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DENNISON-CABECA-COLUNA

Audiovisual, História e Ditadura Militar (1979-2003)

27/05/2025

No início do atual século ocorreu a sedimentação de uma determinada forma pela qual o audiovisual retrata o Regime Militar brasileiro (1964-1985). Tais conteúdos fílmicos provavelmente desempenham um papel importante, senão decisivo, na formatação da memória coletiva sobre aquele período. A produção audiovisual realizada entre 1979 e 2003 permite colocar como problema o entendimento das relações entre Indústria Cultural e História.

A produção de filmes sobre a ditadura começa a se intensificar a partir do início do processo de abertura política desencadeado pelo último presidente do regime, o General João Figueiredo, em 1979. O propósito de “fazer deste país uma democracia”, o relaxamento à censura, a Lei de Anistia, o retorno dos exilados ao país, criaram as condições que permitiram a realização de pelo menos três filmes importantes sobre a ditadura e as lutas sociais do período: “O Bom Burgues” de Osvaldo Caldeira, lançado em 1979, “Eles não usam Black Tie” de Leon Hirzman, produzido a partir de 1979 e lançado em 1981 e “Pra frente Brasil” de Roberto Farias de 1982.

“O Bom burgues” é, talvez, o único filme em que os limites e possibilidades das diversas formas de luta contra a ditadura são explicitamente colocados em debate, resultando na melancólica constatação de que a opção da esquerda derrotada em 1964 pela luta armada fora um equivoco e uma tragédia. Tratava-se de uma reflexão adequada aos tempos em que a mobilização popular, o ativismo sindical e a progressiva retomada da consciência e militância políticas da população em geral estavam sendo intesificadas, como se percebe nos movimentos sociais urbanos, na retomada das greves e em importantes campanhas populares como a da Anistia, Contra a Carestia, etc.

Já “Eles não usam black-tie” era originalmente uma peça teatral escrita e dirigida por Gianfrancesco Guarnieri para o Teatro de Arena em 1958, de enorme sucesso na época. Embora ambientada no contexto de uma greve operária contra os patrões, o foco da narrativa recai sobre os conflitos intra-classes, dos quais o mais importante certamente é aquele que opoem o presidente do sindicato e seu filho, este um fura-greves. O filme foi decisivamente influenciado pelo documentário preparatório para as filmagens da versão cinematográfica da peça, intitulado “ABC da Greve” também de Leon Hirzman.

Este documentário foi filmado em 1979, cobria extensamente diferentes etapas da greve dos metalúrgicos do ABC paulista e foi lançado somente em 1989, dois anos após a morte de seu idealizador. Em conjunto, a versão dos episódios da greve em suas versões de ficção e documentário revelam a enorme influência que os eventos sociais e políticos do período exerceram sobre a narrativa fílmica. O filme foi um sucesso de público, sendo o oitavo filme brasileiro mais visto daquele ano, atraindo 1.382.583 pessoas aos cinemas.

“Pra frente Brasil” de Roberto Farias de 1982, ambientado à época da Copa do Mundo de 1970, aborda de forma direta temas politicamente delicados como o sequestro, a tortura e o desaparecimento de presos políticos, ao contar a história de um cidadão comum que, por engano, é sequestrado por um grupo para-militar de combate à guerrilha. O título em sí já representa uma ironia, na medida em que era um dos slogans oficiais mais recorrentes da campanha oficial de comunicação social do Governo do General Médici (1970-74).

Contudo, as forças armadas nacionais não são citadas no filme, o que pode significar um esforço de auto-censura, numa conjuntura em que o terrorismo de Estado se esforçava de forma extra-oficial em colocar limites à abertura política, como se percebe nos atentados a bomba contra bancas de jornais, entidades da sociedade civil e no célebre episódio do Rio-Centro (1982). O filme também contou com ótima receptividade, levando aos cinemas 1.298.058 espectadores.

