Era viagem de 55 horas, porque eu incluía na conta final o percurso de sete horas entre Curitiba/São Paulo, a bordo de um ônibus da Penha, com saída na noite anterior.
O São Geraldo que fazia a linha São Paulo-Recife começava o trajeto às 9h da manhã do dia seguinte, na antiga Rodoviária do centro da cidade, ao lado da Estação da Luz. Era ônibus-leito, com pouco uns 25 passageiros.
Havia uma mulher avantajada com seu filho de uns três anos, retornando para o interior de Pernambuco; um jovem que havia dado baixa no serviço militar; um vendedor de peças industriais; duas senhoras que iriam visitar a amiga recém enviuvada em Recife, e uma moça magrinha, de blusa abotoada até o pescoço. Tudo complementado por passageiros que fariam trechos da viagem.
Eram duas fileiras de poltronas atrás do motorista e uma fileira do lado oposto do corredor. Ali me ajeitei, com as duas idosas nas poltronas ao lado.
Seguimos pela Via Dutra até Barra Mansa, quando entramos na continuação da BR-116 em direção a Minas Gerais. Cruzamos Caratinga, que me trazia desagradáveis lembranças, à noite. Chovia muito na região – e meus fantasmas me assombraram.
Graças aos relâmpagos pude vislumbrar o soldado e a moça de blusa fechada aboletados na mesma poltrona, mal disfarçados sob um cobertor. Tive a impressão de que a manta corcoveava – ou talvez fosse um excesso de quebra-molas na estrada. Suponho que a blusa já estivesse desabotoada.
No dia seguinte paramos para em um péssimo boteco na região de Milagres, já na Bahia. A cidade, então ainda uma vila, tinha sido locação para filmes de três grandes cineastas brasileiros, Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha e Ruy Guerra.
Imagino que a produção dos filmes tenha conseguido refeições melhores do que a gororoba que nos foi servida. A mulher encorpada deu ao filho uma coxa de galinha e a criança voltou ao ônibus para envernizar de gordura os braços de todas as poltronas, enquanto chupava seu almoço. Achei melhor ficar restrito a um Diamante Negro mofado e Coca-Cola.
Foi depois daquele suspeito almoço que as duas senhoras começaram a ter ataques de risos. Demorei a perceber elas aliviavam ali mesmo a pressão dos gases resultantes da péssima alimentação. Cheguei a pensar em dizer que maneirassem nas risadas, posto que pareciam correr grande risco de afrouxar os respectivos esfíncteres ali mesmo.
Em Feira de Santana chegamos a um posto de gasolina bem equipado, com possibilidade de banho à patuleia, café bem fornido e limpeza completa no ônibus, além de troca de motorista – já era o terceiro a assumir a boleia.
Dali até Recife, a estrela da viagem foi o vendedor de peças. Movido por duas pingas e cerveja, soltou a língua para a plateia formada por mim e dois rapazes recém embarcados. Confessou que considerava Adolf Hitler o maior gênio da humanidade. Alinhou diversos argumentos, que tratei de contrapor, mas o homem estava irredutível. Amaldiçoou os judeus, os aliados, os italianos, os árabes. Lamentou que a guerra tivesse tomado um caminho contrário à Alemanha.
A partir da travessia do Rio São Francisco terminou o asfalto. A viagem seguiu sobre saibro e buracos. Hitler aproveitou para garantir que, se não houvessem perdido a guerra, aquele trecho já estaria asfaltado, seria a porta do paraíso.
Chegamos a Recife no horário estabelecido, às 9h da manhã, dois dias depois da partida de São Paulo. Ao pegar minha mala e sair à procura de um táxi, Hitler me segurou o braço e declarou na maior cara dura:
– Meu jovem, tudo aquilo que eu disse é mentira. É que a viagem estava monótona.
Pouco atento, ele não viu, ouviu nem sentiu tudo o que me divertiu naquelas 48 horas de uma épica viagem tropical.
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