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Um táxi para o cemitério

23/08/2022

Os anos já se passaram, mas a história remanesce. Abro parênteses para dizer que considero a palavra ‘remanesce’ fora de uso, mas é assim que, um dia, estaremos todos.

Ninguém da louca geração curitibana dos anos 1970/80 vai esquecer aquele sábado, iniciado no Passeio Público, perto do meio-dia. Quando os, digamos, madrugadores formaram a mesa, já se prenunciava uma longa jornada. Eram jornalistas, professores universitários, músicos, artistas plásticos, fotógrafos, futuros cineastas, publicitários e loucos de todo gênero a estabelecer como gênese a sede que os movia.

Dizem que Jaime Lerner passou por lá, ele que era fã de uma mesa divertida. Mas foi almoçar em casa, como se exige de quem tem compromisso familiar. Ocorre que ali estava instaurado o império da anarquia. Depois da feijoada bem temperada do restaurante, todos se consideraram plenos de sobriedade. Salvem-se, portanto, os que pudessem ser salvos. Ninguém desejava tal maldição.

A mesa já havia mudado de configuração, alguns desconhecidos trataram de se incorporar, mas a essência se manteve – todos para o Kapelle, foi a palavra de ordem lá pelas cinco da tarde. Como havia o risco do bar não estar aberto, a turba alcoólica passou antes pela confeitaria Cometa, na Rua XV, nome pouco apropriado a um bar, para outras rodadas.

O fato é que, a cada parada, o caldo engrossava. Ao chegarem ao Kapelle, a noite já mandando suas ordens, eram mais de 20 integrantes, todos sóbrios como o Papa – se me permitem a dupla heresia: pela parca sobriedade de todos e pelo Santo Padre. As mesas ficaram lotadas. Duas parcerias musicais foram formadas, três casais juraram amor eterno, uma aquarela foi pintada – e vendida no ato ao filho de um industrial de Santa Catarina, apaixonado pela jovem bailarina do Teatro Guaíra, disposta até a fazer um plié pelo seu admirador.

O volume de chopes servidos (e bebidos) superava a casa das centenas, desde o início da maratona. Os efeitos nos receptores daquele volume de barris já era sentido em cada movimento. Todos erráticos, é lógico.

Deu-se, então, que a Mara do Kapelle, mãe compulsória daquela horda, também se deu ao direito de descansar, com o que fechou o bar. Houve, a seguir, o encerramento da epopeia.

Um dos artistas mais festejados da trupe, usando todos seus recursos físicos e mentais, encostou o corpo debilitado na parede externa do bar e pôs-se a clamar por condução como um bezerro pela mãe.

Eis que uma boa alma conduziu um taxi até a frente do bar, tendo o cuidado de dar uma nota de vinte pratas ao motorista. E deu a informação que possuía:

– Ele mora ao lado de um cemitério afastado, no alto.

Não disse qual seria ele, porém. O prejudicado passageiro limitou-se a dar com a mão, como se o itinerário fosse em direção ao Bacacheri. O Cemitério de Santa Cândida, imaginou o motorista.

Do centro da cidade até lá foram 15 minutos. Em frente ao portal do cemitério, o comatoso passageiro foi acordado aos repuxões:

-Onde estamos? – berrou assustado.

– Em frente ao cemitério.

– Que cemitério?

– Santa Cândida.

– Então pode voltar, porque eu moro ao lado do Cemitério do Boqueirão.

E morrendo de rir, recostou o rosto antes de voltar a dormir.

Ao motorista restou conferir se o passageiro tinha algo mais no bolso que os vinte cruzeiros previamente recebidos. Não havendo, considerou-se obrigado a arcar com o prejuízo, cruzando a cidade de norte a sul.

Nosso herói quase apanhou quando foi acordado lá nos confins da zona sul e, rindo outra vez como Jack Nicholson em Um Estranho do Ninho, atreveu-se a confessar:

– De verdade, eu moro mesmo é ao lado do Cemitério da Água Verde.

Defenestrado do táxi pelo irritado motorista, dormiu enrodilhado em sua macabra embriaguez no chão do terminal do Boqueirão. Continuava rindo, orgulhoso daquela criatividade gerada pela proximidade dos cemitérios.

Ninguém apostaria, em especial o taxista, que seu cínico cliente iria fazer fama nas décadas seguintes pintando franciscanos passarinhos, longe dos eflúvios alcoólicos.

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