Não se tem registro de filmes sobre a ditadura militar que tenham sido realizados entre 1983 e 1989 com uma única exceção: o documentário “Jango” de Silvio Tendler. Trata-se de uma análise sobre o fim do governo João Goulart e o golpe militar de 1964, o qual recorre abundantemente a imagens de época, em especial aquelas relacionadas às ações repressivas contra as manifestações e movimentos populares ao longo de toda ditadura. Por ter sido lançado no ano da campanha em prol das eleições diretas-já (ou simplesmente, das Diretas-já) o filme despertou enorme interesse, levando cerca de um milhão de pessoas às salas de cinema.

Já no período de dez anos compreendido entre 1989 e 1999 foram realizados seis filmes e uma minissérie televisiva sobre a ditadura. Trata-se de um período na qual foram postas questões políticas e sociais que, de certa forma, propiciaram um primeiro afastamento daquelas até então consideradas típicas da ditadura militar.

A promulgação de uma nova Constituição; o estabelecimento de amplas liberdades democráticas, incluindo o fim da censura; a primeira eleição direta para presidente, e também o primeiro processo de impeachment de um presidente; uma segunda eleição direta para presidente, e também a primeira reeleição de um presidente; a consolidação no poder através do voto de antigos perseguidos políticos, tanto cassados pelo regime, quanto presos, exilados e torturados; o encaminhamento da questão dos desaparecidos políticos e as primeiras propostas de indenização aos perseguidos pela ditadura, são apenas algumas das questões de ordem política mais relevantes no período.

Esta fase também se caracteriza pela prevalência de um modelo neoliberal de Estado em oposição ao nacional-desenvolvimentismo, vigente até 1990. A conjuntura neoliberal foi marcada pela abertura do mercado interno à competição estrangeira, pela desregulamentação da economia, inclusive pelo fim de vários órgãos públicos dedicados à essa regulamentação, pelas privatizações de empresas estatais etc. Simultaneamente, ocorreram sucessivas e fracassadas tentativas de estabilização da economia, levando à uma permanente e elevada inflação, afinal controlada pelo Plano Real (1994).

No que se refere ao cinema, a conjuntura também é marcada pela extinção por parte do Presidente da República Fernando Collor (1990) da Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes S.A.). Com esta iniciativa eliminou-se com um só golpe tanto as fontes públicas de financiamento às atividades de produção e distribuição de filmes, quanto o marco regulatório do setor, incluindo-se aí a limitada proteção que o cinema nacional dispunha contra a concorrência estrangeira.

O resultado é a quase desaparição da atividade cinematográfica brasileira que, no período compreendido entre 1990 e 1992, produziu apenas um ou dois filmes por ano. A assim chamada “retomada” do cinema nacional só se dará a partir de 1995, quando do lançamento do prestigiado filme “Carlota Joaquina – a princesa do Brasil”, de Carla Camuratti. Este filme e os que se seguiram puderam se beneficiar das leis de incentivo à produção de filmes baseadas na renúncia fiscal. Porém, o conteúdo de tais filmes necessariamente tinha de se adequar às imposições das entidades privadas e seus departamentos de marketing que decidiam sobre os financiamentos, com forte tendência à despolitização.

Um filme da fase imediatamente anterior a esse período é o da diretora e ex-militante política Lúcia Murá, intitulado “Que bom te ver viva”, lançado em 1989. Misturando componentes de documentário e dramatização ficcional, o filme é baseado em depoimentos de oito mulheres que aderiram à luta armada contra a ditadura militar. O foco da narrativa é no sofrimento pela qual as militantes passaram, abrangendo a clandestinidade, a luta armada, a prisão, tortura e a angústia com relação ao destino dos desaparecidos.

Por se tratar de um filme dedicado especificamente às mulheres, tornou-se imediatamente objeto de estudo e debate entre acadêmicos que se dedicavam aos estudos de gênero. O filme assume que seu objetivo é a preservação da memória da luta ali descrita no intuito de evitar a repetição destes métodos repressivos (tortura, desaparecimento, etc.) por parte do poder estabelecido.

Em 1992, justamente o ano em que a militância social e a consciência política eram ativadas pelo processo de impeachment de Collor, a Rede Globo de televisão lançou a minissérie “Anos rebeldes”. Entre seus diretores estava Sílvio Tendler que já havia produzido vários documentários sobre a história política brasileira (Vargas, JK, Jango, etc.) A série foi baseada nos livros 1968 – O Ano que Não Terminou, do jornalista Zuenir Ventura, e Os Carbonários, do ex-guerrilheiro Alfredo Sirkis e abrange o período 1964-1979.

