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Aberrações e sabedorãnças

30/01/2024

Hermann estava a caminhar pelas ruas do centro, indo de banco em banco, até completarem os oito em que mantinha contas correntes, tratando de cobrir os cheques especiais que o salvariam durante o mês, em troca dos juros escorchantes de praxe, quando se viu abatido por certo cansaço, descrença na utilidade daquela romaria bancária, que só adiaria por 30 dias a repetição do circuito vicioso. Com o que, resolveu entrar na Livraria Ghignone, vizinha a um dos bancos cobradores.

 

Lá encontrou o Livro das Ignorãnças, do poeta Manoel de Barros e, munido do manual de saberes telúricos ali contidos, atravessou a rua em direção a habitual mesa nos fundos da Confeitaria Schaffer. Seu Luiz, o Barão, de bigodes muito brancos, toalha engomada sobre o braço direito, perguntou se ele iria querer o de sempre, sanduíche de salaminho e queijo branco no pão de centeio, uma Coca-Cola e, para arrematar, coalhada com mel e um cafezinho.

 

No livro, o poeta conversa com a natureza, com seres dos alagados e dos quintais, incluindo sapos e caramujos, fala com árvores e musgos, e dali tira belezas incomensuráveis. Ao fim de tantas páginas, Hermann puxou conversa em silêncio com a cadeira vazia ao seu lado, queixou-se da vida, da intransigência dos credores. Talvez não houvesse valência na correria rotineira. Tentou arengar com a formiga que corria embaixo da mesa, concentrada nos seus afazeres formigais, mas não obteve sucesso. As inconveniências da vida tomavam o lugar dos prazeres mundanos, o homem com uma pasta no sovaco que passou decidido pelo calçadão não tinha tempo para elocubrações, a mulher que vendia panos de prato só queria saber de seu pregão gritado (três por dez, vizinha!), o esmoler, sem outro mister, além da rima, capengava com a mão estendida aos passantes.

 

Enquanto a coalhada dançava na tijelinha, Hermann se viu entocado na Ilha do Superagui. Vislumbrou um concerto de siris falantes, um coro de raízes a fazer o contracanto, golfinhos acrobatas vestindo saiotes.

 

Perdido nas aberrações que lotavam sua mente naquela tarde fria, divergiu do velho poeta. Eram sabedorãnças aquelas divagações a desanuviar sua mente conturbada, ganhar fôlego para voltar à luta, dar uma banana ao gerente do banco e esquecer as tristezas.

 

Eufórico, convidou o relógio da Praça Osório para um aperitivo no Stuart ao cair da tarde – o que não foi possível devido à impertinência de um guarda municipal, vociferando que o falso inglês estava fora do juízo, pelo fato de abraçar a coluna de sustentação do monumento. Apresentou o livro do velho Manoel como se fosse passaporte para a liberdade, o que não causou efeito.

 

Mas a estada no sanatório foi breve – desde ontem está em alta hospitalar. Ele e a lagartixa que vive no bolsinho do seu paletó, a quem introduz em seus princípios filosóficos e que foi registrada em cartório com o nome de Filomena Sheffield.

 

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