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A Corça Cerinéia

29/08/2024
corça

Em continuidade à publicação dos poemas do projeto Doze Trabalhos de Hércules, produzido por Samuel Lago e Rodrigo Barros para o programa radiofônico Radiocaos (ver aqui), hoje temos “A Corça Cerinéia” de Monica Berger.

Veja aqui a leitura de Monica para o poema.

III

A CORÇA

(Hera fala)

Da janela do leque de mil olhos, Eos, a aurora, abre o dia nas montanhas da Arcádia. Ninfas e faunos despedem-se dos vapores azuis de seus sonhos enquanto o sol atrela calmo seus cavalos. O vento sacode flocos de sereno das árvores mais altas e assovia nos caniços: eis os domínios de Pã, a terra da música e da poesia! Os dedos de Eos tocam meu colo enquanto entrevejo com a ponta do nariz entre penas de pavão, o Monte Artemísio. A canção mais rara farfalha pensamentos, assim que a vejo. Como seria a luta contra a delicadeza, crueza versus leveza? No alto do alto do que é ainda mais alto sobre a grande pedra o perfil se desenha: de um lado a grande lua das caçadas deitando-se com o céu, do outro, a galhada de ouro que cintila ao sol. Deito o leque sobre as mil órbitas celestes e o observo por entre vales, penhascos e desfiladeiros misteriosos, indo até onde nunca nenhum caçador esteve, de países de onde ninguém regressou.

A culpa irá persegui-lo durante toda a jornada em busca do que é mais simples, leve e singelo nas terras da Antiga Grécia: A Corça dos Cascos de Bronze. Vá, Héracles, corra em honra de Hera.

IV

Num dia fora do tempo Ártemis-menina vê cinco corças gigantes molhando as patas entre os seixos negros do Rio Anuro. Sorrateira, ela se aproxima. “A rajada é esplêndida”, considera. As corças sagradas de Enoé, aquelas que pressentem o imperceptível, de imediato dilatam suas narinas e disparam em direções diferentes. A pequena deusa as persegue com prazer até atrelar um quarteto ao seu carro brilhante. Mas falta uma, a mais bela entre as belas, a corça com chifres de cinco pontas que disparou como um clarão para dentro da floresta. Ártemis coloca-se de pronto em seu encalço, a aljava de prata com flechas douradas sobre os ombros, sempre tão hábil, sempre tão rápida, a filha dileta de Leto, aquela que vence o vento na corrida, a insuperável caçadora de altas coxas, aquela que só a si mesmo pertence assim como a sobrenatural corça que pula todos os obstáculos, que desafia o silêncio absurdo das colinas e, de clareira em clareira, devora, solitária, todas as lembranças do chão.

Ambas são a mesma: pressentem estratégias, intuem movimentos e farejam a umidade da relva recém batida em um jogo que não se decide entre a velocidade da luz e a leveza do pensamento.

Ártemis também é Taígete, ninfa metamorfoseada em cervo, e também a grande corça que agora observa através dos arbustos, deliciando-se com os trevos que alimentam os cavalos de Zeus – a dona de cornos magníficos pastando. A cabeça se levanta e por um segundo os olhares se cruzam, as imensas e doces pupilas da gama fixadas no cristalino lunar da caçadora, uma pela outra. Daquele momento em diante será impresso nas retinas de todos os cervos, suavidade e pureza no olhar. E a deusa menina, excitada pela difícil conquista, se coloca a correr até a colina de Cerinéia em uma infinita brincadeira de eternos retornos, tal qual arquitetei.

Héracles terá que buscá-la alucinado de Enóe ao Monte Artemísio e por toda Arcádia subindo o rio que leva ao outro mundo. Um ano durará sua desdita. Para a Ártemis, o tempo de um dia e para mim, deusa de grandes olhos, apenas um segundo.

V

(Ártemis fala)

Héracles, desolado, deixa o palácio. Sua força desta feita de nada adiantaria, pernas toscas como toras de árvores. De toras também era esculpida sua clava destruidora de monstros, pesada como os sapatos da Terra. O grande arqueiro não poderia acertá-la sem despertar a minha fúria, deusa que tudo despedaça, Ártemis, de garras de ursa. Como alcançar a mais rápida e intrépida corça do mundo, como se sairia com meu animal fantástico, como escaparia dos sutis enredos de Hera?