Novamente aparece o conflito entre a adesão ou não à militância contra o regime, a adesão ou não à luta armada, etc. Na trama os guerrilheiros são retratados de forma simpática, senão heróica, no limite, até mitológica. Por se tratar da primeira minissérie televisiva a abordar de forma explícita esses temas o produto foi visto como uma tentativa da Rede Globo de atualizar junto ao público a sua imagem, associada de forma intensa e negativa ao regime militar.

A questão dos desaparecidos políticos é o tema do documentário “Vala comum” de João Godoy, lançado em 1994. O filme é baseado no processo de exumação de corpos em cemitérios clandestinos em São Paulo, o qual contou com o apoio da então prefeita Luiza Erundina. As dificuldades de reconhecimento das ossadas contribuiu tanto para criar a impressão no imaginário popular de um enorme número de vítimas da ditadura, quanto para ampliar as pressões em prol da abertura dos arquivos das forças armadas sobre a repressão e suas vítimas. O fracasso subsequente na constituição de uma Medicina Forense de Estado, indispensável para a identificação das ossadas, também aumenta a importância desse filme.

A luta armada é o tema do filme “Lamarca” de Sergio Rezende, lançado em 1994. A história se detém na narração dos últimos dias da vida do ex-capitão do Exercito Carlos Lamarca, abstraindo tanto a história anterior do surgimento da luta armada, quanto dos impasses na qual ela caiu à época da morte do protagonista. Este certamente é mais um dos filmes representativos da mitificação do guerrilheiro na produção cinematográfica recente, embora alguns autores atribuam-lhe um sentido oposto, na medida em que desconfirma a tese oficial do “suicídio” do protagonista.

O tema da luta armada, certamente dos mais polêmicos, volta a ser explorado no filme “O que é isso companheiro” de Luiz Carlos Barreto, lançado em 1997. Parcialmente inspirado no livro homônimo de memórias de Fernando Gabeira, o filme reconstitui o sequestro do embaixador dos EUA no Brasil em 1969, obtendo relativo sucesso entre a crítica e o público. Foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro e levou 321.450 pessoas ao cinema.

Por retratar a mais famosa ação da luta armada ele foi alvo de intensa polêmica, a qual pode ser reconstituída através do exame das diversas análises e críticas que foram e continuam a ser publicadas. O filme foi acusado de ser simpático à ditadura militar, não-politizado, estereotipado, etc. o que o torna de particular interesse para estudo.

Ainda nesta fase foram realizados outros dois filmes, “Ação entre amigos” de Beto Brandt, lançado em 1998 e “Dois Córregos” de Carlos Reichembach, que veio à público em 1999. O primeiro trata da vingança de ex-presos políticos contra seu torturador depois do fim da ditadura militar, dando realidade fílimica ao principal temor dos militares ao longo de todo processo de abertura política: o potencial revanchismo contra eles por parte dos derrotados na luta armada contra o regime. O filme teve escassa repercussão entre o público, levando apenas 38.957 pessoas aos cinemas, e nenhum impacto entre a crítica especializada e os estudos acadêmicos. Repercussão menor ainda teve o filme de Reichembach que trata do triângulo amoroso de um militante vivendo na clandestinidade com duas diferentes mulheres. Ignora-se o tamanho do público que ele conseguiu atrair. Trata-se do último filme de uma safra que teve poucos títulos e atraiu público relativamente menor ao cinema brasileiro em geral.

O exame da produção audiovisual dedicada à Ditadura Militar entre 1979 e 2003 coloca vários objetos de pesquisa do maior interesse para o entendimento das relações entre a Indústria Cultural e a História. Também permite entender alguns dos conflitos envolvidos com a memória coletiva sobre a Ditadura Militar.


Dennison de Oliveira é Professor Sênior no Mestrado Profissional em Ensino de História na UFPR e organizador do livro “História e Audiovisual no Brasil do Século XXI” (Juruá Editora, 2011) para adquirir clique aqui.


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