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A UFPR e a Ditadura Militar

09/04/2024
ufpr

Decorridos trinta e seis anos de vigência do atual regime constitucional (1988) e outros trinta e nove anos do fim da Ditadura Militar (1964-1985) a Universidade Federal do Paraná (UFPR) segue mantendo uma relação conflituosa com a rememoração do período. O problema deriva do fato de que a Universidade segue sem contar com uma História Institucional, uma política de preservação histórica e sequer dispor de um esboço de memória oficial. A recente decisão de cassar os títulos de Doutor Honoris Causa concedidos pela UFPR à três diferentes generais-presidentes do regime militar é um sintoma a mais do problema.

 

A relação da UFPR com a Ditadura Militar, geralmente, foi pautada pelas mesmas determinações de ordem estrutural que afetaram a maioria das demais Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) no período. Por um lado, o regime militar investiu maciçamente na ampliação e modernização das IFES; por outro, exerceu vigilância e repressão sobre alunos, funcionários e estudantes. É notável a dificuldade da maioria das IFES em rememorar seu crescimento e aperfeiçoamento durante a Ditadura, bem como o adesismo político daí decorrente, em contraste com a recorrência com que se celebra apenas a resistência ao regime.

 

A Universidade Pública brasileira tal qual a conhecemos hoje é resultado das políticas adotadas pela Ditadura Militar. Em 1968 teve início a implantação do Regime de Tempo Integral e Dedicação Exclusiva (DE) permitindo substanciais aumentos salariais aos professores e criando condições para o financiamento de suas pesquisas. Aumentou muito também o corpo docente das IFES que passou de 15 mil professores em 1968 para 38 mil em 1978, dos quais metade foi enquadrado no regime de DE.

 

A federalização de Universidades e a criação de novas IFES cresceu 50% durante a ditadura. Em 1964, havia 21 universidades federais e faculdades isoladas, mas em 1979 o número já havia crescido para 33. Como resultado o número de estudantes matriculados nessas instituições passou de 100 mil em 1968 para 185 mil em 1973 e 290 mil em 1979.

 

A pós-graduação conheceu durante a Ditadura Militar um crescimento ainda mais expressivo. Em 1964 existiam 23 cursos deste tipo no Brasil, dez anos depois já havia 403. Em 1978 havia 648 mestrados e 228 doutorados no Brasil, quase todos mantidos nas Universidades públicas. Em 1984 o Brasil dispunha de 792 cursos de mestrado e 333 cursos de doutorado no país, caracterizando a criação e expansão da pós-graduação nas IFES como um bem-sucedido resultado das políticas públicas desenvolvidas pela Ditadura Militar.

 

Um aspecto fundamental na criação e consolidação de novos cursos de pós-graduação foi a expansão do número de bolsas de estudo concedidas que passou de 5.500 em 1975 para 14.400 em 1979. A avaliação sistemática destes cursos pelo Ministério da Educação (MEC) teve início em 1976, sendo mantida até hoje. A pós-graduação em História da UFPR, por exemplo, data deste período com a criação do mestrado em 1973 e do doutorado em 1981.

 

Além da criação de cursos de mestrado e doutorado no Brasil a Ditadura Militar também investiu no pagamento de bolsas para estudantes brasileiros no exterior. Havia 400 destas bolsas em 1975 que subiram para 2.550 em 1979.

 

O rápido crescimento das IFES sob a Ditadura Militar guarda estreita relação com as demais políticas de desenvolvimento econômico então adotadas, dentre as quais merece destaque o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) vigente durante o governo de Ernesto Geisel (1974-1978). Por exemplo, seria difícil imaginar a construção de obras de sentido estratégico como a usina hidrelétrica de Itaipu (PR), as hidrelétricas da Companhia Paranaense de Energia (COPEL), o metrô (RJ e SP), o programa de construção de usinas nucleares (RJ), a imensa expansão da malha rodoviária federal, o lançamento do primeiro satélite de telecomunicações nacional ou mesmo de obras de importância apenas local como a reforma urbana de Curitiba (1971-1985) sem o influxo crescente de novos profissionais formados e capacitados nas diferentes IFES. A expansão e modernização das Universidades se dava de forma paralela e imbricada com o crescimento e o desenvolvimento econômico nacional, um aspecto que diferentes políticas extensionistas então desenvolvidas como o Projeto Rondon buscava enfatizar.

 

Contudo, mesmo hoje em dia, tais dimensões da realidade dificilmente chegam a fazer parte da História Institucional das IFES. Ao invés de uma política de preservação histórica que contextualize a coexistência da repressão política com o desenvolvimento das IFES se assiste à focalização das iniciativas oficiais apenas no binômio repressão-resistência, perdendo-se de vista tanto o importante papel da Ditadura na construção do atual sistema de ensino superior do país quanto a vital contribuição das IFES para a modernização econômica e o desenvolvimento social do país naquele período.

 

Daí o constrangimento com a recente descoberta de que o Conselho Universitário da UFPR concedeu o título de doutor Honoris Causa aos generais Castello Branco em 1964, a Arthur da Costa e Silva em 1968 e a Ernesto Geisel em 1976. Tais fatos permaneceram desconhecidos mesmo após o desenvolvimento das atividades de uma Comissão da Verdade, Memória e Justiça na UFPR ocorrido entre 2008 e 2016. Tal comissão teve como finalidade pesquisar as ações de repressão e censura contra estudantes, servidores técnicos administrativos e docentes durante o regime militar. Contudo, seus membros sequer chegaram a tomaram conhecimento das homenagens prestadas publicamente pela UFPR aos generais-ditadores.

 

Foi somente ano passado por conta de gestões do Ministério Público Federal e que envolveram a mais alta administração da UFPR que tais homenagens foram, finalmente, reveladas. O episódio é significativo por explicitar a inexistência de um projeto de pesquisa da História Institucional da Universidade, bem como a falta de uma política oficial de preservação histórica e de iniciativas extensionistas que contribuam no sentido da constituição de uma memória oficial da UFPR e da permanente reflexão sobre o papel social da instituição em diferentes contextos históricos.

 

A insistência numa versão maniqueísta, simplória, moralista, binária e politicamente “correta” da história da UFPR atende a interesses eleitoreiros, populistas, demagógicos e fundamentalmente alheios às finalidades sociais a que a Universidade deve atender. Um resultado de tal política é que ela acaba impedindo seus membros de discutir a História da instituição em bases racionais, científicas e objetivas. A questão se torna ainda mais grave se levarmos em contrapartida a vigente alienação política e administrativa da UFPR com relação à ditadura vigente, no caso, a Ditadura do Judiciário, a qual há tempos vimos denunciando, veja aqui.

 

Não faltam aqueles que hoje se escandalizam com o fato de que a UFPR tenha, na vigência da Ditadura Militar, homenageado publicamente três dos generais-ditadores. Mas, se a UFPR não rever a forma pela qual usa da própria História para entender a realidade atual é perfeitamente possível que daqui a 30 ou 40 anos estejamos assistindo a algum tipo de pedido de desculpas públicas da Universidade pela sua alienação para com a nefasta ação da Ditadura do Judiciário e o descaso para com as vítimas. O velho e batido chavão segundo o qual a ignorância da História favorece a repetição de erros parece mais atual do que nunca.


Dennison de Oliveira é professor de História na UFPR e co-autor do documento “Parecer sobre a reconstituição do monumento em homenagem ao ex-reitor Flávio Suplicy de Lacerda originalmente posicionado no Jardim da Reitoria” (2016) para ler clique aqui.


Leia outras colunas do Dennison de Oliveira aqui.

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