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O infame “acordo informal” do Salgado Filho

18/06/2024
infame

O domínio do mercado de bens e serviços aeroportuários do Brasil sempre foi objeto de disputa entre as potências capitalistas dominantes em nível mundial. O exame da experiência histórica demonstra como são grandes os riscos e prejuízos a que o Brasil se expõe ao delegar à países estrangeiros o controle, normatização e operação de suas infraestruturas aeroportuárias.

O contexto do final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) oferecia imensas vantagens estratégicas para o governo dos Estados Unidos da América na sua tentativa de monopolizar o mercado mundial de bens e serviços aeroportuários, ao mesmo tempo em que impunha suas próprias normas e padrões de operação. A imensa produtividade das indústrias bélicas daquele país havia legado muito material excedente de construção, manutenção e operação de aeroportos e bases aéreas.

Ao mesmo tempo, o processo de desmobilização dos efetivos militares engajados nos serviços aeroportuários e seu retorno à vida civil estava prestes a começar. Havia, pois, numerosos recursos humanos à disposição das autoridades estadunidenses para pressionar diversos países a comprarem seus equipamentos, instalações, máquinas e serviços aeroportuários, impondo no processo a adoção de seus padrões de operação e normas técnicas.

O tempo para implementar tal projeto de domínio desta parte do mercado mundial, contudo, era restrito. Com o final da guerra pelo menos duas outras grandes forças aéreas também seriam desmobilizadas, liberando potencial humano e, pelo menos no caso de países vencedores do conflito, também meios materiais que poderiam ser empregados na disputa deste mercado. Tais concorrentes eram a Real Força Aérea britânica (RAF) e a extinta Força Aérea alemã (Luftwaffe).

A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) acabou na Europa no dia 8 de maio de 1945. Nesse mesmo dia teve lugar um insólito encontro durante um jantar no luxuoso Hotel Copacabana Palace no Rio de Janeiro (RJ) entre o então Ministro da Aeronáutica Joaquim Pedro Salgado Filho e o General Henry Harley Arnold que era comandante geral das Forças Aéreas do Exército dos Estados Unidos.

No decorrer do jantar ficou estabelecido que seriam trazidos ao Brasil instrutores dos EUA para treinar os gestores aeroportuários locais nos métodos e técnicas estadunidenses. Também seriam enviados assessores para auxiliar as autoridades brasileiras a adotar uma legislação para o setor que fosse diretamente inspirada naquela já vigente nos Estados Unidos.

Ciente das implicações da iminente desmobilização militar, o General Arnold ofereceu 15 mil homens experientes dos EUA que poderiam ser designados para o Brasil. Tal oferta eliminaria a carência de instrutores para formar e capacitar controladores de torres, técnicos de manutenção de rádios para linhas aéreas, operadores de comunicações, técnicos de meteorologia e controladores de tráfego aéreo. Arnold prometeu a Salgado Filho a designação imediata do pessoal necessário.

Inicialmente o projeto dos EUA era monopolizar o mercado aeronáutico brasileiro, fechando-o à entrada da concorrência estrangeira. Contudo, com tamanha abundância de recursos humanos o programa de domínio do mercado aeroportuário poderia subsequentemente ser expandido para toda América Latina. O Ministro da Aeronáutica brasileiro aceitou todas as propostas da autoridade estadunidense sem discutir seu custo, fazer qualquer objeção ou demandar contrapartidas e compensações. Tudo foi tratado verbalmente. Ocorreu um autêntico “acordo informal” entre Salgado Filho e o General estadunidense.

Para os EUA essa foi uma esplêndida oportunidade para utilizar pessoal e equipamento, agora em abundância, para o rápido desenvolvimento do programa de monopolização de materiais e serviços aeroportuários no Brasil e em toda América Latina. As vantagens não se restringiriam a aviação civil, mas também gerariam frutos de um ponto de vista puramente militar. Todos os custos – não orçados e nem especificados – seriam assumidos pelo Brasil.

A gestão de Salgado Filho à frente do Ministério da Aeronáutica chegou a um fim abrupto quando da derrubada da ditadura Varguista em 29 de outubro de 1945. Com isso o infame e ruinoso “acordo informal” entre ele e o General Arnold não chegou a ser implementado, liberando o Brasil para considerar ofertas mais vantajosas de materiais e serviços aeroportuários de outras nações.

