Uma amiga escreve-me, devolvendo um texto que escrevi há quase 50 anos, encontrado em seus guardados, sobre o desejo de morar em um quarto de hotel em Londres. O título era Patético Sonho Meu. Relido tantas décadas depois, descubro que patética era a crônica, traindo a juventude do autor e escancarando a literatura de baixa qualificação a que já se dedicava.
Jamais realizei o sonho de viver em Londres. Felizmente para todos. Para a literatura, pelo motivo descrito. Para mim porque a descrição do quarto desenhada no texto mostrava que o conforto não fazia parte das minhas ambições. O espelho deveria estar quebrado em um canto, rachado o vidro da janela, o colchão traria uma mola saltada. Próximo do quarto de Van Gogh em Arles, não uma habitação contemporânea.
Mas, se não morei em Londres, habitei um quarto de aluguel em Recife. Um pequeno hotel na Rua da Saudade, do qual, esclareço, não trago nenhuma – embora os moradores demonstrassem ter saudade do conforto que ele também não tinha, a exemplo do hipotético hotel londrino.
Duas figuras marcaram meu tempo no Hotel da Saudade. A primeira foi Werneck, vizinho de quarto. Era um velho jornalista carioca, primo do Carlos Lacerda, que andou por Curitiba quando do primeiro governo Ney Braga, circa 1962. Havia escrito um livro sobre a Codepar, antecessora do Badep, editado pela própria empresa, da qual não possuía exemplar.
Eu não tinha nada com isso, mas Werneck era insistente: dia após dia, dava um toc-toc na minha porta para saber se eu já havia escrito para minha mãe, pedindo para providenciar remessa da obra. Não, eu não havia escrito, até por pudor em obrigar a pobre mulher a sair atrás de um livro encontrável apenas em uma empresa pública que ela tampouco conhecia. Com o tempo, passei a dizer que o pedido tinha sido postado, aguardássemos a resposta.
Não lembro o que ele fazia em Recife. Sei que, além de bater à porta do meu quarto, bebia. E me convidava para a sinuca, três bolas vermelhas, a branca invertendo com a dois, a bege.
O hotel ficava ao lado da Praça Maciel Pinheiro, na qual a atração principal vinha a ser o próprio salão de sinuca. A atração maior do salão era um sujeito magro como faquir, que atendia por Jarbas, a tal segunda figura. Werneck e eu passávamos ali nossas tardes vagabundas, sentados em caixotes de cerveja, a beber umas e outras. À medida que a cerveja fazia efeito, fazíamos uma fezinha no Jarbas, aplicando o lucro em outras cervejas.
Certo dia surgiu um desconhecido no salão. Não nos pareceu grande coisa, mas desafiou o nosso craque e, digamos, quase ídolo. Casamos nosso curto dinheirinho no invencível faquir Jarbas. O jogo ficou parelho até a sétima e última partida. Aí o forasteiro saiu encaçapando tudo, da bola um a sete.
Levou com ele a pensão do velho e a minha pobre mesada. Tarde da noite, Werneck bateu na porta. Não era possível que fosse perguntar se o livro havia chegado. Era outra coisa:
– Nos deram um golpe, estão jantando com o nosso dinheiro, berrava com os olhos esbugalhados. Ele havia visto os dois em um bar na Rua da Imperatriz, o riso solto.
Movido pela prudência e por uma imensa vergonha, não mais voltei à sinuca. Passei a lamentar o dia em que tinha ido viver em um quarto ao lado do velho jornalista. Se não o tivesse conhecido, o prejuízo da família seria menor, bem como minha mãe não teria necessidade de fazer buscas nos arquivos do Badep – o que ela, enfim, fez.
Talvez o hotel em Londres tivesse sido mesmo uma ideia melhor.
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