Aleister Crowley (inglês nascido Edward Alexander Crowley; Royal Leamington Spa, 12 de outubro de 1875 — Hastings, 1 de dezembro de 1947), foi um membro da Ordem Hermética da Aurora Dourada e influente ocultista britânico, responsável pela fundação de uma doutrina que batizou de Thelema. Olmar Lopes, grande músico carioca e baixista de minha banda Orquestra Sem Fim é um thelemita. Sugeri que fizéssemos uma composição sobre Crowley e Olmar, sabiamente, me aconselhou: “a banda está indo super bem, não vale a pena mexer com ele.” Claro que aceitei sua opinião, mas não posso deixar de fazer um artigo sobre uma pessoa com tamanha biografia. Com todo respeito!
Crowley é mais conhecido como autor de obras sobre magia e misticismo, dentre eles o Livro da Lei, que tornou-se a escritura sagrada principal dos thelemitas, e de outros tratados sobre diversos assuntos esotéricos como a cabala e o tarô. Em muitas de suas façanhas, o hedonista buscava “ir contra os valores morais e religiosos do seu tempo”, defendendo a liberdade individual e espiritual baseada no principal lema thelêmico: “Faze o que tu queres, há de ser tudo da Lei”. Frase adotada por Raul Seixas e Paulo Coelho na música “Sociedade Alternativa”. Por essas e outras, ganhou imensa notoriedade em vida, e foi tachado pela imprensa britânica como “O homem mais ímpio do mundo”. Além das atividades esotéricas, era também um premiado enxadrista, alpinista, poeta, dramaturgo e novelista.
Em 2001, uma enquete da BBC descrevia Crowley como sendo o septuagésimo terceiro maior britânico de todos os tempos, por influenciar e ser referenciado por numerosos escritores, músicos e cineastas, incluindo Jimmy Page, Alan Moore, Bruce Dickinson, Marilyn Manson, John Lennon, Kenneth Anger, David Bowie, Fernando Pessoa, Lana Del Rey e Ozzy Osbourne. Ele também foi citado como influência principal de muitos grupos e indivíduos influentes do esoterismo ocidental da posteridade, incluindo vultos como Kenneth Grant e Gerald Gardner.
Seu pai Edward Crowley era engenheiro de formação mas, segundo Crowley, nunca trabalhou como um, pois era um abastado dono de uma cervejaria, que o permitiu se aposentar antes mesmo de Crowley ter nascido. A mãe de Crowley, Emily Bertha Bishop, vinha de uma família com raízes em Devon e Somerset. Os pais de Crowley pertenciam a uma seita chamada Irmandade Reservada, uma vertente ainda mais conservadora de uma comunidade cristã fundamentalista conhecida como Irmãos de Plymouth, na qual seu pai costumava ser missionário. Deste modo, desde tenra idade o jovem Crowley foi criado para ser um Irmão de Plymouth e obrigado todo dia a ler um capítulo da Bíblia.
Em 29 de Fevereiro de 1880 nasceu Grace Mary Elizabeth, irmã de Crowley, mas que sobreviveu apenas cinco horas. No velório, ao ver o corpo da pequenina irmã, Crowley, detalhando-se a si mesmo na terceira pessoa em sua autobiografia “As Confissões de Aleister Crowley”, descreve a cena da seguinte forma:
“O incidente criou nele uma curiosa impressão. Ele não entendia o porquê de estar tão inutilmente perturbado. Ele não poderia fazer nada; a menina estava morta; aquilo não era de sua conta. Essa atitude persistiu nele com o passar da vida. Nunca mais compareceu a outro velório, salvo o do próprio pai, por sentir que ele era, em verdade, o centro de seu interesse.”
Em 5 de Março de 1887, quando Crowley tinha apenas onze anos, o pai morreu de câncer de língua. Crowley mais tarde descreveria esse evento como decisivo em sua vida, sendo neste o ponto em que passa a descrever-se em primeira pessoa nas Confissões. Tendo herdado as riquezas do pai, mais tarde foi matriculado numa escola particular da Irmandade de Plymouth, mas foi expulso por “tentar corromper outro aluno”. Depois, tentou a Escola de Tonbridge e o Colégio de Malvern, ambos os quais desprezava. Na adolescência gradativamente se desiludia e tornava-se cético quanto ao cristianismo e cada vez mais atentava contra a moralidade cristã que lhe fora forçada quando criança.
