Dando continuidade à publicação dos poemas do projeto Doze Trabalhos de Hércules, produzido por Samuel Lago e Rodrigo Barros para o programa radiofônico Radiocaos (ver aqui), hoje temos “O CINTO DE HIPÓLITA” de Monica Berger.
Veja aqui a leitura de Monica para o poema.
X. O CINTO DE HIPÓLITA
O FANTASMA DE HIPÓLITA
Do Mediterrâneo às remotas terras do Oriente, do Mar Negro aos confins da Sibéria, da alma da Capadócia às maravilhas da Macedônia, lá onde doce e amargo se misturam, antes que Górgonas espalhem seus reflexos, palácios mudem-se em templos e deuses brotem do sangue e da argila, a serpente de ouro afivelará o próprio rabo no contorno da minha cintura. O falcão em queda livre enfim sustentará suas asas no cimo da pedra negra e, em uma espiral de borboletas, circunscreverá o desenho no meu braço esquerdo. O visível é apenas um pretexto. Eu e minhas amazonas tomaremos o mundo.
O sangue flui, você está morto / o sangue flui, nós vencemos / o sangue flui flui flui / o sangue flui, não há mais inimigo.
Do meu sono de milênios descolam-se ossos forjados sob os rigores da montaria, artefatos da guerra, placas de ouro e a fumaça do cânhamo sagrado. Macacos voltam a lutar contra dragões, veados de cobre soltam-se de turquesas e enroscam suas patas nas gargantilhas de garras de leões. De minha carne completa, rosa e rija, rituais de desejo e dor, prazeres e feridas; da minha pele, tatuagens e cicatrizes. Até na morte estou viva. Eu e minhas amazonas tomaremos o mundo.
O sangue flui, você está morto / o sangue flui, nós vencemos / o sangue flui flui flui / o sangue flui
Armo o arco de voo, estilhaços atingem estrelas, mentiras expostas no palco onde o velho deus falece, máscara de alma oca. Iremos nós, a armígera Asteria, a beligerante Deianeira, a marcial Alcippe, a pelejadora Euríbia, a animosa Tecmesa, a integridade de fêmea em dorso de égua, rompendo o ferro em direção à Idade do Ouro. Eu e minhas amazonas tomaremos o mundo.
O sangue flui, você está morto / o sangue flui, nós vencemos / o sangue flui flui flui / o sangue flui, não há mais inimigo.
Nas margens do Termodonte, cidade de Temiscera, terra de esguios cavalos eu, Hipólita, rainha antianeira, vivi sem rédea ou arreio com exímias arqueiras, setas mergulhadas em veneno de víbora. As águas dos rios tremerão novamente sob nossas patas, ondas crespas no confronto de escudos sob a lua crescente. Vejo Orítia, a selvagem das montanhas, minha chefe de campanha; Antíope e Melanipe, minhas irmãs. Marpésia, Lampedo e Hippo renascidas, Lisipa, filha do amor e da guerra. Eis Afrodite Urânia, aquela que deu à luz a primeira geração de meninas apaixonadas pela luta! Eu e minhas amazonas tomaremos o mundo.
O sangue flui, você está morto / o sangue flui, nós vencemos / o sangue flui flui flui / o sangue flui.
Da muralha do casco aos flancos, do garrote à garupa, crina e gadelha se misturam, a euforia dos ritos nupciais da Rainha e do garanhão remexendo as frágeis vísceras gregas, sua nudez heroica e limpinha, sua infantaria clássica. Abominarão pela última vez nossas vestes e costumes, a Brilhante Mãe do Vazio que inventa o ovo prateado no céu ao vê-lo pela primeira vez, nossas tribos de cem mãos e cinquenta cabeças alimentando-se de aveia e leite fermentado, mulheres exóticas com nomes curiosos, “grito quente e selvagem”, tocha ardente”, “a que desata cavalos”, “a égua negra”. O prazer sem fragilidade e submissão, músculos e músculos, semelhante e semelhante, boca na boca, homem e mulher em uma só voz; nunca mais verão fêmeas desafinadas mantidas presas, eternas cuidadoras de crianças em cabanas e palácios, fiandeiras que cultuam deusas partidas. Nós, guerreiras, formadas sobre o torso dos cavalos, somos fatais. Eu e minhas amazonas tomaremos o mundo.