O sol do meio-dia incide sobre os ombros do herói. O caminho que leva de Micenas à Arcádia, um cenário atlético. Héracles treina a corrida, a desenvoltura e, pela primeira vez, atenta aos ditames de Hermes, deus da oscilação e da mudança. Aos poucos o corpo do semideus se acostuma às investidas, parece estirar-se um pouco e ganhar em altura. Sobe infatigável as montanhas e depois de noites e dias de prática de atenção concentrada, em uma rara pausa, é dada a partida: avista a corça num descampado. Caça e caçador disparam por campinas lisas e vales profundos e no final da tarde adentram a mata, exibindo grandes habilidades na arte do desvio. Algumas vezes o herói a vê riscando o ar em curva, noutras pega no pulo com a barriga em meia lua, as patas quase em prece; noutras, ela desaparece por dias e dias. Segue impassível suas pistas e quando pensa dar por certo o seu destino, da direção contrária escuta o eco de um de sino, ela e os cascos que jamais se gastarão ricocheteando na pedra e sumindo na linha do horizonte. Mas ele está motivado e acelera.

A euforia faz com que vença sebes e grandes moitas quase sem esforço, a temperatura e o terreno, depois de tanto tempo, parecem não fazer mais diferença, Héracles dentro de um túnel de vento e fora do corpo, Héracles, o invencível, projetando-se nos céus. Assim ele avança por milhas e milhas, salta desfiladeiros, contorna grutas, toma planícies e investe em direção ao Ocidente remoto.

VI

Ao fim da grande estação, quando Eos, a de rosados dedinhos, recolhe os despojos de seus amantes pela rota do âmbar, vencidas as terras de Trácia e Ístria, o herói encontra as encostas de Atlas. Se alimenta de raízes, purifica-se nas nascentes. A explosão de energia havia passado. E como sempre, em sua face humana, a sombra dos desatinos o alcançava, fosse onde fosse. A mente começa a turvar e ele se vê em desabalada carreira desabando nas trevas de Tebas, o desatino que o levou ao abismo, a ira de Hera, o remorso roendo a alma. Queria voltar correr para aplacar as lembranças quando vê uma pedra que poderia lhe servir de cama e um toco de travesseiro. Antes que o fogo apague e noite derrube estrelas sobre suas pálpebras, deixa-se entorpecer nas centelhas, uma centelha de esperança que o sustentava nas névoas daquela terra gelada com aroma de maçãs do outro mundo. O perfume estica-se num rastro de fumaça que desenha uma árvore de galhos fantasmas ao longe, frutas brilham no orvalho invisível. Duas ninfas do poente guardam o portal e entre elas a corça de bronzeadas patas senta-se finalmente tomando seu trono.

Héracles sonha, sonha que está na frente de sua casa abraçado à Mégara e com as mãos de suas crianças traça nas nuvens um arco-íris. Uma fina chuva misturada aos raios de sol molha seu rosto. Héracles sorri pela primeira vez em muitos anos e sem nenhuma pressa retém aquele minuto no coração. Uma piscada e a corça está à sua frente, as pupilas de lua negra mergulhadas no mar noturno das memórias e o brilho da inocência trazendo chances de redenção. O mundo pára como se fosse o dia sem tempo, então a corça torce os chifres forcados e dispara para o sul, os cascos metálicos tilintando na pedra antes do pulo. Hera, que até então cochilara, abre os olhos, sacode o leque, bate suas grandes pestanas de vaca, pestanas tão grossas e afiadas que caem como barras de ferro para atrasar o caminho do herói. Mas Héracles, renascido pela visão dos bons tempos, ignora a deusa e aproveita o minuto de vantagem, o minuto que a tornava a corça invencível e que ele havia colhido de dentro dos seus olhos.

VII

Deusa da Lua, Donzela do Arco de Prata, Senhora das Coisas Selvagens e Portadora da Tocha sou eu, Ártemis, a ursa de mil nomes. Virgem na primavera, ninfa no verão e velha no inverno, vinte náiades de pele azulada e sessenta jovens oceânidas de áureo tornozelo compõe meu séquito. Galgos de Esparta e sabujos de orelhas caídas me seguem por onde quer que eu vá. Guardiã de estradas e portos e honrada em trinta cidades que não me interessam, minha lei é a lei das montanhas e das florestas. Desmembro quem me incomoda, sou aquela de quem ninguém se aproxima. Quando a lua brilha, animais e plantas dançam nos meus festivais e é o quanto me basta. Não me importo com Hera e suas tramas, seus ciúmes, sua dependência masculina; talvez ela me inveje, eu e minha liberdade, meu poder de escolha, minha virtude, não sei e também não quero saber, o assunto me entedia. O que me diz respeito é a fadiga da minha corça preferida que, depois de correr por toda Grécia e até para o mundo fora do mundo, chega enfim ao Monte Artemísio para recuperar suas forças. Já vai longe o tempo que brincávamos de correr de Enoé para o Cirineu e vice-versa, embora os pastores digam que ainda fazemos o caminho todos os dias. Hoje ela deixa que eu cinja sua cabeça e acaricie seu lombo até dormir no meu colo.

