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12/05/2024

A guerra das batatas

batatas

Nada é mais estranho aos meus hábitos do que envergar uma farda. Não no sentido que a ela se dá no Nordeste, a significar uniforme escolar, mas em referência às corporações militares ou assemelhadas.

 

A única que usei foi a de escoteiro, em curto período, aos 10 anos de idade. Após ser desligado do Grupo Escoteiro Ronaldo Dutra, de semelhante só usei um par de coturnos, comprados na Rua Riachuelo na época da contracultura.

 

Minha passagem pelo escotismo foi marcada pelos vexames. Machuquei a mão no primeiro acampamento de que participei, com o que me deixaram de fora das atividades, sem que minha ausência tenha sido notada. Depois, houve a viagem a Corupá. Nada deu certo.

 

A saída da Estação Ferroviária de Joinville deu-se no raiar da manhã. Depois de tomar café em casa e envergando as calças-curtas do uniforme escoteiro, fui deixado por meu pai na estação, com um dinheirinho no bolso para suprir eventuais necessidades. O trem iniciou seu trajeto, passando por Guaramirim e Jaraguá do Sul, até o desembarque na pacata comuna de Corupá, antes denominada Hansa Humboldt, colônia alemã até no nome.

 

Fomos levados diretamente para a nova matriz da cidade, onde seria realizada a missa solene de sagração da igreja. Mal entramos, o incenso invadiu meu corpo. Caso fosse uma encarnação divina eu até aceitaria – ainda que de má vontade, porque à época meu pavor era que, na calada de uma noite qualquer, me aparecesse uma divindade. Tratava-se, porém, de um brutal enjoo. O balançar do trem durante três horas, mais aquela emanação dos infernos, me fizeram cambalear. Um dos monitores me salvou: fui levado para fora da igreja, onde fiz o que deveria fazer. Vomitei até a alma e posto que se tratava de evento religioso, achei que a minha estivesse para sempre condenada.

 

Quase recuperado, soube que a tropa foi dividida em duplas e trios. Ao meu trio, nada elétrico àquela hora do dia, coube almoçar na casa de uma família, cujo filho pequeno deslumbrou-se com o nosso uniforme. Ao fim do almoço, fizemos questão de puxar a carteira e perguntar quanto devíamos, coisa de crianças tentando parecer educadas – ainda assim, uma grosseria.

 

Depois de conhecermos a cidade, fomos instalados para passar a noite na igreja velha, recém desativada. O grupo dividiu-se em dois, um alocado no coro, outro no andar térreo. A chefia instalou-se na antiga sacristia, à distância das provocações entre as duas facções. Encontramos no antigo espaço do órgão um enorme depósito de sacos de batata. Iniciamos a guerra atacando os inimigos, digamos, do sopé do morro, com grande descarga de artilharia. Foi uma batataria desbragada, até os monitores acenderem as lanternas e desarticularem a batalha, lutando para não escorregarem naquele purê que cobria o piso da antiga nave. Ninguém bradou, como Machado, “ao vencedor, as batatas”.  Mas que vencemos, nenhuma dúvida houve.

 

Na volta o trem quebrou em algum momento do trajeto. Alguns pais, entre eles o meu, nos resgataram a meio caminho. Foi minha penúltima aventura escoteira. Dias depois, um chefe determinou que eu desse uma aula de nós a um garoto recém incorporado. Como ele não conseguiu fazer nem um laço, abandonei-o e fui embora. Chamado a atenção, disse ao sujeito alguns impropérios, ofensivos o suficiente para me tomarem por insubordinado – e, de pronto, desligado da corporação.

 

Não chego a concordar com a frase do Barão de Itararé (“o escotismo é composto por crianças vestidas de idiota, comandadas por um idiota vestido de criança”), porque tenho amigos escoteiros a quem prezo muito, como o procurador do município de Curitiba, Paulo Salamuni. Apenas, nenhuma saudade me traz aqueles breves tempos de farda.

 

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