ANARTE: “Lembro do palhaço Sacaralho (o dono do circo). Lembro que eu e o Mancha fizemos um som (Liquidificaram Minha Vida), com violão e liquidificador da minha mãe. Lembro que entrei com o Leminski e o Rettamozo lendo um texto (ruim) do Leminski com marcas da indústria de consumo. Lembro do Coral do Êpini com uma cenoura de pelúcia sendo jogada de um lado a outro do palco. Lembro do Jardim acompanhando uma música com tumbadoras. Lembro que foi engraçado e foi onde conheci a velha guarda de Curitiba (Leminski, Rettamozo, Solda e Rogério Dias)”.
A ANARTE foi um momento mágico em que uma geração de formidáveis artistas conhecia a geração que os sucederia na cena curitibana: o movimento que denomino de FRENTE FRIA. Essa história segue nos próximos capítulos.
Lembro que nesse dia um maluco bebaço subiu no palco na cena de um barco imaginário e caiu por cima do arco do violino do Luiz Claudio, que espatifou. Luiz Claudio começou a gritar cobrindo o maluco na porrada…
– Você quebrou o meu arco… Você quebrou o meu arco!!!..
Enquanto a plateia vibrava pensando fazer parte da encenação…
“A arte não vale um gato morto!”
Não lembro quem criou este epíteto difundido na ocasião!!
História viva. Memória de tempos áureos da Gothan dos pinherais…