Em qualquer processo de análise de políticas públicas o exame do Contexto Institucional é indispensável. Tal contexto se refere ao modo de funcionamento das instituições mais relevantes, públicas e privadas, locais e nacionais, bem como às relações que mantêm entre si. O exame do contexto institucional vigente no Rio Grande do Sul permite qualificá-lo como um fator de inviabilização do almejado processo de reconstrução daquele Estado.
As inundações ocorridas no Rio Grande do Sul no final de abril e início de maio do corrente ano, resultado de um volume de chuvas recorde, constituem uma catástrofe imensa e sem precedentes na História local e nacional. As enchentes atingiram cerca de 400 dos 497 municípios daquele Estado, afetando diretamente dois milhões e cem mil dos onze milhões e trezentos mil residentes, desalojando mais de meio milhão e obrigando cerca de 77 mil deles a morarem em abrigos provisórios. Além disso foram mortas 145 pessoas, mais de oitocentas foram feridas e dezenas seguem desaparecidas.
Além do sofrimento humano decorrente da destruição e alagamento de residências ocorreu imensa destruição da infraestrutura de transportes. Dos mais de seis mil km de rodovias federais no Rio Grande do Sul nada menos de cinco mil e duzentos km foram afetados pelas chuvas, o que corresponde a 85% daquela malha viária. Dos mais de dez mil km de rodovias estaduais cerca de oito mil km foram atingidos, o que abrange 82% da extensão disponível. Pelo menos 15 pontes de grandes proporções foram bloqueadas ou destruídas, com muitas das menores sendo levadas pela força das águas.
O sistema aeroportuário foi menos atingido. Contudo, o Aeroporto Internacional Salgado Filho que serve à capital Porto Alegre foi totalmente alagado e suas operações estão suspensas pelos próximos meses. Como resultado, os demais aeroportos do Estado, que em sua maioria estão obsoletos e superados, seguem abertos, mas se encontram sobrecarregados e operando no limite da capacidade.
Os portos sofreram relativamente poucos danos. O de Porto Alegre suspendeu suas operações apenas na vigência da inundação. Os portos de Pelotas e da cidade do Rio Grande praticamente não foram afetados e seguem operando quase que normalmente. Trata-se de um alento no que se refere a manutenção das capacidades logísticas de um Estado submetido à tamanha destruição.
Cabe então avaliar qual papel que pode ser desempenhado por cada uma das instituições relevantes envolvidas no processo de reconstrução. Para começar, cabe citar as mais diretamente ligadas ao atendimento das vítimas e comprometidas com o processo de reconstrução, no caso, os municípios. O cenário gaúcho neste aspecto é desolador.
Dos 497 municípios gaúchos a vasta maioria é inviável do ponto de vista financeiro e administrativo, dada suas minúsculas dimensões e nula capacidade de investimento. A esse respeito veja a coluna “A proliferação descontrolada de municípios no Brasil” para ler clique aqui.
Constam no Estado 389 municípios com menos de vinte mil habitantes. Dentre estes existem 236 que somam menos de cinco mil habitantes. O vigente Estatuto da Cidade desobriga tais “municípios” de manterem e atualizarem um Plano Diretor, o documento legal que é o instrumento básico da política de desenvolvimento, zoneamento e expansão urbana, devendo ser revisto a cada dez anos. Também nos termos da lei vigente nenhum deles é obrigado a manter organizada e instalada entidades de Defesa civil para analisar áreas de risco, identificar ameaças e desenvolver ações para prevenção, mitigação e resposta a desastres.
Em diversas aglomerações a realocação da malha urbana terá de ser integral, a fim de evitar os efeitos de futuras enchentes. Em todos os municípios que foram atingidos pelas chuvas terão de ser desenvolvidos extensos e complexos programas de construção e reconstrução de moradias populares. Ficam então as seguintes questões: como é que “municípios” que são inviáveis financeira e administrativamente poderão criar e manter vastos programas habitacionais e mesmo de realocação de toda malha urbana se estes sequer dispõem de um Plano Diretor? Mais ainda, como poderão tais “municípios” se precaver contra futuros desastres climáticos se não mantém entidades de Defesa Civil? O que se pode concluir é que a proliferação descontrolada de municípios é um obstáculo à reconstrução gaúcha.
