São chocantes as constatações da pesquisa divulgada pela Confederação Nacional dos Transportes (CNT) sobre as rodovias do Brasil. Pode-se concluir que nunca na História nacional as rodovias brasileiras estiveram em tão péssimo estado. Tais constatações se tornam ainda mais graves diante da atitude do atual governo federal para com o problema. Longe de encarar a superação do atual estado de coisas como uma prioridade nacional, o governo federal entende que se trata apenas e tão somente de uma ótima oportunidade de novos negócios e de fontes adicionais de renda para os empreendedores privados. O que se pode concluir é que o governo pretende fazer da obsolescência e inadequação de nossas rodovias uma situação permanente: tal é o arcaísmo rodoviário como projeto.
O estudo da CNT que toma como referência os dados de 2022 é impiedoso e não usa de meias-palavras para descrever o catastrófico estado em que se encontram as rodovias brasileiras. No geral dois terços da malha rodoviária pavimentada têm algum problema, sendo considerada regular, ruim ou péssima. Apenas um terço das rodovias estão em condições ótimas ou boas. Em uma proporção quase que igualmente desfavorável se encontra a sinalização, na qual em 60,7% dos trechos é considerada regular, ruim ou péssima e apenas 39,3% ótima ou boa. Pior ainda, 8,3% das rodovias estão sem faixa central pintada que divide mão e contramão e 14,3% não tem faixas laterais que indicam onde acaba o pavimento da pista.
Num país que depende quase que totalmente do transporte rodoviário é espantoso notar que as pistas simples correspondem a vasta maioria da malha, sendo 85,6% da extensão total disponível. As pistas duplas são pequena minoria e as triplas uma raridade. Também é revoltante constatar que falta acostamento em 44,6% dos trechos e que em 29,0% deles as curvas perigosas não têm sinalização.
Para além da perda de vidas humanas em acidentes perfeitamente evitáveis, a pesquisa destaca os custos operacionais. O atual estado lastimável das rodovias implica em um aumento de custo do transporte da ordem de 33,1%. Tudo isso tem implicações sobre a competitividade internacional do Brasil e o custo dos produtos consumidos internamente, sendo causa permanente de inflação.
Finalmente, a pesquisa destaca que seriam necessários investimentos emergenciais de restauração e de reconstrução das rodovias da ordem de R$ 72,26 bilhões. Enquanto isso não acontece haverá um consumo desnecessário anual de 1,1 bilhão de litros de diesel devido à má qualidade das rodovias, causando um prejuízo de R$ 4,89 bilhões aos transportadores.
E o que o governo federal pretende fazer diante deste estado calamitoso de coisas? As respostas podem ser encontradas numa entrevista concedida pelo Secretário Executivo do Ministério dos Transportes no último dia 22 de maio. No subtítulo da entrevista já se antecipa a abordagem adotada: “União poderá pagar parte das obras de concessões”.
Segundo o Secretário, os recursos excedentes do orçamento federal, gravemente comprometido em sua capacidade de investimento pelo assim chamado “arcabouço fiscal”, poderão ser destinados aos donos de pedágios. A fim de manter baixas as tarifas dos pedágios, os custos de pelo menos parte das obras poderão ser assumidos pelo governo federal. O que se pode concluir é que todo recurso destinado à infraestrutura ou é custeado pelos usuários ou é de origem pública. Na privatização das rodovias praticamente inexiste investimento privado.
Se depender do Governo Federal será dada continuidade a desastrosa política atual de realizar obras sem planos e deixar os planos vigentes sem obras. Para o Secretário não há “clareza” sobre os riscos geológicos presentes no atual traçado das rodovias nem das necessárias obras de readequação de estradas obsoletas. Isso significa que não existe nem planejamento nem previsão de demanda futura, compondo uma receita de fracasso.
O representante do Ministério dos Transportes alega ter um “cardápio de soluções” para cada caso de pedagiamento inviável de ser suportado pelo usuário. Sua fala implica no reconhecimento da ausência de regras e normas gerais, um caminho direto em direção à anarquia administrativa e à crise de autoridade regulatória. Uma preocupação central dele é com o “apetite” dos investidores: nem a eliminação de gargalos infra estruturais, nem o barateamento do “Custo Brasil”, nem a justiça tributária implicando no fim da bi (ou tri) tributação, nem o desenvolvimento tecnológico e econômico, nem o bem estar social e nem o direito de ir e vir são relevantes para o atual governo.
Numa passagem particularmente reveladora da sua desconexão com a realidade o Secretário afirmou que “nem sempre duplicar é a solução”. Disso não se pode discordar, afinal na maior parte das rodovias mais importantes somente quadruplicar ou sextuplicar a pista daria conta da demanda atual. Mas não é a isso que se referia o representante do Ministério dos Transportes. Pelo contrário, ele se referia à possibilidade de os novos concessionários adiarem ainda mais a duplicação das rodovias sob sua responsabilidade apelando para o nefasto e condenável expediente de converter o acostamento em faixa adicional.
No país onde trafegar no acostamento é infração de trânsito punível com multa somente os donos dos pedágios podem eliminar impunemente o indispensável acostamento, convertido em “terceira faixa”. Também é o caso de constatar que todas as mortes em acidentes com colisão frontal derivam da aludida “desnecessidade” de duplicação, conforme denunciado na coluna “O Arcaísmo da Infraestrutura rodoviária paranaense”, para ler clique aqui.
Se alguém ainda tinha dúvida sobre o total e completo fracasso da vigente política de concessão de rodovias à iniciativa privada o representante do Ministério dos Transportes a eliminou em definitivo. Segundo ele “dois terços das concessões estão com problemas e o terço que não está vai ficar”. O revoltante é perceber que nem o reconhecimento explícito do fracasso total e absoluto da privatização das rodovias fará o governo federal desistir de tão nefasto projeto.
É indispensável que o Governo Federal abandone a vigente abordagem privatista. O poder público federal tem que assumir seu papel como gestor e promotor da melhoria e ampliação constante da malha rodoviária, um recurso de importância estratégica para o futuro, ao invés de eternizar seu arcaísmo sob a forma de mera fonte de lucro – subsidiado por verba pública – para algumas poucas entidades privadas.
Dennison de Oliveira é professor de História na UFPR e autor do artigo “A pior deficiência do Brasil”: aliança militar Brasil-EUA, políticas de transporte e as negociações sobre uso de bases militares no pós-guerra (1943-1945) para baixar clique aqui.
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