Uma das minhas primeiras viagens aéreas interestaduais foi para São Paulo, em um feriado prolongado no segundo semestre de 1981. O motivo da viagem era um encontro com amigos que fiz nos cursos intensivos de língua alemã, na Casa da Juventude, em Gramado. Como o tempo era curto, a opção mais prática foi viajar de avião. Lembro bem do saguão de desembarque, onde boa parte da turma me esperava com faixas e cartazes. Afinal de contas, eu era um curitibano chegando à cidade grande.
A casa deste meu amigo ficava no arborizado bairro do Pacaembu, na praça Sílvio de Almeida. O terreno era vasto e sua maior parte ficava em uma ribanceira ainda coberta por floresta nativa. Em dias de jogo, podíamos até ouvir o balburdio da torcida no famoso estádio, ladeira abaixo; fora isso o som da natureza imperava. O casarão de dois pavimentos, de estilo inglês, era muito bem arrumado, silencioso e incrivelmente aconchegante. Logo na entrada havia um antigo telefone de parede ainda funcional. Era uma família austera, disciplinada e acolhedora, o que me fez sentir à vontade rapidamente devido à semelhança de costumes. Já conhecia sua irmã pois participou conosco nos mesmos cursos no Rio Grande do Sul. No entanto, o que mais me chamou mais atenção foi o avô de meu amigo, um senhor bem idoso que, segundo me disseram, e para claro, me atormentar, não falava português, apenas alemão. Tive que improvisar um pouco o meu escasso vocabulário para cumprimentá-lo, mas, para minha surpresa e alívio, ele respondeu em português.
As refeições eram memoráveis e pontuais, com todos à mesa. A mãe de meu amigo, pessoa bondosa e uma excelente cozinheira, dava um jeito de fazer um prato especial além do trivial. As sobremesas eram igualmente deliciosas. Seu pai, sempre com um bom conselho ou um assunto nostálgico e interessante, após o almoço preparava um café com imenso cuidado, com grãos moídos na hora. Sua voz grave e sotaque estrangeiro faziam o momento ainda mais agradável. Acompanhando o café, havia um pedaço de chocolate e, às vezes, até um licor. Na sequência, ele acendia seu vistoso cachimbo e o aroma intenso de fumo se espalhava pela casa. Cada refeição se tornava uma experiência gastronômica e cultural única.
Foi assim durante alguns anos, aproveitava as férias e os feriados prolongados para visitar a família, sempre me sentindo em casa. Assim, tive tempo suficiente para decorar o caminho até lá e, um dia, poder chegar de carro sem depender de ajuda.
Em julho de 1983 recebi o convite para ir a Ubatuba. Naquele ano, eles tinham acabado de comprar um novíssimo Chevrolet Monza SL/E 1.8, Hatch, bege com interior marrom, que logo percebi que deveria ser tratado com extremo zelo. Constatei logo que eram bastante cuidadosos com os carros novos, e deu certo, o Monza existe até hoje. Também tinham um Fusca 1300L 1980, com lanternas Fafá usado mais para ir a faculdade. Mas, voltando a história, era para passarmos uns dias na casa de uma senhora, conhecida deles, que na ocasião, apesar de ter um carro, não dirigia mais em estradas, precisando então de alguém para levá-la ao litoral e em contrapartida ficaríamos alguns dias na sua casa. Partimos logo cedo, em uma manhã ensolarada. Meu amigo a levou no carro dela e eu a sua irmã fomos com o Opala verde Folha da família, que estava carregado com a maior parte da bagagem.
Tratava-se de um Opala 2500 Especial, quatro portas, 1974, ano este em que a Chevrolet fez mudanças mecânicas significativas, conseguindo extrair mais 14 cv deixando-o mais econômico, e seguro, adicionando freios a disco na dianteira. O interior era simples, com um painel básico contendo apenas o essencial. O banco dianteiro era inteiriço, e o câmbio de três marchas ficava na coluna de direção. O motor 151 de quatro cilindros desenvolvia 94 cv e tinha 18 kgmf de torque a 3.000rpm. Com nove anos de uso na época, o carro ainda estava muito bem conservado, com pneus diagonais novos e assimétricos, medidas 5,90 x 14. O desenho assimétrico visava reduzir os ruídos desagradáveis produzidos pelos sulcos simétricos dos pneus mais antigos. Com a manutenção em dia e incrivelmente bem cuidado podia chegar a fazer 11 km/l na estrada e 7 km/l na cidade. Seu tanque de 54 litros rendia uma autonomia média de 540 km.
Conduzir o possante, quando parado sempre pingava um pouco de óleo, defeito crítico de toda linha Opala, era prazeroso. Ele rodava silencioso, sem nenhum barulho estranho, e nada parecia estar solto. A embreagem estava bem ajustada, e as marchas tinham engates secos e precisos. A experiência de dirigir por São Paulo, desta vez seguindo o carro da frente sem a preocupação com o percurso e apenas aproveitando o prazer de conduzir, era incomparável.
Quando chegamos à SP125, que dá acesso ao litoral Norte, e começamos a descer a serra, o tempo mudou e uma intensa neblina cobriu toda estrada, o que era até típico para o mês de julho. Percebi que o medidor de temperatura do motor, o único mostrador disponível além do velocímetro, odômetro e do marcador de combustível, começou a cair. A temperatura que, normalmente, nem chegava à metade do medidor, foi diminuindo até quase atingir o nível de “frio”, como se o carro estivesse parado e desligado. Afinal, o que não é um conjunto mecânico funcionando à perfeição? Chegando ao pé da serra e entrando na cidade, a temperatura voltou ao normal.
Durante a estada em Ubatuba, pegamos uma balsa e fomos até Ilhabela. A ideia era contornar a ilha, tentando avançar o máximo possível com o Opala naquelas estradas de terra e pedra que iam se afunilando ao lado de ribanceiras expostas exigindo cuidado extra dos motoristas aventureiros. Assim fomos até onde o carro aguentou, e por precaução, decidimos retornar quando chegamos próximo ao limite do carro e após checarmos se estava tudo bem no motor.
A última saída foi uma visita a Paraty aonde chegamos na mare baixa e ainda era possível entrar com o carro na cidade, lembranças de quando tudo parecia e sim, era mais tranquilo.
Em memória, Sr Walter Bernhard.
(Imagem abertura: Ilustração da descida da serra. Crédito: Fabiano Oliveira da Silva)
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