É importante rememorar o infame “acordo informal” do Ministro Salgado Filho em 1945 no atual contexto em que se discute o destino do aeroporto que leva seu nome. Originalmente construído em um terreno dedicado à cultura de arroz, o Aeroporto Salgado Filho em Porto Alegre (RS) foi quase que totalmente submerso nas recentes enchentes que assolaram o Estado do Rio Grande do Sul, se encontrando desde então inutilizável.

Desde 2018 o Aeroporto Salgado Filho deixou de ser operado pela empresa estatal brasileira Infraero (Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária) e passou ao controle de uma empresa estatal de outro país, no caso, da Alemanha. Desde então, os custos da manutenção do Aeroporto Salgado Filho vêm sendo astronômicos. Logo após vencer a licitação, a nova operadora do aeroporto recebeu para realizar suas operações um empréstimo do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) da ordem de 1,6 bilhão de Reais, pagáveis em vinte anos. Contudo, face à recente tragédia climática foram suspensos os pagamentos deste empréstimo.

É notável a pressão política para que o aeroporto seja reaberto o quanto antes e a qualquer preço, excluindo-se de forma irracional qualquer possibilidade de se realocar esta instalação aeroportuária em um local mais seguro. Uma estimativa inicial da operadora revela que serão necessários mais de um bilhão de Reais para reativar o aeroporto. Na inexistência de quaisquer contrapartidas e compensações, a operadora já anunciou que os equipamentos e materiais mais caros e complexos destinados à reconstrução terão de ser importados.

Desta forma, será financiado com dinheiro público do contribuinte brasileiro uma série de importações de máquinas e equipamentos que irão dinamizar a produção industrial do país de origem da operadora, perdendo-se assim mais uma importante oportunidade de retomar o processo de reindustrialização nacional. Pior ainda, serão impostas ao Brasil a adoção de padrões de operação e normas técnicas de origem alemã, excluindo a possibilidade futura de licitar tais serviços e produtos em outras nações.

Outras benesses já demandadas pela estatal alemã que opera o Aeroporto Salgado Filho, tudo no sentido de agilizar sua reabertura, diz respeito ao custo das tarifas cobradas aos usuários e à duração do prazo de concessão. Estão sendo cogitados aumentos das tarifas acima do previsto nos contratos e a extensão do prazo de concessão dos originais 25 anos para 40 anos.

Quantos bilhões de Reais a mais serão necessários para se obter a reabertura do Aeroporto Salgado Filho? E quanto tempo esse aeroporto irá conseguir funcionar antes que uma nova enchente o alague totalmente uma vez mais?

A recente enchente demonstrou que o aeroporto terá de ser inteiramente realocado para um local mais seguro. Tal realocação será compatível com os termos do contrato de concessão firmado com a empresa estatal alemã? E, neste caso, quem assumirá os custos financeiros? Será viável pretender tão imensa mudança e modernização desta infraestrutura aeroportuária enquanto estiver sob controle de uma empresa estatal de outro país? Ou seja, é praticamente certo que a manutenção do controle do aeroporto Salgado Filho por parte de uma estatal estrangeira tornará inviável sua realocação e reconstrução.

O fato objetivo é que a tragédia climática recente fez com que o contrato de concessão do Aeroporto Salgado Filho perdesse seu objeto. O aeroporto que foi licitado não existe mais e quaisquer tentativas de retomar suas atividades no local presente estão fadadas ao fracasso, terão custo exorbitante e certamente serão efêmeras. Neste caso, Salgado Filho terá associado seu nome a mais um infame e ruinoso “acordo informal”.

É indispensável que o poder concedente federal declare nula e extinta a concessão do Aeroporto Salgado Filho e devolva seu controle à Infraero. Desta forma se poderá usar dos recursos públicos destinados ao financiamento da empresa estatal alemã para reconstruir e realocar esta infraestrutura aeroportuária, tanto prevenindo novas enchentes quanto ajudando a promover a reindustrialização do país e a retomada do controle nacional destas instalações de caráter estratégico.


Dennison de Oliveira é professor de História e autor do livro “Aliança Brasil-EUA – Nova História do Brasil na Segunda Guerra Mundial” veja aqui.

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