O sangue flui, você está morto / o sangue flui, nós vencemos.
Fundamos cidades, Esmirna, Sinope, Magnésia, Pafos, Mitilene, e construiremos outras sobre campos ou destroços, do sopé causcasiano às terras amazônicas, do pântano da Ciméria às ilhas atlantes. À Ártemis Tauropolos, a impiedosa, erigimos um templo; assim também consolidamos em Éfeso uma maravilha do mundo; invocaremos Cibele, a deusa-mãe da montanha, senhora dos leões selvagens; cantaremos Afrodite Aréia, das conchas cor de púrpura das areias de Cythera, porque esta é a nossa natureza, o mundo de Ares e Eros, onde mulheres e homens olham-se direto nos olhos.
O sangue flui, agora você está morto.
O DESEJO DE ADMETES
Olhos de luz, ossos de pedra, sangue de orvalho; carne de terra, pêlos de grama, alma de vento, Admetes, Ademete, Admeto, indomável e solitária princesa de Micenas, primeira das sacerdotisas de Hera, última das Perseidas, aquela que diz não. Frente ao espelho, a seda da mais bela túnica favorece a estimada filha de Euristeu; sobre os ombros a cabeleira vermelha me distingue como a única que pode se aproximar da estátua da deusa de Argos. Mulheres e homens me são indiferentes, mas admiro as estrangeiras que correm a cavalo nas longínquas estepes. Força, coragem e orgulho em procissão decoram os frisos dos porta-jóias; sobre minha penteadeira, as aventureiras caminham na madeira de freixo dos estojos; minhas arcas de vestidos finos feito areia enfeitam-se com padrões geométricos que desaparecem na primeira brisa; pássaros se soltam dos meus diademas. Quando deslizo azeites sobre o corpo, cerro os olhos e vislumbro a robustez destas mulheres intrépidas desenhada sobre o torso dos cavalos castanhos. Mas não é o suor, a luta, sol e gelo inclementes, os machados de dupla lâmina, a pele ressecada pelo vento, nem o cheiro de chuva subindo pelas patas dos cavalos, o que me mobiliza. Não quero cenas de amor nem de guerra, não faço parte nem da luta nem do desejo entre macho e fêmea. Nego o destino das mulheres comuns, nego o destino das das heteiras, nego o destino das ninfas e princesas sem me transformar em lâmia ou sereia, medusa ou aranha.
Sou uma sacerdotisa.
Os braços levanto em prece, a imagem no espelho me acompanha. Águas da mais pura prata se rompem por aquela que me oferece o cinturão. Ele será criado detalhe por detalhe, luz e cor, pele pedra e metal. Mudará de forma e tamanho assim que rodeie minha cintura, muro, têmeno, fortificação, assim que se feche sobre o meu ventre, assim que blinde meu sexo. Ninguém poderá rompê-lo, a não ser que eu, dona de mim, o desate. Eis o condão do cinto de Hipólita, o império da escolha feminina. A potência sobre o próprio corpo é o que faz tão cobiçado. E por isso mesmo o fruto do meu desejo será o mais misterioso dos trabalhos de Héracles.
O ARDIL DE HERA
Do Ponto Capadócio o tropel de mil cavalos levanta poeira e apressa o dia. Deusas dormem se assim o desejarem e eu, Hera, tão afável a Hipnos, ainda espreguiçava quando Héracles e suas nove naves heroicas do Mar Euxino avistam a terra. Lá estão Iolau e Iolco; Peleu e Télamon; Héracles e Teseu de Atenas vindos de vastas pelejas para aportar em Temiscera, a capital do reino das Amazonas, as amantes da guerra.
Dessa vez, Héracles precisa levar o cinto de Hipólita, a Rainha, para a princesa Admetes, filha de Euristeu. Enfrentá-las só seria possível porque Orítia, a sanguinária comandante das hostes amazônicas estava em campanha, como os heróis haviam averiguado. Mesmo assim serão necessários estratagemas e engenharias, gregos não são bem-vindos nessas paragens.
