Foi lançado em Curitiba no último dia 18 o livro “1,2,3,4! Contando o tempo com Os Paralamas do Sucesso” (Editora Máquina de Livros) de autoria de João Barone. No livro o baterista desta famosa banda descreve sua história pessoal e a trajetória do grupo, rememorando uma época significativa da história do rock brasileiro. A obra também tem importância para o entendimento de diferentes aspectos da História Contemporânea do Brasil (1982-2002).
A autobiografia é um dos gêneros literários mais desafiantes para o autor. O primeiro desafio diz respeito ao dilema da auto exposição o que implica em compatibilizar um mínimo de compromisso com a realidade com a necessidade de preservação da própria intimidade. Um segundo desafio diz respeito a contextualização, permitindo ao leitor entender quais eventos e experiências derivaram das opções pessoais do narrador e quais foram devidas às injunções próprias de cada contexto histórico. Finalmente, habilidades redacionais e um firme controle dos diferentes níveis de abstração abordados no texto também são pré-requisitos importantes, não só para a autobiografia em particular, mas também para qualquer obra literária em geral. E a todos esses desafios João Barone atende de forma competente, original e interessante.
Ao recordar sua juventude e os primeiros tempos da sua carreira musical Barone remete, de forma clara, concisa e agradável, a um contexto histórico que costuma ser de difícil compreensão para as gerações mais novas, aquelas que já nasceram sob o domínio da Internet e seus onipresentes smartphones. Por outro lado, entrega um texto tremendamente evocativo e de alto significado emocional para todos aqueles que foram contemporâneos dos eventos que descreve.
O ponto de partida da narrativa é o verão de 1982, marcado pelo declínio da Ditadura Militar (1964-1985) e os correspondentes anseios coletivos de liberdade criativa e de expressão. No que se refere ao período Barone destaca a imensa importância da Rádio FM Fluminense, cujo repertório alternativo e diversificado ajudou a criar e expandir um novo público para o gênero Rock. Como pontua o autor “Bons tempos em que universitários gostavam de rock”. Ainda mais importante foi o impacto – tardio, mas ainda assim explosivo – da chegada do Movimento Punk ao Brasil com uma nova abordagem contestatória, uma nova estética rude e chocante e, principalmente, um irresistível apelo para que todos se engajassem em fazer suas próprias músicas.
As incríveis limitações de um mundo puramente analógico são todas citadas e comentadas, constituindo um importante depoimento para a compreensão daquela época e seus desafios. Lá estão os telefones fixos que muita pouca gente tinha em casa; os telefones públicos, os onipresentes “orelhões”; as bancas de jornais que vendiam centenas de publicações impressas diferentes, incluindo revistas importadas indispensáveis para a atualização dos músicos como a Guitar Player, a Modern Drummer, a Rolling Stone. E assim sucessivamente.
Os obstáculos colocados à carreira musical por diferentes instituições também são abordados. Era uma época em que se dependia de grandes gravadoras para se lançar no mercado musical. O autor descreve a incrível dificuldade que era gravar uma fita de demonstração, a ser enviada a uma potencial gravadora, num estúdio de gravação alugado; e, as limitações técnicas que recaíam sobre as gravações de rock em estúdios de tecnologia ultrapassada. Eram os tempos em que obter contrato com uma gravadora era, além da possibilidade de poder gravar e distribuir discos, a garantia de que esta iria acionar a imprensa e obter para o artista alguma exposição na mídia televisiva e radiofônica.
Também é mencionada a exigência então obrigatória da carteira de músico profissional emitida pela Ordem dos Músicos do Brasil (OMB) para se apresentar em shows ao vivo. Todos os aspirantes à carreira musical tinham que passar por uma prova prática numa agência da OMB para obter a carteira de músico profissional, exigência que só seria extinta em 2001.
O autor também aborda as questões afetas à censura das letras das músicas, então exercida pela Polícia Federal. Para tornar completa a tríade de instituições que então assoberbavam o trabalho dos músicos caberia falar do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD) com suas exigências estapafúrdias e desproporcionais de cobrança de taxas mesmo no caso de os artistas tocarem apenas músicas de sua autoria, um dos poucos aspectos relevantes do período que não foi desenvolvido pelo autor.
Várias páginas são dedicadas à dificuldade de obter bons instrumentos musicais num contexto de incipiência da indústria nacional e da cobrança de altas taxas de importação, estas últimas criadas para proteger os produtores locais da concorrência estrangeira. A proibição ou restrição da importação de bens que tivessem um similar fabricado nacionalmente foi uma das características fundamentais do Modelo Nacional-Desenvolvimentista (1930-1990) e o autor nota seus efeitos deletérios, na forma de proteção à produtores caros e ineficientes.
