Em coluna anterior, mencionei o fato de que ver é um processo aprendido. Hoje vou compartilhar com você uma experiência acontecida em 1993, no Pró-Criar, espaço que criei em 1989 para o desenvolvimento da pessoa por meio da arte. Foi um momento mágico! Momento em que o cego passa a ver.
Trata-se de uma das aulas em um curso de desenho que ministrei utilizando o método de Betty Edwards “Desenhando com o lado direito do cérebro”, adaptado para crianças de 6 a 14 anos. O tema da aula era perspectiva – o terror de quem quer aprender a desenhar!
A aula teve início normalmente, com alguns exercícios de revisão de aulas anteriores. Após o intervalo, entramos no novo assunto, perspectiva. O modelo foi colocado no centro da sala, sobre um suporte, diante das crianças, de forma que todas pudessem observá-lo de diversos ângulos (conforme o local que escolheram se sentar). O modelo era uma cadeira de plástico branco, dobrável, da marca Marfinite.
Como a criança nessa idade não se assusta com tal proposta, começaram o trabalho. Depois de certo tempo surgiam os comentários críticos: “Eu não sei fazer o assento! Está ficando horrível!” etc… Surgia, então, o problema da representação! Por sua experiência de vida, a criança entende que a cadeira apresenta uma profundidade na parte do assento que é, justamente, o que permite que se sente em uma cadeira. Esse pré-conhecimento gera um pré- conceito que vai distrair o seu olhar, tirando a atenção do olhar a cadeira para levar ao pensar a cadeira. Ela deixa de observar o objeto como forma e passa a focar na sua função.
Foi então que, sentada ao lado de cada criança (para poder enxergar de seu específico ângulo de visão), fui trazendo de volta o olhar de cada uma para o objeto em si, focando nas linhas e nos espaços que constituíam a cadeira. A partir do uso do lápis como apoio, criando linhas verticais e horizontais no ar, as crianças puderam perceber as inclinações das linhas das quais a cadeira era constituída, apenas linhas paralelas, ou não, inclinadas, ou não, maiores ou menores umas em relação às outras. Apenas linhas, não a cadeira.
Foi observando dessa maneira que o objeto, antes compreendido como tridimensional (o que tornava sua representação impossível), começou a se transformar “naquela cadeira”. “Parecida com ela”, “está ficando de verdade!, passaram a ser os comentários das crianças entusiasmadas. O que, inicialmente, era uma nebulosa, começava a tomar contornos nítidos. Os olhinhos e sorrisos de satisfação por terem conseguido, brilhavam e iluminavam a sala.
A magia se realizou! Aqueles que estavam “cegos” para uma parte do mundo passaram a ver! A saber! A desenvolver a capacidade de representação.
A percepção, como nos diz o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, é a inauguração do conhecimento. Em um determinado momento, aquelas crianças conheceram a magia de ver e perceber um mundo novo, livres do preconceito e da limitação da forma pensada e, portanto, não compreendida como tal, puderam desenhar!
A arte proporciona esses prazeres. Nesse caso… o de “dar à luz”.
Na foto: desenhos feitos por Carolina Schulman (7 anos) na aula de 22/06/1993 no Atelier Pró-Criar.
Leia outras colunas da Elizabeth Titton aqui.