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DENNISON-CABECA-COLUNA

A partilha da Ucrânia

11/03/2025

A administração federal estadunidense que tomou posse em 20 de janeiro mudou radicalmente a paisagem estratégica na Guerra da Ucrânia em desfavor dos ucranianos. Ao mesmo tempo, a situação tática nos campos de batalha favorece cada vez mais as forças russas. Não se pode descartar que venha a ocorrer um colapso militar e político que leve a completa desintegração da Ucrânia e a subsequente partilha de seu território entre os países vizinhos.

Dez meses atrás essa coluna já antecipava algumas das tendências que hoje estão sendo observadas. A esse respeito ler “A possível contraofensiva russa e suas implicações” publicada em 07/05/2024 disponível aqui. Naquela época antecipamos que ocorreria a manutenção do esforço ofensivo russo de forma disseminada por toda linha de frente, impondo aos ucranianos uma cara e sangrenta guerra de atrito na qual seriam forçados a combater em desvantagem permanente. O prognostico era de que não ocorreria nenhuma grande vitória de sentido estratégico por parte dos russos; que seriam feitos poucos prisioneiros; que seria conquistado terreno de forma lenta e gradual; que uma tal ofensiva em ampla frente poderia ser ainda mais alargada para incluir ataques terrestres russos também nos fronts que até então estavam relativamente inativos.

Agora já é possível constatar o acerto destes prognósticos. Os avanços russos originalmente ocorreram nos Oblasts de Donetsk e Luhansk. Posteriormente englobaram as províncias de Zaporizhia e Kherson, onde diversas cabeças de ponte russas foram estabelecidas na margem ucraniana do Rio Dniepr. Em todos esses teatros de operações ocorrem avanços russos lentos, mas contínuos e imparáveis pelos ucranianos. Há oito meses intuíamos que se os ucranianos cedessem territórios e perdessem efetivos militares de forma gradual e inexorável como vem ocorrendo desde então, provavelmente haveria mais tempo para os negociadores políticos chegarem a um acordo que suspendesse ou encerrasse a Guerra da Ucrânia em bases menos ruinosas para os ucranianos. Agora já não é mais assim.

Ocorre que a deterioração da situação tática ucraniana acelerou a partir da Ofensiva em Kursk, como observamos em nossa coluna “A ofensiva ucraniana em Kursk e a Terceira Guerra Mundial” publicada em 27/08/2024. O texto se encontra disponível aqui.

Há sete meses já se sabia que, depois de obtida uma surpresa inicial, as tropas ucranianas avançaram em poucos dias entre 15 e 30 Km sobre a Província de Kursk. Mas, desde então, a defesa russa se organizou e reforçou esse setor até então inativo da linha de frente. Ao desfechar a ofensiva os ucranianos empregaram seis brigadas de diferentes tipos. Em duas semanas estes efetivos cresceram para 12 brigadas. Atualmente já foram identificadas 19 brigadas ucranianas atuando em Kursk.

Mas, mesmo assim, a ofensiva ucraniana logo perdeu impulso e atualmente se encontra em franca retirada, tendo perdido quase todo território que havia conquistado. Pior ainda, a cada dia cresce a ameaça do bolsão em Kursk vir a ser cercado pelos russos, o que implicaria na perda total de todos os efetivos militares ucranianos ali empregados.

A nova administração federal estadunidense tornou a situação ucraniana ainda pior. Repentinamente foram cortados todos os fornecimentos de bens militares dos EUA, bem como encerrado o repasse de informações obtidas pela inteligência militar estadunidense e desligados os serviços de comunicações até então oferecidos para a Ucrânia. Ao mesmo tempo os EUA começaram a pressionar o governo ucraniano a entrar em negociações com os russos a fim de acabar com a guerra o mais rapidamente possível. O presidente estadunidense também abriu um canal direto de negociação com os russos, à revelia dos ucranianos.

Diversos países da União Europeia se apresaram a garantir que seguiriam apoiando a Ucrânia com as armas, munições e informações que deixaram de ser fornecidas pelos EUA. Isso pode prolongar o conflito por mais vários meses, mas de forma alguma irá possibilitar a Ucrânia impedir a derrota. A corajosa resistência ucraniana, privada do apoio dos EUA, não será capaz de impedir o avanço russo. Logo estarão esgotados os recursos materiais e humanos de que ainda dispõe.

Ao mesmo tempo o Governo Zelensky enfrenta imensa crise de legitimidade, interna e externa. Internamente tem que encarar o desgaste derivado de três anos inteiros de guerra, caracterizados por destruições sistemáticas por todo país, inflação, carestia, falta de perspectivas para o futuro, milhões de deslocados internos, outros milhões refugiados nos países vizinhos, além do descontentamento geral pelo fechamento dos partidos políticos, sindicatos, o fim da imprensa livre e, como resultado das perdas humanas no front, um crescente aumento da resistência ao recrutamento forçado dos cidadãos para lutarem na linha de frente. Externamente, o Governo Zelensky que jamais foi reconhecido pelos russos, agora enfrenta a desaprovação e crítica do governo dos EUA.

É impossível prever o futuro do Governo Zelensky. Mas se pode colocar a hipótese de que venha a ser derrubado ou forçado a renunciar, abrindo uma era de caos político e tumulto social que atingiria todo país. Nesse cenário os russos estarão habilitados a ocupar todas as regiões da Ucrânia que desejarem.

Na ausência de qualquer governo viável, é perfeitamente possível que os países vizinhos intervenham a fim de garantir a segurança de suas minorias nacionais que residem em terras ucranianas. Por exemplo, a Polônia poderia ocupar entre outros o Oblast de Lviv; a Eslováquia poderia ocupar a Transcarpátia; a Romênia poderia tomar para si o Oblast de Chernivtsi.

A derrota militar sempre teve o potencial de vir a anular ou reduzir a independência nacional ucraniana. Os sinistros acordos sigilosos de cessão de direitos de mineração de vários materiais estratégicos da Ucrânia aos britânicos em janeiro e a tentativa de replicá-los aos Estados Unidos em fevereiro se constituem em fortes indícios de que este processo já está em curso.

Mas se a derrota militar se seguir o caos político ou um contexto revolucionário, daí não se pode excluir a possibilidade de que venha a ter lugar até mesmo a partilha da Ucrânia – de toda Ucrânia.


Dennison de Oliveira é Professor Sênior no Mestrado Profissional em Ensino de História da UFPR e autor do livro “Para Entender a Segunda Guerra Mundial – Síntese Histórica” (Juruá, 2020) disponível aqui.

Para ler as outras colunas de Dennison de Oliveira clique aqui.

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