O que eu não contava era com a curiosidade da Rainha. Nunca imaginei que uma mulher amiga de mulheres se interessasse pela carne masculina. Mas ao ver Hipólita cavalgando em direção ao porto com os olhos cintilando, percebi que ela não desejava apenas a guerra, mas um homem do seu tamanho. Ela poderia amá-lo, já que não haveria como abatê-lo.
Os heróis e tripulantes desembarcam; as guerreiras armam seus pequenos arcos de fatais flechas. Héracles avança pela praia, Hipólita empina o cavalo e galopa ao seu encontro. Os cabelos têm a mesma cor de mel da pele curtida ao sol. Ela é três vezes maior quando porta seu cinto, três vezes invencível, três vezes mais bela.
Será impossível arrancar o cinturão sem seu consentimento, Héracles se assegura, admirando o controle dessa mulher sobre um corpo muito maior do que o dela. O cavalo freia em cima, Héracles permanece imóvel. Hipólita ofusca o semideus com uma nuvem de sombra. Imagina triturá-lo com suas patas centáuricas, certamente, mas acontece o contrário. Sapateia, solta as rédeas e só então arria, caminhando em sua direção. Encaram-se no seco, mas em segundos o olhos recaem nos lábios um do outro e a respiração se alinha.
Hipólita inquere a razão da visita e ele explicita: – Vim buscar seu cinto. Ela elogia o bom humor grego e gargalha, apreciando a sinceridade. E que assim sendo, ficarão a sós quando Selene adornar o céu estrelado. Héracles levanta as sobrancelhas sem entender muito bem, faz um gesto de reverência e dá três longos passos para trás.
Por Nyx, o que deveria ser difícil está ficando simples demais. Ao invés do sangue e da poeira, a praga da camaradagem. Nephele não resolverá nada desta vez. Odeio sujar meus pés de marfim na terra arenosa.
Hipólita tem duas irmãs, Melanipe e Antíope. Reinam sobre cidades vizinhas, mas visitavam Temiscera no atraque das naves gregas e agora ladeiam a Rainha com suas tropas. Nenhum deus do vento ousaria assobiar nos ouvidos das guerreiras em guarda, atentas aos movimentos da tripulação. Até Hipólita terminar as conversações o ar estará parado e a brisa demorará a voltar.
Quando a Lua emerge na linha no mar, Héracles se encaminha à grande tenda. Homens não penetravam nas fortalezas, grutas e casarões; todo e qualquer contato com o sexo oposto se dava em abrigos temporários ou ao ar livre. Hipólita o aguarda sentada sobre um trono feito do couro de pítias líbias e flanqueado de peles, o aroma de figos secos é inebriante. É apenas a segunda vez que se encontram, mas não parecia ser assim.
Hipólita oferece uma taça de hidromel, Héracles aceita com algum receio, mulheres dominam as artes do envenenamento. No entanto, aquela era diferente de todas que conhecera. Não parecia temê-lo, olhava-o com amizade, a amizade que ele só sentira por companheiros de viagem. Mas ao mesmo tempo a guerreira o confundia, a beleza estrangeira o excitava.
Hipólita pede que ele conte suas histórias. Hércules lhe dá detalhes sobre aventuras e lutas mundo afora. Mas antes trata da sua origem, dos desmandos de Euristeu, da terrível fúria que lhe dedico, mais a triste história que levou a cabo sua família, que obviamente não poderia faltar. Hipólita escuta atenta. Héracles, então, quer saber dos costumes das guerreiras.
A rainha narra a tragédia de Lisippa e do seu filho, Tanais, aquele que se apaixona pela própria mãe e em seguida se mata, motivo que leva sua ancestral a desistir da convivência masculina e instaurar o reino das Amazonas. Descreve a fundação das cidades, as expedições e batalhas, dos encontros com homens na primavera. Héracles compreende que as mulheres escolhiam livremente e não tinham vergonha em aceitar seus desejos.
Então ele lhe pede o cinto, mais uma vez. Hipólita responde que o poder está nela mesma e não no objeto, que o cinto é apenas um símbolo da arte guerreira, um pedaço de couro com peles e metais que organizava seu corpo no corpo do cavalo. Poderia considerar o pedido no dia seguinte em reunião com Antíope e Melanipe, se o gesto evitasse o confronto.