Outro obstáculo, no caso, referente a reconstrução da infraestrutura de transporte, diz respeito às privatizações. Com as privatizações foi passado o controle das mais importantes rodovias, estaduais e federais, bem como o entorno e as margens destas consideradas área de domínio, ao controle de entidades privadas. Nenhum dos contratos de concessão previa a reconstrução das rodovias em caso de desastre natural. Mais ainda, diversos trechos de rodovias terão de ser inteiramente realocados, uma vez que se revelaram como responsáveis pelo represamento da água das chuvas.
É o caso de perguntar então: como serão reconstruídas e realocadas as rodovias destruídas pela enchente? A concessão às entidades privadas com fins lucrativos de tantas rodovias estratégicas é compatível com a reconstrução? Como será compatibilizada a realização de lucro pelos concessionários privados com a urgência, profundidade e extensão do processo de reconstrução viária? É altamente provável que a privatização das rodovias se revele incompatível com o processo de reconstrução, tornando-o inviável.
No caso do aeroporto Salgado Filho, o maior e mais importante do Estado, nem cabe falar de privatização, na medida em que seu controle foi repassado a uma empresa estatal de outro país, no caso, da Alemanha. A recente enchente demonstrou que o aeroporto terá de ser inteiramente realocado para um local mais seguro. Tal realocação será compatível com os termos do contrato de concessão firmado com a empresa estatal alemã? E, neste caso, quem assumirá os custos financeiros? Será viável pretender tão imensa mudança e modernização desta infraestrutura aeroportuária enquanto estiver sob controle de uma empresa estatal de outro país? Ou seja, é praticamente certo que a manutenção do controle do aeroporto Salgado Filho por parte de uma estatal estrangeira tornará inviável sua reconstrução e realocação.
Tais considerações são válidas tanto no que se refere à reconstrução das infraestruturas já privatizadas quanto daquelas em vias de virem a ser. Dentre estas se incluem infraestruturas estratégicas como: os portos do Rio Grande do Sul, cujos leilões de privatização foram momentaneamente suspensos, mas de forma alguma cancelados; as instâncias gestoras das tecnologias antienchente da capital do Estado, responsáveis pela operação de diques, comportas e estações de bombeamento, as quais experimentaram em tempos recentes um agressivo processo de sucateamento, também com vistas à sua privatização; e das demais rodovias estratégicas do Estado que também tinham agendada a privatização.
O exame do contexto institucional gaúcho revela que ele tem potencial de relativizar, senão anular, o pretendido impacto das ações tomadas em nível federal. Em 2 de maio o governo federal criou em Brasília um grupo para realizar reuniões diárias com ministros e autoridades para examinar a situação no Rio Grande do Sul. Em 6 de maio foi criada em Porto Alegre uma entidade semelhante para que os ministros tomassem decisões articuladas com as demandas regionais. Finalmente, em 15 de maio, o governo federal criou a Secretaria Extraordinária da Presidência da República para Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, para receber demandas de autoridades locais e propor novas medidas para a reconstrução do Estado.
Além disso, o governo federal destinou recursos da ordem de R$ 62,5 bilhões ao Rio Grande do Sul, antecipando o pagamento de benefícios, suspendendo a amortização da dívida estadual com a União e prorrogando o pagamento de tributos. A despeito de todos esses esforços, parece claro que o contexto institucional vigente no Rio Grande do Sul se constitui em obstáculo – talvez intransponível – à plena reconstrução daquele Estado.
Uma extensa e radical mudança política e institucional terá de ser efetuada, com a extinção – senão permanente, pelo menos temporária – de municípios inviáveis e a reestatização de infraestruturas estratégicas. Sem tais providências a reconstrução do Rio Grande do Sul dificilmente ocorrerá e as medidas paliativas e provisórias vigentes se converterão em iniciativas definitivas.
Dennison de Oliveira é Professor de História e autor de “Urbanização e Industrialização no Paraná” para baixar clique aqui.
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