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30/04/2024



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As grandes e barulhentas redações de Curitiba não existem mais. Que pena

As velhas redações de jornal de Curitiba eram um mundo a ser experimentado. Hoje, um mundo a provocar enorme saudade.

 As grandes e barulhentas redações de Curitiba não existem mais. Que pena

Miriam Karam
Especial para HOJEPR


Não havia Google, Facebook ou Whatsapp; resumindo, pra deixar bem claro: não havia internet. Mas quem precisava dela? O mundo estava ali, inteirinho, concentrado diante de nós, numa redação de jornal, principalmente, mas também em algumas estações de TV maiores ou nas poucas rádios que já se dedicavam a notícias.

É difícil imaginar hoje um mundo sem internet e, mais difícil ainda, conceber um trabalho como o de divulgação de informações sem dispor, a um simples toque, de todo tipo de esclarecimento ou explicação necessários para desenvolver uma ideia ou não ser pego no contrapé, sem saber do que falam ao nosso redor.

Mas tenha certeza: era muito, mas muito bom. As velhas redações de jornal de Curitiba eram um mundo a ser experimentado. Hoje, um mundo a provocar enorme saudade.

Do pessoal que cobria política ao que se dedicava ao esporte, intelectuais que escreviam colunas e editoriais e entendidos em relações internacionais. Sem outras fontes externas, sem gente escrevendo abobrinhas a partir de qualquer telefone celular, o mundo se descortinava ali, bem diante dos nossos olhos.

As novas gerações, que trabalham em casa ou em pequenos grupos silenciosos, nunca vão saber o que era “o clima que a gente respirava numa redação”, lamenta o colunista e criador do Portal de Notícias Reinaldo Bessa, lembrando da alta vibração, da constante troca de ideias, de informações e até confidências, tudo em meio a um burburinho constante de vozes ao telefone, som de teclas de máquinas de escrever, conversas incessantes, chamadas e lembretes, cobranças de prazos e mesas atulhadas de papéis e outros objetos.

Não se pode esquecer as principais fontes de informação, que não as reportagens produzidas pelo corpo próprio de profissionais, também imensamente barulhentas por si só: as agências de notícias chegavam via teletipo, telex, máquinas barulhentas funcionando o dia inteiro, ligações diretas com o mundo.

O ambiente era de fumaça e cheiro de cigarro, mas ninguém reclamava. As jornadas eram longas;, não raro, de varar as madrugadas. Todos se entregavam de corpo e alma, viviam dentro do jornal, alongavam as horas até para ficar lendo notícias que chegavam pelo teletipo (atenção, Google), com sua linguagem substantiva, como diz Luiz Manfredini, que será nosso conhecido logo abaixo.

Só saíam dali para o boteco, onde continuavam as conversas, para enfim voltar no dia seguinte, ainda com a cara meio amarrotada, pra mais um dia …e segue a vida, sempre cheia de novidades.
No olho do furacão

Ué, mas dava pra pensar em meio a tanta bagunça? “Acho que era justamente isso que inspirava”, romantiza Bessa, meio brincando, frequentador que foi de redações curitibanas e paulistanas.
“A gente se entregava àquilo, era muito estressante, mas havia muito envolvimento; na verdade, era só alegria”, lembra Bell Kranz, jornalista e editora com larga experiência no Projeto Folha e na criação de cadernos que dirigiu na Folha de S. Paulo.

Em compensação, era um “aprendizado constante,sempre havia alguém pra ensinar a gente; e todo mundo tinha histórias pra contar”, rememora Jorge Eduardo Mosquera, o Jorjão, com a experiência de quem frequentou redações, tanto de jornais curitibanos como de sucursais de jornais paulistas.
Como costumava dizer Dirceu Pio, de saudosa memória, diretor da sucursal do jornal O Estado de S. Paulo, uma das maiores e mais combativas que atuaram em Curitiba a partir da metade da década de 1970, as redações eram escolas. Os mais experientes ensinavam os novatos.

Gente tarimbada e os chamados “focas” – iniciantes – dividiam mesas no trabalho e nos bares; dois em especial: o Retranca, no Sindicato dos Jornalistas, e o Bar Palácio, os únicos que permaneciam abertos até altas horas. Bessa diz que todos se alternavam nas funções de aluno e professor – “eu mais aprendi que ensinei”, reconhece modestamente, por ter tido excelentes colegas experientes e generosos.
Bell também lembra que a maioria encontrava seu parceiro dentro do próprio jornal, tal era o envolvimento e o tempo dedicado ao veículo do momento. “Ou casava com médico ou tinha problemas em casa”, brinca. Afinal, ninguém entendia aqueles horários e tantos plantões. Os amigos estavam ali, era uma grande comunidade, um universo muito próprio.

