O que tanto pesa nos ombros daquele homem grisalho que ali vai, com um pacote de presente embaixo do braço? Hoje ele faz 75 anos – informação que não sei, mas deduzo pelo pacote. Seu andar já não é tão rápido quanto era anos atrás, quando o vi fazer esse mesmo caminho de todo dia.
Devem pesar os anos passados, as lutas que enfrentou, tragédias que viveu. Viu a morte algumas vezes, posso inferir. E vejo que ele a driblou, como se o corpo agora endurecido tivesse então os segredos dos gingados. Vitórias efêmeras, preparatórias para a derrota final.
Para onde segue, se não para seu lugar de labor, a bancada de alguma empresa, uma instituição qualquer em que ainda se faz necessário? Lá ele descansa os ossos, antes de desfiar os últimos lampejos do pequeno talento que um dia o fez conhecido, merecedor das parcas glórias com que se agraciam os destaques de província.
Carrega três quartos de século a cada passo. Com ele vão a infância, os anos loucos da juventude, a perda precoce do pai, o embalar dos filhos, as crises do primeiro casamento, uma falência, outra mais. Para cada decepção, um peso distinto, nenhum maior que a perda do filho mais velho, iconoclasta e jornalista como o pai, com menos sorte, porém.
Pressinto que tenha trafegado em diferentes áreas, amigo de professores e intelectuais com quem nunca se sentiu à vontade para ombrear. Mas o caminhar olhando o chão nada tem de derrotismo, de desistência. Tem, sim, com o pensar nas tarefas que ainda se propõe a fazer, nos desafios que a enfrentar, nos boletos a quitar. Nas ideias que insistem em brotar.
Também com o cuidado para não tropeçar nas pedras irregulares, correndo o risco de se ver obrigado a outra cirurgia no fêmur. Porque ali vão cicatrizes de toda ordem, além das metafóricas. Traz o peito rasgado, a perna marcada pela fenda onde habitava a veia safena, a barriga, o ombro, o alto do nariz costurados em ocasiões diversas, como diversos foram hospitais e cirurgiões.
Parece que em algum momento seu andar fica mais leve, consequência das boas lembranças que amealhou. A companhia imprescindível da mulher, as conquistas dos filhos, a alegria dos netos – e sempre tem um chegando. Nas viagens que já fez e não mais irá fazer. Pensa em quem o amparou, seres iluminados que clarearam seu caminho e o fizeram saltar os obstáculos.
Já quase perco de vista o homem grisalho que transporta 75 anos. Não sei o quanto chegará adiante, mas nem ele tem alguma noção disso. Pensa no hoje e lhe basta. Carregar tudo isso é bastante para quem nasceu na madrugada de um domingo de agosto, pleno inverno, dois dias depois de uma sexta-feira 13 de ano bissexto. Não há do que reclamar, digo mentalmente para ele.
A tal da vida é assim mesmo.
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1 Comentário
Feliz vida ao Ernani!
Para mim, um grande mestre, de humor ácido, uma sabedoria irretocável e um coração que deixa poucos conhecerem!