Especialistas ouvidos pelo Estadão avaliam que Jair Bolsonaro (PL), o deputado federal Alexandre Ramagem (PL) e o ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, podem ter incorrido em crimes se tiverem levado a cabo a estratégia debatida em uma reunião realizada em 2020 de ações para tentar anular a investigação contra o senador Flávio Bolsonaro (PL) no inquérito que apurava a suposta prática de “rachadinha” em seu gabinete quando era deputado estadual no Rio de Janeiro. A maior parte dos entrevistados pondera que é necessário que a investigação da Polícia Federal descubra se o plano traçado no encontro foi de fato executado para que os supostos crimes sejam comprovados e os envolvidos, punidos.
O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), levantou nesta segunda-feira, 15, o sigilo da gravação da reunião, que foi encontrada em um equipamento de Ramagem, então diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Bolsonaro, então presidente da República, Heleno e duas advogadas, Luciana Pires e Juliana Bierrenbach, participaram do encontro. O advogado de Bolsonaro, Fábio Wajngarten, e Ramagem negam irregularidades.
Acácio Miranda, doutor em Direito Constitucional, avalia que há indícios que Bolsonaro, Heleno e Ramagem incorreram nos crimes de prevaricação e advocacia administrativa ao discutirem e planejarem ações junto à cúpula da Receita Federal e do Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) para tentar anular a investigação.
“A prevaricação é deixar de fazer ou fazer alguma coisa, enquanto funcionário público, para satisfazer interesse pessoal. A advocacia administrativa é fazer uso de suas prerrogativas enquanto funcionário público para atuar em prol de alguém. E a improbidade administrativa, que não é propriamente um crime, mas um ilícito civil, é agir de forma desonesta e ilícita”, afirma ele.
Ainda segundo o especialista, Bolsonaro poderia ser enquadrado por crime de responsabilidade que poderia ensejar um impeachment, mas a acusação perdeu sentido porque ele não é mais presidente da República.
A denúncia contra Flávio foi arquivada pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em 2022 com base em uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) do ano anterior que anulou provas contra o filho “01″ do ex-presidente. O STJ concordou com o argumento da defesa de Flávio de que o caso não poderia ter sido julgado por um juiz da primeira instância, no caso Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, porque ele teria foro privilegiado.
A reunião cujo áudio veio a público nesta segunda-feira é anterior à anulação. Um dos caminhos discutidos foi tentar provar que o Relatório de Inteligência Fiscal (RIF) que deu origem à investigação contra Flávio era ilegal. “Se a gente conseguir provar que eles fizeram toda essa apuração, e só depois eles criaram com esse RIF espontâneo. E por meio dessas senhas invisíveis, a gente consegue a nulidade do RIF. A gente consegue anular tudo”, diz a advogada Bierrenbach logo no início da conversa.
Segundo ela, os auditores da Receita Federal teriam uma senha que torna indetectável o acesso feito por eles às bases de dados do órgão. Por isso, seria necessário acionar o Serpro. O órgão teria capacidade de realizar uma investigação e detectar os supostos acessos “invisíveis” aos dados financeiros de Flávio.
A conversa segue e então Bolsonaro afirma: “Caso de conversar com o chefe da Receita […] Ninguém tá pedindo favor aqui. [inaudível] é o caso conversar com o chefe da Receita. O Tostes (José Barroso Tostes Neto)”, diz o ex-presidente, conforme transcrição do áudio feita pela Polícia Federal.
O ex-chefe do Executivo também sugere procurar Gustavo Canuto, ex-ministro de Desenvolvimento Regional em seu governo. Bolsonaro aparentemente se confunde e acha que Franco é o presidente do Serpro. Na verdade, ele era chefe do Dataprev, empresa de tecnologia e informações da Previdência Social.
“Era ministro meu e foi pra lá. Sem problema nenhum. Sem problema nenhum conversar com ele. Vai ter problema nenhum conversar com o Canuto”, afirma Bolsonaro.
O advogado criminalista Bruno Salles aponta que não é possível cravar que Bolsonaro cometeu crime apenas com base no áudio e que é necessário que a Polícia Federal aprofunde o desdobramento do que foi conversado na reunião.
“Eles tiram a conclusão que deveriam falar com o Tostes, da Receita Federal, e com o Canuto. Isso aconteceu? Foram falar com eles? Falaram em nome do presidente? Foi o presidente que falou ou algum enviado dele? Se isso realmente aconteceu, temos uma situação séria que pode configurar tráfico de influência e advocacia administrativa”, diz.
Welington Arruda, também advogado criminalista, adota postura semelhante ao considerar que não há irregularidades no mero diálogo em si pois, no “pior cenário”, os envolvidos estavam na fase de cogitação do crime, que não é passível de punição pela Justiça.
“Me parece muito mais um ato de contrainteligência a fim de trazer fatos positivos ao grupo. Por si só, o diálogo não traz irregularidades, exceto se alguma conduta tenha sido perpetrada posterior ao diálogo”, disse ele.
A gravação da reunião foi encontrada em um computador de Ramagem no âmbito da Operação Última Milha, que apura a existência de uma “Abin paralela” para monitorar e espionar adversários e desafetos de Bolsonaro, como jornalistas e membros do Legislativo e do Judiciário. Na sexta-feira, cinco pessoas tiveram as prisões decretadas.
A professora de direito e advogada criminalista Erika Chioca Furlan também avalia que, com base no áudio disponível, não é possível imputar crimes a Bolsonaro, Ramagem ou Heleno. “Seria necessário aprofundar as investigações para verificar se houve algum avanço, pois o que temos até agora é apenas cogitação, e cogitação no iter criminis (caminho do crime) não é punível”, explica a ex-delegada da Polícia Civil de São Paulo.
Erika observa que, ao ouvir o áudio, percebe-se que os participantes da reunião desejavam acessar documentos para facilitar a defesa de Flávio Bolsonaro. No entanto, para ela, não há evidências de que atos em favor do filho do ex-presidente tenham sido praticados. Com essa interpretação, Erika descarta a possibilidade de crimes como advocacia administrativa ou tráfico de influência.
Ela pondera, no entanto, que se algum funcionário foi cooptado para entregar provas em favor de Flávio Bolsonaro, essa prática poderia configurar corrupção passiva. “Ao entregar a prova, o funcionário poderia incorrer em corrupção se recebesse algum tipo de vantagem, ainda que indireta, como uma promoção ou a manutenção do cargo”, explica. Além disso, ressalta que a prova entregue pelo funcionário se tornaria ilícita e não poderia ser utilizada no inquérito.
Após a divulgação do áudio, o assessor e advogado de Bolsonaro Fabio Wajngarten saiu em defesa do ex-presidente, dizendo que a conversa “só reforça o quanto o presidente ama o Brasil e o seu povo”. “Aos 47′05″ da tal gravação [Bolsonaro diz]: ‘E, deixar bem claro, a gente nunca sabe se alguém tá gravando alguma coisa. Que não estamos procurando o favorecimento de ninguém”, escreveu Wajngarten nas redes sociais.
Em vídeo divulgado em suas redes sociais, Alexandre Ramagem disse que Bolsonaro sabia que estava sendo gravado e que havia o aval do então presidente. “Essa gravação não foi clandestina”. Ele disse ainda que o áudio da conversa depois recuperada em seu celular foi descartado. “O presidente sempre se manifestou que não queria jeitinho. Muito menos tráfico de influência.”
Foto: Wilson Dias/Agência Brasil
Tratamento de imagem: Anndersou/HojePR