Ou, como explica Luiz Manfredini, era tanta gente, de tantos tipos, tendências e profissões, que “toda a humanidade estava na redação”. Jornalista e escritor, Manfredini sabe do que fala, dadas as experiências que vivenciou, desde a prisão na época da ditadura por reportagens que escreveu, ao “deslumbre” que lembra ter experimentado ao olhar, da porta, pela primeira vez, a redação do Estado do Paraná, onde chegava para pedir emprego.

Parou na porta, meio atordoado com as teclas das Remington a toda velocidade, um fluxo de vida percorrendo aquele mesão comprido em que os repórteres se dividiam em editorias. O salário era a metade do que recebia no emprego anterior, mas ele não teve dúvidas. Era ali que queria trabalhar. Foi um choque – de ânimo – que perdura até hoje, cinquenta anos depois.

Voltando à vida comunitária de uma redação, parece exagero? Nenhum. Veja o caso de Adélia Borges, veterana jornalista formada na Universidade Federal do Paraná no começo da década de 1970, que jamais abandonou a profissão. Uma dinossaura, como são chamados os mais antigos nesta profissão. “Quando se é repórter vive-se mais no trabalho do que em casa, seja em redação ou em botecos. Era tanta a convivência que, graças à redação, virei atleticana, soube que estava grávida, fui ver Blade Runner, conheci Elis Regina, descasei, casei”.

Olhos preparados

Só isso? Não, muito mais. Doença, amores, desamores, justiças e injustiças, tudo era compartilhado na redação, e também com os fotógrafos, que tinham um cubículo separado, mas frequentavam o espaço e os amigos. Foi um deles que contou a Adélia que ela estava grávida. Como assim?

“Um dia, depois de assuntar a parede onde ficava o relógio que marcava o tempo da revelação das fotos (sim, elas precisavam ser reveladas), Haraton Maravalhas, mais um de saudosa memória (já são tantos, infelizmente), chega à minha mesa, me dá uma foto que fez de mim enquanto eu entrevistava algum delegado ou bandido, e me diz: ‘Você não contou que estava grávida’. Não contei porque não sabia, uai. Mas está, ele insistiu. E como você pode saber? ‘Pela foto, teus lábios estão carnudos e o rosto mais redondo, minha mulher ficou exatamente assim quando engravidou’ ”.

Dois testes de farmácia deram negativo, mas o fotógrafo sabia do que estava falando e mandou fazer outro;a mãe da Adélia, já curtia o papel de avó e providenciava o enxoval, o paizão da criança ria feliz e a Rosely Abrão comparece com o primeiro par de sapatinhos de tricô do bebê. Só então a repórter se deu ao trabalho de fazer outro teste, agora mais “científico”, como diz, e …. positivo. Haraton riu com os olhos. Até o nome da criança, Pablo, foi escolhido numa concorrida assembleia na redação.

Outros tempos

Adélia Lopes conta: naquela época só se sabia o sexo do bebê ao nascer e a redação toda querendo saber o nome da cria. Quando eu disse que, se fosse menino, pensava em Krishnamurti (nem sabia como se escrevia o nome do filósofo indiano, mas era a década dos hippies…). Nenhuma justificava apagava a cara de horror dos colegas. “Teu filho vai te bater na primeira piada da escolinha!”.

A redação, em polvorosa, passa a escolher outro nome. Alguém, talvez a Marilena Braga que já havia transitado pela América Latina, sugeriu Pablo. E Pedro Franco, espanhol de berço, bateu o martelo; Milton Oscar Volpini, homem de muitas letras e cinema, deu o maior apoio, César Brustolin avisou que se chamasse Pablo ia ser fotógrafo oficial do bebê, até Mussa José Assis (in memoriam), diretor do jornal, foi convocado (venha!) a opinar. A mesona lotada, gentes sentadas por riba, redação inteira dando palpite. O nome Pablo foi eleito e Pablo assim ficou porque assim veio e deixou a maternidade num vistoso par de sapatinhos azuis.

No cinema

O mundo frequentava as velhas redações. Hoje, pouco sobra daquele mundo mesmo nos veículos de mídia com algum tamanho e respeito. O home office, que inicialmente levou muita gente pra trabalhar em casa até em profissões impensáveis, em função da pandemia, manteve no conforto (???) do lar, no caso da mídia, colunistas, e até repórteres, que se valem de entrevistas pelo zoom ou outras plataformas substituindo até entrevistas presenciais na TV.