Mas para a surpresa de Héracles, no mesmo instante ela desata o cinto. O vestido cai e deixa à mostra o corpo mais espetacular de mulher que o herói veria em toda sua vida. Os seios são rijos e doces como as tâmaras douradas de Temiscera. O ventre liso e queimado de sol, os músculos brilhantes à luz das tochas. Hipólita lança-se sobre ele e o que viria faria a alegria de Afrodite, uma paixão de titãs madrugada adentro.
O dia amanhece chuvoso, Héracles se despede de Hipólita e deixa a tenda. A rainha monta o cavalo e vai de encontro às irmãs para discutir a questão do visitante.
Tudo está indo belissimamente bem e eu não reconheço esse sentimento. O tempo em que homens e mulheres caminhavam juntos acabou. Pois não foi o que aconteceu comigo, a grande Deusa do Céu sob o jugo de Zeus, o usurpador?
Abro a primeira nuvem e desço à terra. Colo os olhos numa amazona e mudo-me nela. A cidade cheira a suor de cavalo, com laivos de brisa marinha. Se eu não fosse uma Deusa, não conteria o asco. Entro em uma roda de jovens mulheres e num vento menor disperso um comentário: Héracles levaria até Euristeu a nossa rainha, não apenas o cinto que dizia desejar, mas a prisão da guerreira. O medo de que a Rainha fosse raptada faz com que a intriga se espalhe em poucos minutos.
Na enorme sala circular onde empresas e invasões são decididas, Antíope e Melanipe escutam Hipólita. A ideia de entregar o cinto é detestável, mas compreendem que o confronto trará perdas, já que não podem contar com Orítia e as melhores combatentes. A batalha será inevitável se o cinturão for negado, há muito em jogo. Hipólita considera que um bom acerto selaria a amizade entre os gregos e as amazonas e traria frutos futuros. A filha do gigante Briaréu confeccionaria outra peça com suas céleres cem mãos e tudo estaria resolvido.
As irmãs encaminham-se para a praia. Antíope toma a linha da esquerda, Melanipe à direita. Hipólita avança em direção à frota. Meu rumor redobra o efeito, apenas um sopro e agitam-se crinas e cabelos. O boato chega no comando e antes que Hipólita possa se aproximar demais, as amazonas atacam, setas voando em riste. Os homens pegos de surpresa reagem furiosos. O sangue corre pelas areias de Temiscera, a luta entre homens e mulheres é a mais assustadora das guerras. Elas estão em maior número, mas entre eles há seis heróis, o que torna a demanda mais acirrada. Mesmo assim, investem em bloco e os empurram novamente para o mar. No meio da confusa retirada dos gregos, entre os brados de guerra, Télamon, furtivo, rapta Melanipe para sua nave.
Eu, Hera, deusa do matrimônio, modifico mais uma vez o curso da história. A partir de agora, até entre as tribos citas, mulheres e homens só conseguirão se entender em atuações diversas e muito bem definidas. Elas cuidarão dos filhos em casa, a amizade masculina será impossível de se conquistar. Não terão mais controle sobre seus corpos e muito menos o poder de escolha. Aquelas que se rebelarem sofrerão, as que não se rebelarem também. A diferença é que estas últimas terão um teto sobre suas cabeças, se a Fortuna estiver por perto. Assim caminhará a humanidade por muitos séculos, até que advenha outra era e a primeira Hera renasça outra vez.
As negociações do resgate Melanipe se acertam rapidamente. Héracles e Hipólita ainda se olhariam fundo, mas agora com mágoa e pesar por saber que jamais voltariam a envolver-se. Não trocam nenhuma palavra. O queixo de Hipólita endurece e seus lábios se contraem ao retirar o cinto e entregá-lo ao inimigo. Héracles o aceita no mesmo instante em que um sorriso irônico e discreto aponta no seu rosto, mudando sua forma de olhar. Hipólita toma a mão de sua irmã sem tirar os olhos dele, e sua expressão agora é de nojo e rejeição.
O nono trabalho está completo, Hércules venceu mais uma vez. Mas o mundo perdeu o que havia de mais perfeito. O amor sem medo.
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