O texto é organizado de forma cronológica e redigido com fluência e estilo. O autor é apresentado ao contexto em que os discos de vinil dão lugar aos CDs; o surgimento da Music Television (MTV) no Brasil; o aparecimento das baterias digitais programáveis e o sampler; a substituição de fitas de gravação de estúdio por arquivos digitais; a introdução de programas de gravação e mixagem como o Pro Tools; e o envolvimento do autor como a modalidade da educação remota ou a distância com o lançamento de suas vídeo aulas de bateria ainda no século passado.
Mas o aspecto mais importante e sensacional do livro se refere mesmo à densidade e profundidade da descrição dos diferentes processos de produção das músicas do grupo. O autor dedica várias páginas e mesmo capítulos inteiros à descrição de como as músicas dos Paralamas do Sucesso foram compostas, arranjadas, executadas, gravadas e mixadas. E não é senão isso que se espera de uma autobiografia de um músico: os fãs e demais interessados no assunto querem mais que tudo é saber como seus ídolos criaram e desenvolveram sua arte. E nisso o livro de Barone chega a ser superlativo.
Para aqueles que como eu se decepcionaram, por exemplo, com as autobiografias de músicos como Eric Clapton e Keith Richards, as quais dedicam apenas poucas linhas a descrever como foram produzidos seus discos clássicos, o trabalho de João Barone se constitui em uma imensa fonte de prazer tanto literário quanto histórico. Lá estão narradas e contextualizadas as diferentes fases do processo criativo, tanto nos seus aspectos técnicos quanto artísticos, que redundou na composição e produção dos álbuns Cinema Mudo (1983), O Passo do Lui (1984), Selvagem? (1986), Bora-Bora (1988), Big Bang (1989), Os Grãos (1991), Severino (1994), Nove Luas (1996) e Hey Na Na (1998).
Também os limites e possibilidades das apresentações ao vivo neste período são examinados pelo autor de forma muito interessante, senão comovente. O autor aborda as implicações do uso de diferentes espaços de shows com sua acústica peculiar; os avanços na amplificação do som para grandes públicos e do retorno para os músicos no palco; as características de diferentes microfones e mesas de som, e assim sucessivamente.
Enfim, há que se recomendar muito a leitura do livro “1,2,3,4! Contando o tempo com Os Paralamas do Sucesso” de João Barone, tanto pela forma quanto pelo conteúdo. Embora não seja de forma alguma obrigatório, deixo aqui duas sugestões para se ampliar ao máximo o prazer que a leitura deste livro poderá proporcionar a todos.
A primeira é ler antes o primeiro livro de João Barone “A minha Segunda Guerra” (2009) no qual ele descreve a relação que teve durante sua infância com este conflito, através de filmes, livros, documentários, plastimodelismo e, principalmente, brinquedos e brincadeiras. Aquela época entre os meninos era – segundo o saudoso poeta Renato Russo – extremamente divertida e emocionante a brincadeira de “fingir ser soldado a tarde inteira”. A leitura desse livro permite entender melhor a transição de um interesse pessoal (a Segunda Guerra Mundial) na infância para outro (rock e gêneros musicais associados) na adolescência e juventude.
A segunda dica é ler o livro e ao mesmo tempo ouvir as músicas dos Paralamas do Sucesso. Pode ser muito mais emocionante e divertido ler sobre como tantas músicas clássicas e eternas foram criadas enquanto se escuta os discos do grupo. Mas, mesmo lendo sob silêncio, será difícil deixar de escutar na memória afetiva, à medida que forem citadas, no mínimo as músicas extensivamente executadas nas estações de rádio brasileiras como Óculos, Meu erro, Ska, Me liga, Alagados, Você, Melô do Marinheiro, Quase um Segundo, O Beco, Lanterna dos Afogados, Tendo a Lua, Sábado, La Bela Luna, Lourinha Bombril dentre tantas outras.
Fica para o futuro a expectativa que o autor dê sequência a este livro. Aguardamos para breve que haja outra publicação de memórias do autor, desta vez cobrindo o período abarcado entre o ano de 2002 e o presente quando, na minha modesta opinião, o grupo lançou dois dos seus melhores discos: Longo Caminho (2002) e Sinais do Sim (2017).
Dennison de Oliveira é Professor Sênior de História na UFPR e autor de “História do Brasil: política e economia” para adquirir clique aqui.
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