O ativismo judicial instaurado há tempos no Brasil está entrando em uma nova fase ainda mais radical. O processo tem redundado em ampla negação de direitos, manifesta no fim da categoria da impenhorabilidade, afrontando a dignidade de muitos milhares de indivíduos e famílias por todo país. Os absurdos jurídicos e aberrações legais daí decorrentes estão levando não ao abandono da ação legislativa a que o Poder Judiciário se auto atribuiu, mas sim ao aprofundamento e radicalização de tal prática. Cabe examinar o estado atual da “nova jurisprudência”.
É indispensável lembrar a fatídica decisão do STJ de 2018 segundo a qual foi extinta, de forma arbitrária, inconstitucional e ilegal, o princípio da impenhorabilidade, isto é, a definição do que pode ser tirado do devedor para pagar dívidas. O vigente Código de Processo Civil (CPC) estabelece que salários e rendimentos afins são impenhoráveis, explicitando um consenso há tempos estabelecido. Historicamente, a impenhorabilidade salarial sempre constou nas diferentes versões do Código, como na edição de 1973 promulgada no auge da Ditadura Militar e a de 2015 vigente. São admitidas, contudo, duas exceções: no caso de ações de caráter alimentar e os valores que excederem 50 (cinquenta) salários-mínimos.
Em sua histórica decisão de 2018 ao autorizar os juízes a “mitigar” o princípio da impenhorabilidade dos salários para qualquer tipo dívida e qualquer valor abaixo deste limite o STJ, concretamente, reescreveu a lei vigente. O precedente assim aberto rapidamente levou ao fim do princípio da impenhorabilidade em praticamente todos os tipos de casos judiciais. Na prática, desde então, nada mais é impenhorável.
A partir daí tornou-se comum a penhora de parte dos salários do qual arrimos de família dependem para sustentar seus entes; da inviabilização de pesquisas científicas que até então eram financiadas pelos próprios pesquisadores; a penhora de valores destinados à cidadãos em situação de extrema vulnerabilidade social como são o Auxílio Emergencial e o Auxílio-Doença do INSS; a penhora de rendimentos de devedores que auferiam 1 (hum) salário-mínimo etc. Enfim, pode-se retirar dos devedores, com base no ativismo judicial, até mesmo o mínimo indispensável para sua sobrevivência, como denunciado na coluna “Ditadura do Judiciário”, disponível aqui.
Diante de tais shows de horrores, alcançando uma escala de vítimas muito maior até do que a da Ditadura Militar (1964-1985), alguns juízes-legisladores seguindo a lógica da usurpação das atribuições do Poder Legislativo, decidiram agir no sentido da autolimitação do poder de negar direitos. Em setembro de 2023 a 34ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) estabeleceu que a penhora de qualquer valor de quem recebe até 5 (cinco) salários-mínimos retira do executado o mínimo necessário à subsistência, vulnerando a dignidade humana.
A mesma instância, contudo, seguiu admitindo a penhorabilidade da renda excedente a 5 (cinco) salários-mínimos, desprezando como o STJ o fato de que o CPC só admite a penhora do que exceder 50 (cinquenta) salários-mínimos. Pelo menos foi demandado da parte dos juízes-legisladores o exame de particularidades como a idade do executado e a existência de dependentes. Finalmente, tal instância do TJ-SP estabeleceu que quanto menor for a renda do executado, menor será o percentual de penhora a ser determinado pelo juiz.
O que se nota é que o STJ, ao “mitigar”, “dar nova roupagem”, enfim, reescrever a lei no que se refere à penhora salarial, gerou um autêntico caos judiciário que, tardiamente, diferentes instâncias agora tentam controlar. É altamente provável que muitos outros tribunais já estejam elaborando legislação própria sobre o tema à exemplo do TJ-SP.
Em reação o próprio STJ em 19 de janeiro deste ano decidiu afetar alguns Recursos Especiais para julgamento sob o rito dos repetitivos. O objetivo é definir o alcance da exceção prevista no parágrafo 2º do artigo 833 do CPC, em relação à regra da impenhorabilidade salarial, para pagamento de dívidas não alimentares, inclusive quando a renda do devedor for inferior a cinquenta (50) salários-mínimos.
