O esgotamento da Ofensiva Ucraniana em dezembro de 2023 foi sucedido neste ano pela retomada da iniciativa por parte das forças armadas russas em praticamente toda linha de frente. Se a tendência atual for mantida cabe especular sobre a forma que irá assumir o desenvolvimento de uma possível contraofensiva russa e quais serão suas implicações sobre o desfecho da Guerra da Ucrânia.
A Ofensiva Ucraniana iniciada em junho de 2023 foi esgotada em sucessivos ataques contra as linhas de defesa russas previamente preparadas, bem como pela falta de apoio aéreo e meios materiais, humanos e logísticos suficientes. Em parte alguma a ofensiva ucraniana logrou avançar além da primeira das três linhas de defesa de fortificações e obstáculos que haviam sido construídas anteriormente pelos russos.
Provavelmente fatores de ordem política levaram os ucranianos à manutenção de esforços cada vez maiores em troca de avanços decrescentes. A necessidade de manter os países patrocinadores coligados na OTAN seguindo a acreditar em uma vitória ucraniana deve ter pesado na decisão de manter a ofensiva, mesmo quando não se justificavam mais as perdas sofridas em comparação aos ganhos obtidos. Desde então a iniciativa passou para as forças armadas russas que escolhem onde, quando e com que meios querem atacar.
No momento em que este texto é escrito se verificam combates em praticamente toda linha de contato entre ucranianos e russos. Todo front está literalmente pegando fogo, com engajamentos de intensidade crescente. Mesmo onde não se verificam extensos combates em terra como em certos trechos da fronteira da Ucrânia com a Rússia, especificamente nos Oblasts de Kharkhiv e Sumy, ocorrem bombardeios com a troca de fogo de ambos com drones, misseis, foguetes e canhões.
Os esforços ofensivos russos principais ocorrem nos Oblasts de Luhansk, Donetsk e Zaporizhzhia. No Oblast de Kherson o largo Rio Dnieper separa os oponentes e mantém ambos os lados restritos à bombardeios mútuos, com escaramuças eventuais em algumas poucas ilhas. Se presumirmos que os russos tenham reservas suficientes para continuar atacando, cabe perguntar então qual será a forma que irá assumir a contraofensiva russa? Quais seriam as implicações de cada uma sobre o desfecho da Guerra da Ucrânia? À luz do estudo da História Militar russa pelo menos duas linhas de ação podem ser consideradas possíveis.
A primeira opção dos russos seria atacar em um ou dois eixos principais, em locais bem determinados, com grande concentração de forças, visando romper de forma decisiva as linhas de defesa inimigas e penetrar em profundidade na retaguarda ocupada pelos ucranianos, provocando resultados de sentido estratégico. Dentre estes cabe citar o cerco ou a destruição de importantes efetivos de tropas e meios militares ucranianos e/ou a tomada de vastas porções de território, como em parte os ucranianos conseguiram fazer na ofensiva anterior do início de 2023. Trata-se do conhecido princípio da adequada concentração de forças num local que se considera decisivo.
Uma segunda possibilidade seria a manutenção do atual esforço ofensivo russo de forma disseminada por toda linha de frente, impondo aos ucranianos uma cara e sangrenta guerra de atrito na qual são forçados a combater em desvantagens permanentes. Neste caso não ocorreria nenhuma grande vitória de sentido estratégico por parte dos russos. Seriam feitos poucos prisioneiros e conquistado terreno de forma lenta e gradual.
Em compensação, os riscos e perdas a que os atacantes russos se expõe seriam consideravelmente menores. O sentido geral dos ataques seria dado pelo oportunismo tático, atacando apenas onde os ucranianos revelassem ser mais fracos e avançando onde o grau de exposição ao fogo dos defensores é menor. É importante notar que ambas as possibilidades têm precedentes na História Militar russa.
O cerco e a captura de grandes formações de tropas e meios militares inimigos foi a forma pela qual as forças armadas da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) destruiu a maior parte dos efetivos e armamentos da Alemanha Nazista quando se enfrentaram na Segunda Guerra Mundial (1941-1945). Os episódios de Stalingrado (1943) e da Operação Bagration (1944) são exemplos dessa abordagem.