Em 1895 Crowley entrou num curso de três anos do Trinity College, Cambridge, para estudar filosofia. Porém, com permissão do tutor, trocou o curso para literatura inglesa, que até então não era parte do currículo oferecido. Foi aqui que passou a ter uma visão mais severa contra o cristianismo. Conforme confessou:
“A Igreja Anglicana […] me parecia com uma estreita tirania, tão detestável quanto a dos Irmãos de Plymouth; ainda menos lógica e mais hipócrita… Quando descobri que comparecer à capela era obrigatório, imediatamente recusei. O vice-reitor me repreendeu por não estar comparecendo à capela, e não estava mesmo, pois tinha que acordar cedo para isso. Dei a desculpa de que tinha sido criado entre os Irmãos de Plymouth. O reitor pediu para que eu viesse vê-lo de vez em quando para contar mais do assunto, ao que tive a surpreendente ousadia de escrever-lhe: “A semente plantada pelo meu pai, regada com as lágrimas de minha mãe, arraigaram-se demais para serem arrancadas, até mesmo por alguém de sua eloquência e erudição”.”
Também foi na universidade em que tomou a decisão de mudar o nome Edward Alexander para Aleister. A confissão sobre isso foi a seguinte:
“Por muitos aborreci-me ao ser chamado de Alick, parte devido ao ruído e estética desagradáveis da palavra, parte devido a ser esse o nome pelo qual minha mãe me chamava. Edward não parecia combinar comigo, muito menos os diminutivos Ted ou Ned. Alexander era muito longo e Sandy dava ideia de uma loira sardenta. Eu tinha lido num livro por aí que o nome mais propenso a se tornar famoso era composto de um dátilo seguido por um espondeu, como no fim de um hexâmetro: por exemplo Jeremy Taylor. Aleister Crowley preenchia essas condições e Aleister é a forma gaélica de Alexander. Era o nome que satisfaria meu ideal romântico. A ortografia atroz A-L-E-I-S-T-E-R foi sugerida como a correta pelo primo Gregor, e ele que o diga! De qualquer modo, A-L-A-I-S-D-A-I-R cria um dátilo muito ruim. Por essas razões eu decidi ficar com meu pseudônimo atual — não posso dizer com certeza se facilitei ou não a chegada da fama com isso. Sem dúvida, deveria ter feito isso qualquer um que tivesse o nome que eu escolhesse.”
Boa parte dos anos universitários Crowley passou com seus passatempos, entre eles o alpinismo: todo ano durante os feriadões, de 1894 a 1898, viajava para os Alpes com vários outros alpinistas, que o descreviam como “um alpinista promissor, porém um tanto quanto errático”. Mais tarde, tentaria escalar o Himalaia.
Outro de seus passatempos era o de escrever poesia, coisa que fazia desde os dez anos de idade e em 1898 publicara independentemente cem cópias de um de seus poemas, Aceldama, mas que não vendeu muito. Apesar disso, no mesmo ano publicaria uma série de outros poemas, sendo o mais notório White Stains (literalmente, Alvas Máculas), uma obra erótica que teve de ser impressa na Holanda, para evitar escândalos com as autoridades britânicas. Seu título foi baseado na masturbação masculina e contém vários poemas em inglês e francês que também podem ser considerados obras individuais. A maioria desses poemas é abertamente sexual em conteúdo. Crowley alegou que havia escrito White Stains com o propósito de reescrever Psychopathia Sexualis de Richard von Krafft-Ebing, em uma forma lírica. Como em outras obras de Crowley, a obscenidade é celebrada. David Bowie faz referência a “manchas brancas” em sua canção Station to Station .