A Corte Especial do STJ terá de dar resposta aos inúmeros problemas, conflitos, contradições e injustiças provocadas pela “mitigação” da norma da impenhorabilidade desde sua funesta decisão em 2018, respondendo a questões como:
– Se o juiz será ou não obrigado a justificar a exceção aberta para realizar penhora salarial, e quais exceções serão admitidas;
– Se haverá algum limite para a penhora salarial, por exemplo, aquele já adotado pelo TJ-SP que considera absolutamente impenhoráveis rendimentos inferiores a 5 (cinco) salários-mínimos ou algum outro valor;
– Se será levada em conta ao estabelecer o percentual de penhora a idade do devedor e as despesas destes com dependentes;
– Se será observado o princípio de que a lei só pode retroagir para beneficiar o réu, anulando as ações de penhora salarial em processos que foram julgados antes de 2018;
– Se serão cobrados sobre a dívida os juros de mora de 1% ao mês e mais a correção monetária mensal. Esta é a pior das contradições e a maior das injustiças relativas à penhora salarial para pagar dívidas comuns: como é possível usar parte de salários que são reajustados anualmente (isto é, se e quando são reajustados) para pagar dívidas cujo montante é reajustado mensalmente? Por quantos anos se poderá impor a penhora salarial? Será admitido o pagamento eterno e infinito de dívidas?
Além destas muitas outras questões seguirão em aberto, mesmo depois do julgamento do rito dos repetitivos que, consistindo no reduzido número de três processos, jamais serão capazes de captar em sua complexidade e variedade a imensa baderna jurídica e a incomparável balbúrdia legislativa instaurada a partir de 2018. Finalizo com um último exemplo, tirado de minha experiência direta como vítima da Ditadura do Judiciário: ao funcionário público em regime de dedicação exclusiva será permitido exercer outro emprego? Ou ele e sua família terão de se conformar por anos a fio com a redução absoluta de seus vencimentos sem ter a chance de o arrimo de família tentar trabalhar mais para reduzir a mediocrização e rebaixamento de seus meios de vida?
Em paralelo à fúria legiferante do Judiciário assistimos à quase total passividade e alienação dos verdadeiros responsáveis pela elaboração das leis, no caso, senadores e deputados eleitos do Congresso Nacional. Desde 2018 apenas 1 (hum) deputado federal e 1 (hum) senador se preocuparam com a usurpação dos poderes legislativos explícita na penhora irrestrita de salários praticada pelo Judiciário e pretenderam apresentar projetos de lei para revertê-la. Os demais parlamentares em sua quase totalidade parecem satisfeitos em delegar ao Judiciário suas funções legislativas e se rebaixarem, geralmente, à condição de “vereadores federais” empenhados quase que única e exclusivamente na captação de verbas públicas para o atendimento às demandas das suas “bases” eleitorais.
É grave a crise de autoridade no Brasil atual e, muito provavelmente, estamos assistindo à sua aceleração e radicalização. Neste momento de extremo perigo para o destino dos direitos fundamentais da pessoa humana em nosso país é imperativo que a cidadania brasileira tome consciência das arbitrariedades e ilegalidades que vem sendo promovidas pelo Poder Judiciário. Estamos prestes a ver formalmente concretizada a conversão dos salários de meio de remuneração do trabalho e de recurso de subsistência familiar em apenas uma garantia de pagamento de dívidas – quaisquer dívidas. É fundamental se demandar o reenquadramento dos juízes na condição de funcionários públicos, submetidos às leis do país e encarregados de promover sua justa aplicação.
A figura do juiz legislador tem que ser extinta, bem como a do juiz marajá, os quais compõe a vasta maioria da categoria. A todos juízes tem que ser aplicado o abate-teto, cortando na folha de pagamento todo e qualquer valor que exceda o teto salarial do funcionalismo público determinado pela nossa Constituição. A constituição que é dever de todo juiz cumprir e fazer cumprir.
Dennison de Oliveira é professor de História na UFPR e autor de “Bizarra e Grotesca Inversão: a luta perdida contra o exercício ilegal da profissão de professor no Brasil (2006-2021)” da Editora LAECC (2021) disponível aqui.