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DENNISON-CABECA-COLUNA

A marginalização da História não-ficcional

24/06/2025

A atual hegemonia da cultura do politicamente “correto” é incompatível com a prática da disciplina da História. A imposição de tantas censuras e restrições de ordem moral ao exercício do pensamento e da reflexão histórica tende a marginalizar a História não-ficcional.

Dentre as várias definições possíveis para a disciplina da História cabe citar a de Edward Gibbon (1737 – 1794). Para o autor do clássico “A História do Declínio e Queda do Império Romano” a História é, de fato, “pouco mais que o registro dos crimes, loucuras e desgraças da humanidade”. Assim, pretender impor uma versão da História composta apenas por eventos, personagens e fatos politicamente “corretos” fará com que em breve toda História não ficcional seja marginalizada. No limite, a História enquanto disciplina acadêmica poderia vir a ser inviabilizada, sendo extinta, inclusive criminalizada.

É notável a predominância e de uma versão maniqueísta, simplória, moralista, binária e politicamente “correta” da História que atende a interesses eleitoreiros, populistas, demagógicos e fundamentalmente alheios às finalidades sociais, políticas e culturais a que a disciplina deveria atender. Um resultado de tal prática é impedir a coletividade de discutir a sua própria História em bases racionais, científicas e objetivas. Os exemplos abundam. Vale a pena citar dois dos casos mais recentes.

No Ceará foram retirados do espaço público os restos mortais do General Castello Branco, o primeiro presidente (1964-1966) da Ditadura Militar (1964-1985). Em seu lugar foi criado um memorial supostamente dedicado à História da Escravidão. Contudo, um exame detalhado da proposta revela que, na realidade, não se trata exatamente de um memorial sobre escravidão no Ceará (1742-1884) mas sim de lembrar apenas o fim dela, isto é, a data da abolição do trabalho escravo naquela região (1884). A motivação para tais mudanças é bem evidente: é mais “bonito” e politicamente “aceitável” lembrar do dia da abolição do que de mais de um século de escravidão.

Outra questão é o ocultamento deliberado da participação dos indígenas locais na escravização de membros de tribos rivais. Na versão politicamente “correta” da História os indígenas são sempre vítimas dos brancos, jamais aparecem como realmente foram na realidade histórica, isto é, colaboradores ativos dos agentes da colonização na redução e dominação imposta aos seus rivais.

Outra questão relevante é que jamais devemos esquecer quem foi o General Castello Branco e o que significou o seu governo. A retirada dos seus restos mortais do espaço público certamente irá contribuir para seu apagamento e esquecimento. A importância de tal personalidade histórica pode ser avaliada em artigo desta coluna em “As reformas do governo Castello Branco e seu legado (1964-1966)” para ler clique aqui.

Outro exemplo recente deste tipo de deturpação histórica foi a mudança no nome do campus da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O objetivo declarado era o de retirar a homenagem ao reitor que atuou na ditadura militar. Aqui a fraude histórica se torna ainda mais grave, por se tratar de instituição dedicada à pesquisa científica – inclusive na área da História.

Na estorinha bonitinha e falsa que as Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) contam sobre si mesmas só teria havido resistência à Ditadura Militar. Segundo tal discurso ninguém nas Universidades aderiu ao regime militar, todos resistiram. É realmente surpreendente que tal regime tenha durado mais de vinte anos já que ninguém o apoiava, pelo contrário, todos teria se irmanado na crítica e combate à ditadura.

Como resultado, se conclui que somente um reitor malvadão, cujo nome agora é apagado para não lembrarmos nem dele e nem de tudo o que fez pela Universidade, aparece como apoiador da Ditadura Militar. Não por acaso, esta também é a situação da UFPR, vejam em “A UFPR e a Ditadura Militar”. Para ler clique aqui.

É de se imaginar as consequências da imposição de tais ficções tanto sobre a reconstituição histórica quanto sobre a tentativa de usar dela para entender o presente. Será extremamente difícil entender a abolição do trabalho escravo se não rememorarmos a escravidão em si: uma instituição nacional, largamente consensual, naturalizada e socialmente aceita durante séculos, a ponto de vários dos escravos libertos se tornarem eles mesmos proprietários de escravos. Uma vez mais a realidade histórica se antagoniza com o discurso politicamente “correto” segundo o qual os únicos interessados na manutenção da escravidão eram os brancos, já que todos os negros teriam sido críticos e combatentes do regime de trabalho escravo.

No que se refere à Ditadura Militar será impossível entender a prolongada duração do regime quando se rememora exclusivamente a resistência democrática. O apagamento histórico da larga adesão da maioria da sociedade à Ditadura Militar, inclusive de membros da Universidade, tem sérias consequências. Ao invés de uma reflexão histórica que contextualize a coexistência da repressão política com o desenvolvimento das IFES se assiste à focalização das iniciativas oficiais apenas no binômio repressão-resistência, perdendo-se de vista tanto o importante papel positivo da Ditadura na construção do atual sistema de ensino superior do país quanto a vital contribuição das IFES para a modernização econômica e o desenvolvimento social do país naquele período.

As visões do passado a partir do politicamente “correto” tem que ser denunciadas e expostas em suas mentiras e deformações históricas.


Dennison de Oliveira é Professor Sênior de História no Programa de Mestrado Profissional em Ensino de História da UFPR e autor do livro “Professor-pesquisador em educação histórica” (Intersaberes, 2012) para adquirir clique aqui


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