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ERNANI-CABECA-COLUNA

Lettera 22

18/03/2025

Em 1968, meu pai me convidou a matar aula na Faculdade de Direito do Recife para ir a Garanhuns, onde tinha visita programada a um cliente da Tubos Tigre. Não pensei duas vezes. Além de não conhecer a capital do inverno pernambucano, seria um dia agradável, por conta das conversas com o velho. Suas histórias muito interessantes.

Aguardei em um banco de praça o fim da reunião. Então Arino me chamou, com seu assobio de chamar filho. Estava no caixa, pagando por uma Lettera 22:

– Se você quer ser escritor, estou te dando a ferramenta.

A máquina era portátil, fabricada pela Olivetti, com o corpo das letras pequeno. A resultado ficava charmoso. Eu tinha 19 anos e já ensaiava alguns textos. Coisas indigentes, juvenis, nada elaborado. Eram exercícios para quem pretendia se especializar.

De volta a Curitiba, em meados do ano seguinte, resolvi escrever com Marcos Villanova um livro de crônicas a quatro mãos. O título seria Livro. Parece que o Villa ainda tem arquivadas aquele besteirol, do qual não quero nem ouvir falar. Não passamos de uns quatro textos cada um. A Lettera não merecia passar por aquela provação.

Três anos mais tarde, eis-me radicado no Rio de Janeiro. Certo dia recebo uma ligação: era o dono de uma agência de propaganda querendo me contratar. Pediu, como teste, uma crônica em que eu contasse minha trajetória. Municiei a Lettera com a fita necessária e escrevi um textão, que o sujeito adorou. Não fui trabalhar com ele porque a SGB, agência em que trabalhava, cobriu a proposta, com vantagens.

Foi a Lettera que me socorreu na hora de escrever cartas para o Severino, porteiro paraibano do prédio da Anibal de Mendonça, em Ipanema, onde eu dividia apartamento com Nego Miranda e Magno Dias.

Ao longo dos anos, tudo o que produzi em casa foi batucando os tipos da velha máquina, agredindo as teclas com os dois indicadores.

A partir de 1993, aderi ao computador. A Lettera foi repousar em uma gaveta, de onde saiu para ser instalada, dentro do seu estojo, na estante mais alta da minha biblioteca, servindo de anteparo aos livros. Lá ela deverá ficar, mas não sozinha. Minha mãe resolveu comprar uma igualzinha, lá nos anos 1980. Com o seu falecimento, minha Lettera ganhou uma irmã gêmea, colocada na outra ponta da estante.

Posso garantir que sofrem de obsolescência, as duas velhinhas. Não demonstram lembrar de seus tempos de glória. São incapazes de gravar no papel uma letra que seja, porque não possuem mais as fitas necessárias para produzir os sons que representavam a exuberância das suas vidas, aquele tac-tac-tac tão característico – talvez o mais agradável dos barulhinhos aos ouvidos dos velhos dinossauros da escrita.

Quando chegar o momento de doar minha biblioteca, as duas farão parte do acervo. Talvez o novo proprietário se anime em revivê-las. Esteja eu onde estiver, ficarei muito satisfeito em vê-las ressuscitadas, esbanjando alegria, dando bananas para a demência.

As velhinhas merecem a eternidade.

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