Felipe tem um ano quatro meses. É dono do espírito investigativo próprio de crianças de sua idade, talvez um pouco mais acurado. Costuma pegar o retrato do bisavô, colar seu rosto ao dele e buscar no verso da moldura a continuação daquele rosto. Onde está o corpo do bisavô? Também busca o lado desconhecido dos espelhos, o universo paralelo pelo qual a humanidade tem obsessão.
Em Cem Anos de Solidão, Gabriel Garcia Márquez fez seu personagem José Arcádio Buendia acreditar que o daguerreótipo, um dos nomes iniciais da fotografia, ao fixar o tempo, também poderia revelar a imagem de Deus. A série em exibição na Netflix – 8 episódios – mostra a busca do personagem por um deus que ele tem dificuldade em aceitar. Torna-se uma das razões do seu enlouquecimento.
O Metaverso chegou prometendo trazer o lado escondido do mundo. Não funcionou – ou melhor, funciona para mostrar o lado desconhecido do universo tecnológico.
O espelho e suas imagens refletidas já foram objeto de inúmeras obras literárias. Desde o clássico “espelho, espelho meu”, autores de todo gênero buscaram, através do espelho – aliás, título de um belo filme de Ingmar Bergman –, entender sua própria alma, sua personalidade, seu narcisismo. Há um livro com o nome de “Do outro lado do espelho”.
Não é por acaso. O espelho é um dos mais poderosos instrumentos inventados pelo ser humano. A reflexão da própria imagem na água, origem da mística do espelho, foi uma descoberta e tanto. Abriu a possibilidade de o homem enxergar a si mesmo, admirar-se ou odiar-se, corrigir imperfeições e aperfeiçoar um traço ou outro.
Serviu como instrumento de persuasão, objeto de barganha com civilizações menos desenvolvidas. Os telescópios se servem dele para escarafunchar o universo. São os dois lados da mesma moeda, porque o espelho é representa um mundo de descobertas.
Não sei se a humanidade chegará a encontrar o lado de lá. Serve, por enquanto, como metáfora. A invenção do conceito de alma, pela igreja católica, representa a maneira religiosa de justificar a sobrevivência após a morte. O verso do espelho poderia conter a alma das coisas?
Felipe não quer saber de nada disso. Continua a buscar a vida que escapou enquanto examina o lado de trás do espelho. A curiosidade é a mãe da sabedoria.