Em contraponto, vale repetir, ninguém consegue imaginar como alguém conseguia escrever – raciocinar, então, nem se fala – com tanta agitação. O fato, acredite se puder, aquele ruído específico chegou a fazer falta a ouvidos habituados.

No meio de mesas abarrotadas e alguma confusão, tinha também a diversão inesperada; e por vezes até debochada por supostos trabalhadores intelectualizados. As visitas das misses e rainhas da festa do pêssego ou do pinhão eram uma constante. Sempre tinha um engraçadinho pra gritar de um canto da redação “Não alimente os animais”.

Redação da TV Iguaçu

E havia também, é claro, visitas mais “sérias”, de artistas ou políticos a serem entrevistados. Reinaldo Bessa, conta divertido, que serviu cafezinho para a deputada Rita Camatta quando ela esteve na redação da Gazeta do Povo durante a campanha política em que disputou a vice-presidência ao lado de José Serra.

“Não tinha monotonia, artistas e políticos em busca de divulgação, misses distribuindo frutas aos jornalistas e tirando fotos com todo mundo”, conta; e olhe que nem eram tempos de selfie.

Agora, deixando o saudosismo de lado, restam as imagens docinema e a bravura romantizada de “coleguinhas” em filmesque valem a pena recordar; alguns exemplos:

  • Todos os Homens do Presidente, (1976) de Alan J. Pakula
  • A Montanha dos 7 Abutres, (1951) de Billy Wilder
  • O Jornal, (1994) de Ron Howard
  • O Passageiro – Profissão: Repórter (1975), de Michelangelo Antonioni
  • The Post, a Guerra Secreta (2017), de Steven Spielberg

e, em tempos de séries, Newsroom, a movimentada edição de um jornal de televisão, que teve a primeira temporada em 2012.

Nenhum brasileiro? Vamos ver:

Nossas almas

As redações tinham realmente de tudo. Gente que amava a profissão, gente que não havia dado certo na vida e só esperava por uma oportunidade em algum novo emprego e, é claro, os literatos de plantão. Muito se discutia sobre o desejo de escrever literatura e as semelhanças/diferenças entre as duas escritas.

Não se pode negar que os jornais deram guarida a talentos literários que precisavam, ao menos temporariamente, de uma forma de manter-se na vida. Paulo Leminski, por exemplo, deu expediente no suplemente diário Anexo, do Diário do Paraná, criado por Reynaldo Jardim, o modernizador do Jornal do Brasil e criador do Caderno Dois; ali também trabalhou, na criação, Luiz Rettamozo.

Laurentino Gomes, hoje talvez o historiador de maior sucesso no país, iniciou a carreira no Estado do Paraná, o Estadinho para os íntimos. Foi colega de Manoel Carlos Karam, que deu nova vida ao teatro e a toda uma geração de atores paranaenses; e de Dante Mendonça, um cartunista de mão cheia que se transformou num prolífico escritor.

Pelos jornais curitibanos e paranaenses passaram nomes importantes no cenário literário nacional, como Domingos Pellegrini e Miguel Sanchez Neto, muitas vezes premiados. E correndo o risco de esquecer muita gente boa, muito contribuíram com bons livros os jornalistas Nilson Monteiro, Otávio Duarte, Vanderlei Rebelo, Adherbal Fortes de Sá Jr, Nego Pessoa e Adélia Lopes.

E o mais poeta entre os poetas, Zeca Correa Leite, que define as redações como “um lugar onde estendíamos nossas almas”. Ele trabalhou no Correio de Notícias ainda antes do lançamento do jornal. E relembra como foi aquele primeiro dia:


“Aos poucos passei a sentir a magia do que seria propriamente uma redação, mas o batismo se deu no dia em que rodaram o piloto número 1 do jornal. A correria, o nervosismo, a eletricidade no ar – essa coisa inconfundível que antecede a edição, festiva, carregada de responsabilidade, senti nessa noite, quando as impressoras iriam rodar pela primeira vez”.

“O Correio de Notícias era uma festa, o clima pulsante, mas a vontade de entregar ao leitor um trabalho bem feito era um sentimento permanente e sólido. Talvez fosse a somatória da felicidade de cada um por estar ali naquela tribo trabalhando, produzindo, transformando em palavras os acontecimentos marcantes de cada dia. O que talvez seja ilusão, para mim é realidade: as redações dos jornais pelas quais passei foram um momento de sonho, e o que as velhas edições impressas guardam são reflexos dessa energia iluminada.

(Mas vejam bem, o Zeca é um poeta; ele sente a coisa de maneira mais lírica, quase irreal).

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