Atualmente a colonização mental e a subserviência política das questões étnico-raciais no Brasil diante dos valores e práticas impostos pelos Estados Unidos é completa. Mas nem sempre foi assim. Durante a Campanha da Itália (1944-1945) foi a Força Expedicionária Brasileira (FEB) que, através do seu exemplo, contribuiu para o fim do racismo institucional nas forças armadas dos EUA.
Entre os países Aliados em luta contra o nazifascismo predominava a segregação racial e o racismo institucionalizado. As tropas britânicas e francesas contavam com efetivos recrutados nas colônias de seus respectivos impérios na África e na Asia. Nessas unidades os postos de comando e a carreira do oficialato eram privativos dos indivíduos brancos nascidos na metrópole. Os postos de baixa graduação como soldados, cabos e sargentos, eram ocupados pelos súditos de cor – preta, amarela e afins.
No Exército dos Estados Unidos também prevalecia a segregação racial oficial. Foi criada uma divisão de infantaria racialmente segregada – a 92ª. Divisão, conhecida como os Buffalo Soldiers – na qual os postos de comando eram reservados a oficiais brancos e a tropa era composta por negros e descendentes. Também foi criada uma unidade de descendentes de japoneses, o 442º Regimento de infantaria. Nesta unidade descendentes de japoneses nascidos em território dos EUA eram comandados por oficiais brancos.
A FEB foi a única tropa racialmente integrada a lutar na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O contingente brasileiro era formado por brasileiros de todas as origens, oriundos de todo Brasil. Na tropa brasileira se via descendentes de brancos, negros, indígenas, asiáticos, árabes, judeus, bem como mestiços de todos os tons de pele imagináveis. Formalmente inexistia segregação baseada em cor e, assim, indivíduos das mais variadas origens étnicas e regionais compartilhavam os mesmos espaços de convivência, lutavam juntos, trabalhavam juntos e, necessariamente, se expunham aos mesmos ricos e vicissitudes da luta juntos.
Nas tropas do exército dos EUA, em contraste, vigorava a segregação racial oficial. Havia banheiros, bebedouros, refeitórios, alojamentos etc. para uso exclusivo de brancos ou de negros. No racismo institucional estadunidense formalmente inexistiam mestiços, de maneira que todo indivíduo com algum traço de ascendência negra era oficialmente considerado como negro.
O caráter excepcional da tropa brasileira imediatamente chamou a atenção. Dentre as instituições mais interessadas na descrição e divulgação da integração racial da FEB e da inexistência de conflitos étnico-raciais entre seus membros estavam os jornais da imprensa afro-americana.
Antes mesmo da FEB entrar em combate na Itália a tropa já era destacada nos periódicos dos EUA pelo seu caráter pluriétnico. Os desfiles da FEB no Brasil precedentes ao embarque para o front foram noticiados em 1º de julho de 1944 pelo jornal afro-americano People’s Voice de Nova York. Fortemente engajado no combate ao racismo institucional o jornal citava a FEB como um exemplo da viabilidade da igualdade racial entre os soldados.
O Afro-American de Baltimore também publicou uma foto de soldados brasileiros desfilando no Rio de Janeiro antes de embarcar para a Itália. A composição multiétnica do efetivo era visível na foto. A comparação com a segregação racial estadunidense era claramente destacada no texto, indagando por que negros e brancos lutavam juntos pelo Brasil, mas não pelos EUA.
O New York Amsterdam News publicou a mesma foto com um título também provocativo, celebrando o fato de que a FEB com sua miscigenação racial estava mostrando como a democracia deveria funcionar. O artigo condenava as forças armadas dos Estados Unidos por não terem unidades racialmente integradas como eram as tropas brasileiras.
Já na Itália a FEB foi objeto de uma matéria em agosto de 1944 no jornal The Pittsburgh Courier. O jornalista destacou a composição multiétnica da tropa, com indivíduos de origem europeia, africana e indígena. Para ele, a naturalidade com que militares brasileiros das mais variadas origens conviviam e se relacionavam demonstrava uma total inconsciência e desconhecimento de quaisquer diferenças raciais entre eles.
Foi enorme o impacto provocado na imprensa estadunidense engajada na causa do combate ao racismo institucional pela mera existência da FEB. Rapidamente as notícias sobre os brasileiros com combate na Itália passaram a ser usadas pela militância antirracista dos EUA como um modelo para a superação do racismo institucional vigente nas forças armadas daquele país. Tamanha repercussão midiática acabou por produzir efeitos políticos. Ainda durante a guerra o Congresso dos EUA enviou uma comissão de parlamentares para conhecer e pesquisar a Força Expedicionária Brasileira, tida como referência para uma futura abolição do racismo institucional nas forças armadas dos EUA.
Em 26 de julho de 1948 o presidente dos EUA Harry S. Truman assinou uma ordem executiva proibindo a segregação racial nas Forças Armadas. Desta forma terminava o racismo institucionalizado naquelas organizações. Tal avanço civilizacional foi possível graças à soma de esforços de diversos indivíduos e organizações que há décadas lutavam pelo fim da segregação racial nas entidades públicas daquele país. Dentre as muitas organizações que, em maior ou menor grau, ajudaram os EUA a superar o racismo institucional cabe lembrar o papel desempenhado pela FEB.
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Dennison de Oliveira é Professor Sênior de História no Mestrado Profissional em Ensino de História na UFPR e autor de “Para Entender a Segunda Guerra Mundial – Síntese Histórica” (Juruá, 2020) disponível aqui.
As informações deste texto foram obtidas no artigo de Uri Rosenheck “Olive Drab in Black and White: The Brazilian Expeditionary Force, the US Army and Racial National Identity” publicado na Revista Esboços, Florianópolis, v. 22, n. 34, p.142-160, ago. 2016. Disponível aqui.