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30/04/2024



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Andanças e atolamentos nos Campos Gerais

 Andanças e atolamentos nos Campos Gerais

Há muitas décadas, na época em que o mundo era jovem ou, ao menos, nós éramos, tivemos uma ideia luminosa, meu primo João Augusto Fleury e eu. Iríamos a Palmeira e, de lá, até uma fazenda da família Cherobin, para então nos aboletarmos no alto de uma escarpa aptos a ver, lá em embaixo, na Rodovia do Café, a passagem dos competidores da corrida Curitiba-Apucarana-Curitiba.

 

Entre os corredores estavam os principais pilotos paranaenses da época, como Haroldo Lobo, Adir Moss e Ângelo Cunha, e os maiores nomes do automobilismo nacional: Chico Landi, Catarino Andreatta e Camilo Christófaro. Um programa imperdível, pensou o diminuto cérebro daquele estudante do Curso Abreu, pré-vestibular de Direito.

 

Já com três irmãos Cherobin, Alceu, João Luiz e José Carlos, incorporados à caravana, um jipe nos deixou na fazenda. O restante do percurso foi feito a pé, até chegarmos ao local que, imagino, fique em frente de onde hoje se localiza o Restaurante Panorâmico. A vista era deslumbrante e a visão privilegiada, mas a emoção era nenhuma. Os carros não vinham emparelhados, disputando posição. Ouvia-se a aproximação de um competidor e levava-se alguns minutos até que surgisse outro, a passar zunindo. Aquele tédio era tudo.

 

Às tantas da tarde anunciou-se uma chuva, com trovoadas de proporções bíblicas. Tratamos de fazer o caminho de volta, já encharcados desde os primeiros passos. Depois de uma hora de andança vimos as luzes da sede da fazenda. Sem enxergar quase nada, sem lanternas, sem bússola, enveredamos por um baixio, que descobrimos tarde demais ser um manguezal. Com água à altura do peito, fomos obrigados a dar a volta até encontrar o caminho da casa.

 

Lá não havia ninguém. A sede estava fechada, à exceção de um galpão, onde brilhavam pendurados os queijos da produção da casa, em processo de maturação. A fome nos fez atacar o estoque, o suficiente para, minutos depois sermos assolados por uma sede de beduíno. O melhor a fazer, pensamos – e é inacreditável como a juventude sabe se equivocar – seria voltar a Palmeira a pé. Lá fomos, os cinco, com a alma encharcada de água e as botinas de lama. Nada semelhante à letra poética da canção de Milton Nascimento.

 

Alguns quilômetros à frente, demos com um acampamento escoteiro. Fomos atendidos em uma barraca sequinha, invejável, camas de armar prontas a receber os discípulos de Baden Powell. O chefe, condoído com o dantesco espetáculo proporcionado por aquela infantaria anfíbia, ofereceu uma garrafa de Cinzano, ainda selada. A virgindade da ampola foi profanada em segundos – e o líquido esvaziado em três minutos.

 

O Estado-Maior do nosso exército de Brancaleone, dirigido pelo ensopado Alceu Cherobin, determinou que seu irmão mais moço, José Carlos, e eu, ficássemos acantonados ali até o resgate a ser feito na manhã seguinte. Zé Carlos por ter saído de uma gripe dias antes, eu pela falta de musculatura, esquálido como os bambus que brotavam do mangue não atravessado.

 

A nos abrigar, a barraca da intendência. Ali, entre porções de charque, pacotes de arroz, feijão e bolachas, mas sem cobertor e nenhuma bebida para esquentar, sentamos com as costas encostadas, tentando transferir calor de um corpo ao outro. Zé Carlos em nítida desvantagem, considerando as parcas calorias que minha magreza era capaz de gerar.

 

Foi então que se deu nova tragédia. O acampamento estava montado nas faldas de um morrote. Como a chuva tinha se intensificado, o morro passou a fazer o que se espera de um monte atingido por água abundante: deu para liberar pedras e porções de terra até quase soterrar a barraca dos víveres. Se bem que, em se tratando dos sobreviventes ali instalados, já éramos semi-víveres, quase encaminhados aos cuidados da providência divina. Com o auxílio do chefe escoteiro e seus pupilos, tratamos de rearmar a barraca em local menos inóspito.

 

Lá pelas 9 horas da manhã ouvimos o motor de uma camionete que se aproximava. Na boleia, Luiz Cherobin, pai da garotada. Os caminhantes tinham chegado em casa de madrugada, com os pés sangrando e uma fome de anteontem, como diria Chico Buarque. Subimos na carroceria, já envolvidos nas mantas enviadas pela Tia Carmen, mãe deles, embora só tenhamos parado de tremer depois de uma chuveirada e três pratos de sopa.

 

E dizer que eu poderia ter ficado em casa naquele fim de semana, revendo alguma matéria dada pelo professor Paulo Leminski, porque o vestibular seria dali a dois meses – sem imaginar que, entre aquele horrível fim de semana e as provas, eu ainda teria que passar por outra provação.

 

Uma complicada cirurgia para retirar o apêndice com aderência aos rins, enfim bem sucedida pela destreza do Dr. João Fleury – a propósito, pai do meu primo João Augusto, irmão da citada Tia Carmen e cunhado do providencial Luiz Cherobin. No serán jamás olvidados, por supuesto.

 

PS: em fevereiro seguinte, os professores encarregados de corrigir as provas daquele vestibular para a Faculdade de Direito da UFPR cometeram o desatino de aprovar o desastrado sobrevivente, embora não seja exagero pensar que algumas gotas d’água ainda possam ter pingado sobre as provas.


Ernani Buchmann é advogado, jornalista e escritor, autor de mais de 20 livros. Foi presidente da Academia Paranaense de Letras entre 2017 e 2021. É presidente do Observatório da Cultura Paranaense.


Leia outras colunas do Ernani Buchmann aqui.

1 Comment

  • Excelente! Deliciosa leitura

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