O delicioso livro recém-lançado de Ruy Castro, O Ouvidor do Brasil, com 99 crônicas pontuadas por Tom Jobim, me fez lembrar as três ocasiões em que topei com o maestro nos botecos de Ipanema e Leblon.
Estávamos no início dos anos 70, quando era possível namorar na praia à noite, mesmo que de olho em qualquer presença suspeita. A onda de assaltos aos transeuntes era coisa inimaginável, foi instituída uns dez anos mais tarde.
Era possível beber até ½ noite e voltar a pé para casa, caminhando seis ou oito quarteirões. Os edifícios ainda não tinham grades separando suas portas da calçada e até trocava-se um “boa noite” com os porteiros a fumar em frente às portarias.
Tom frequentava, embora de maneira eventual, o velho Veloso, já rebatizado como Garota de Ipanema, em homenagem à música que a lenda urbana afirma ter sido ali composta por ele e Vinícius. Não foi, como conta Ruy Castro.
Certa noite, estávamos em mesa do lado de fora a beber nossos chopes, Nego Miranda e eu, quando a notícia começou a correr de mesa em mesa. “Tom Jobim está lá dentro, foi atender o telefone”. Por certo não era Frank Sinatra que ligava, embora Tom não tenha anunciado quem teve a petulância de incomodar seu descanso.
Aos fregueses das mesas na calçada quem incomodava era o Cabelinho, um funcionário de cartório, torcedor do Fluminense e bêbado de carteirinha, que tinha o hábito de deitar-se no chão a berrar frases incompreensíveis. Era comum alguém correr à casa dele, ali perto, e providenciar seu resgate por alguém da família.
Diga-se, a favor do Cabelinho, que ele não era páreo para o chatíssimo Roniquito, irmão da Scarlet Moon Chevalier, que depois foi casada com Lulu Santos. Roniquito era de ancorar em qualquer mesa, acabando com a conversa, até ir embora sem pagar. O protótipo do bêbado intragável.
Depois Tom passou a frequentar a Churrascaria Plataforma, na Gávea (que é a parte do Leblon a dar na Lagoa Rodrigo de Freitas). Ali estabelecia seu escritório, sempre na companhia de amigos, onde o encontrei duas vezes. Na primeira, Magno Dias e eu fomos logo embora por razões profissionais, cada um com seus compromissos, depois de um almoço bem-comportado.
Tempos mais tarde, repete-se a cena. Estendemos nossa sessão de whisky (copo alto, bastante gelo, club soda) e a turma do funil que ocupava a mesa com Tom Jobim, também. Em certo momento, um garçom foi cochichar no ouvido do compositor. Depois de alguns minutos, ele levantou-se. Um táxi tinha sido chamado para levar aquele passageiro ilustre para casa.
Tom passou um pouco trôpego pela nossa mesa. Com seu habitual chapéu, a roupa clara amarfanhada, saiu para o glorioso fim de tarde carioca, mantendo a dignidade que jamais lhe abandonaria.
Nunca mais cruzei com ele, que morreu cedo, em dezembro de 1994. Estava entrando em um elevador, em São Paulo, quando ouvi a notícia.
Então me ocorreu que esse tão falado Tom Jobim, o autor de tantas belezas, foi um gênio da raça, um dos brasileiros mais notáveis de todos os tempos. Posso garantir e assino embaixo, com firma reconhecida por algum cartorário que não seja o Cabelinho.
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