Quando o dia acordou, ela desceu para aliviar a sede nos desvios do Ladão, flume de águas que apagam mágoas. O rio estava agitado, mas assim mesmo ela mergulha, quer seguir sem deixar pistas na rota até em casa. Sente alguma dificuldade para sair das águas revoltas e quando está quase chegando na margem, uma forte pressão nas patas traseiras a desespera. Tenta um coice, uma reviravolta, outra pirueta, mas não consegue. Se debate sem parar, o coração saindo pela boca, os cornos ainda mais dourados, congestionados de sangue real. Héracles, que acabara de tomá-la pelas pernas, arrasta-a até o próximo lugar seco. Amarra com cuidado sua presa, ela havia sido vencida. Um grande alívio perpassa seu espírito, coloca a corça imediatamente sobre os ombros e começa caminhar em direção ao palácio de Euristeu.

Algo acontecera com Héracles naquele périplo infinito, enfim a alma leve depois de inúmeros desvarios. A correrias haviam liberado seu corpo, o olhar da inocência no pomar sagrado, um unguento sobre coração. As águas do rio dissolveram impiedades do seu espírito, o cervo de grandes proporções sobre as espáduas lhe era até confortável. E assim caminhava, incrivelmente feliz, imaginando jogos e corridas que de quatro em quatro anos alegrariam todo o Olimpo.

VIII

(Hera fala)

Parece que Ártemis, a bastarda selvagem de Zeus, não se deu conta que seu bichinho de estimação foi raptado. Por sua vez, Héracles, um palerma carregando a corça com um sorriso abestalhado. Pelo jeito, não correu o suficiente. Já que Apolo o detesta, visto que o brutamontes furtará a trípode do Oráculo de Delfos, é bom que saiba que o maior ladrão da Grécia está em ação. A alegria irá terminar assim que o Maciste cruze o coração do Peloponeso.

– “Vá Iris, minha fiel mensageira, e avise os deuses gêmeos, sol e lua, que Héracles traz sobre os ombros a corça sagrada e que irá matá-la assim que chegar em Micenas”.

IX

(Ártemis fala)

Tento explicar para Apolo que Héracles não é tão péssimo assim, mas ele está reticente, sabe o que ocorrerá no futuro e conhece bem o passado. Visto que não o convencerei de nada, relembro que a última palavra é de sua irmã mais velha. Cruzamos os bosques de Pã e quando o raptor enfim coloca a corça no chão, surgimos na sua frente. Apolo, irado, avança. Seguro seu braço e antes que se engalfinhem, peço a Héracles que se explique. O herói humildemente desenha suas desditas, diz que expia seu crime terrível, a loucura imposta por Hera e que o fez em delírio matar a esposa e filhos. Agora, atende a todos os caprichos de Euristeu. Sei que perseguir a corça deve ter acordado seus terrores mais profundos e que Hera quer aterrá-lo com a vergonha e a culpa de matar um animal tão puro, tão inocente quanto seus pequenos filhos. Acalmo mais uma vez meu irmão e Héracles nos garante que a corça correrá ilesa para o Cirineu assim que chegue em Micenas.

Héracles cruza o imponente portal dos lobos e entra no Palácio. Euristeu está ansioso depois de passado um ano. O herói coloca a corça de chifres de ouro e cascos de bronze amarrada frente ao trono o rei se maravilha com a beleza do animal fantástico. Diz que agora será a bela corça sua e pede que o caçador a solte sua presa. Héracles sorri, pois sabe que Euristeu é lerdo. Enquanto desamarra a corça, desafia o rei, afinal todas as portas estão fechadas, “Pegue-a, Euristeu, já que é sua”, mas assim que as patas estão livres, antes que Euristeu mova uma palha, a corça dá um salto e escapa pela mais alta janela.

No alto do alto do que é ainda mais alto sobre a grande pedra a silhueta novamente se desenha, de um lado a grande lua deitando-se com o céu, do outro, a galhada de ouro cintilando ao sol, a Corça Cirenita.

Monica Berger

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