Um exemplo da outra modalidade remonta à Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Trata-se da ofensiva russa de 1916 que é conhecida pelo nome de seu comandante e idealizador, o General Alexey Brusilov. A ofensiva Brusilov foi desfechada num amplo front de mais de mil quilômetros de extensão, entre as cidades de Pinsk na atual Bielorrússia, então Império Russo, até a localidade de Cimpulung na atual Romênia, àquela época parte do Império Austro-Húngaro. Tamanha dispersão de esforços ao longo de uma frente tão extensa afrontava o princípio clássico da concentração de forças, mas se revelou extremamente útil para iludir os defensores austro-húngaros sobre o verdadeiro objetivo do ataque principal, bem como possibilitava aos comandantes locais escolher atacar onde sabiam ser as defesas inimigas mais fracas e suas tropas menos expostas ao fogo inimigo.
Os ganhos da Ofensiva Brusilov foram evidentes. Ela provocou tantos colapsos locais que eles acabaram se somando para levar a uma ruptura geral das linhas de defesa inimigas. Ocorreu a retomada de várias cidades importantes que até então estavam em mãos dos austro-húngaros, bem como a ocupação de territórios destes, em casos extremos até os Montes Cárpatos, quase cem quilômetros distantes do ponto de partida da ofensiva russa.
Também houve efeitos de longo prazo derivados do sucesso russo. As perdas infligidas ao Império Austro-Húngaro o incapacitaram a montar novos esforços ofensivos e a Romênia, até então neutra, decidiu entrar no conflito junto aos Aliados, declarando guerra às Potências Centrais em 27 de agosto de 1916. Ou seja, mesmo uma sucessão de ganhos apenas de escala de ordem tática não deixa de poder vir a ter um amplo sentido estratégico.
No que se refere à atual Guerra da Ucrânia existem diversas vantagens do defensor em relação ao atacante. Também é importante considerar os riscos de exposição à vigilância e ao fogo inimigos de grandes efetivos que se concentram para atacar um ponto decisivo. Nesse sentido, é improvável que os russos venham a desencadear uma enorme ofensiva de real sentido estratégico nos próximos meses, capaz de destruir substanciais efetivos militares inimigos e retomar extensas porções de território ucraniano, embora essa hipótese não possa ser descartada. Porém, parece ser bem mais provável a continuidade da atual ofensiva em larga frente que, aliás, poderá ser ainda mais alargada para incluir ataques terrestres russos também nos até então relativamente inativos fronts dos Oblasts ucranianos de Kharkhiv e Sumy.
Uma decisão militar russa deste tipo teria consequências políticas no sentido de favorecer uma saída negociada para o conflito. Se os ucranianos cederem territórios e perderem efetivos de forma gradual e inexorável como vem ocorrendo, provavelmente haverá mais tempo para os negociadores políticos chegarem a um acordo que suspenda ou encerre a Guerra da Ucrânia em bases menos ruinosas para os ucranianos. Já uma grande ofensiva de sentido estratégico que pudesse provocar um súbito e imediato colapso da resistência ucraniana certamente exporia o regime de Kiev à imposição unilateral das exigências maximalistas russas as quais poderiam ameaçar até mesmo a independência ucraniana.
Parece haver um consenso atualmente no sentido de imputar à decisão ucraniana em 2022 de tentar derrotar militarmente a Rússia, implicando em desistência das negociações que poderiam ter evitado a escalada da guerra, a condição de um grande erro estratégico do governo Zelensky. Nos próximos meses os ucranianos serão colocados diante de escolhas ainda mais perigosas, cujas consequências podem ter impacto desastroso sobre o país e a própria existência da Ucrânia como nação.
Dennison de Oliveira é professor de história na UFPR e autor de “Para Entender a Segunda Guerra Mundial – Síntese Histórica” (Juruá, 2020) disponível aqui.
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