Um terceiro passatempo seu era o xadrez. Era sócio do clube de xadrez da universidade, onde, segundo alega, venceu o presidente do clube no primeiro ano, e praticava duas horas por dia para se tornar um campeão — “Minha ambição mundana mais séria era a de me tornar campeão mundial de xadrez.” Também relata ter vencido os famosos enxadristas Joseph Henry Blackburne e Henry Bird, e que estava em vias de se tornar um mestre enxadrista, até que visitou um importante torneio de 1897 em Berlim, onde “vi os mestres — o primeiro, um decrépito ranzinza e cegueta; o outro, talvez um jeito respeitoso de descrevê-lo seria mal-apessoado; o terceiro, uma reles sátira de gente, e desse nível para baixo quanto ao resto. Esse era o tipo de pessoa cujo lugar eu queria ter. ‘Dali, mas com a graça de Deus, se vai Aleister Crowley’, exclamei para mim com desgosto, e daquele dia em diante fiz um voto de nunca mais jogar outra partida séria de xadrez”.
Na universidade alegava manter uma vida sexual intensa, quase toda vigorada à base de prostitutas e moças que conhecia em bares e tabacarias. Em 1897, Crowley conheceu um homem chamado Herbert Charles Pollitt com o qual teve um relacionamento, mas que não deu certo, pois Pollitt não compartilhava dos interesses de Crowley no esoterismo. Como confessa o próprio Crowley: “eu disse pra ele, na maior franqueza, que eu tinha devotado minha vida à religião e por isso ele não se encaixaria. Hoje vejo como fui babaca com ele, como terrivelmente errado e fraco é rejeitar uma pessoa por causa de uma parte da personalidade dela”.
Em dezembro de 1896, Crowley teve a primeira experiência religiosa marcante, da qual mais tarde afirmou: “essa filosofia nasceu em mim.” A partir dessa experiência Crowley começou a pesquisar sobre ocultismo e misticismo e no ano seguinte começou a ler opúsculos de alquimistas, obras de místicos e tratados de magia. Em outubro daquele ano uma rápida e severa doença lhe trouxe reflexões sobre a mortalidade e a “futilidade de toda atividade humana” ou, pelo menos, a futilidade da carreira diplomática que Crowley tinha considerado antes. Ao invés de tudo isso decidiu devotar-se de corpo e alma ao oculto. Largou Cambridge em 1897, sem conquistar diploma algum.
Em 1898 Crowley passeava em Zermatt, Suíça, quando conheceu o químico Julian L. Baker, com quem começou trocar interesses em comum sobre alquimia. No retorno à Inglaterra, Baker apresentou Crowley a George Cecil Jones, seu cunhado e membro da irmandade ocultista conhecida como Ordem Hermética da Aurora Dourada. Mais tarde o próprio Crowley foi iniciado na sua ordem exterior e foi nela que se apôs o nome mágico de Fráter Perdurabo, que quer dizer “Perdurarei até o fim”.
Por volta dessa mesma época mudou-se de um aposento elegante no Cecil Hotel para o próprio apartamento de luxo em Chancery Lane. Ali Crowley separaria dois cômodos diferentes; uma câmara para a prática de magia branca e outra para a de magia negra. Pouco tempo depois convidou um confrade da Aurora Dourada, Allan Bennett, para morar com ele, e Bennett foi seu mentor, ensinando-lhe cada vez mais sobre magia cerimonial e enteógenos (termo que se refere a substâncias provocadoras de efeitos alucinógenos e que são usadas em rituais religiosos). Todavia em 1900 Bennett se mudou ao Ceilão para estudar budismo, enquanto Crowley, em 1899, comprou a infame Mansão Boleskine, em Inverness, Escócia, às margens do Lago Ness. Lá, deixou desabrochar um carinho especial pela cultura escocesa, apelidando a si mesmo de “Lorde Boleskine” e passando vestir trajes tradicionais típicos até mesmo durante visitas a Londres. Anos depois, a mansão seria comprada pelo guitarrista Jimmy Page.
Em 1900, numa veneta aleatória, Crowley viajou ao México através dos Estados Unidos e junto com o amigo Oscar Eckenstein resolveram escalar diversos montes, incluindo o Ixtaccihuatl, o Popocatepetl e até o Colima, do qual tiveram que abandonar de última hora graças a uma erupção. Seus diários indicam que foi nessa época que ele descobriu o significado da palavra mágica Abrahadabra! Depois de deixar o México, um país do qual se tornara um grande apreciador, Crowley visitou São Francisco, Havaí, Japão, Hong Kong e finalmente Ceilão (atual Sri Lanka), quando reencontrou Allan Bennett e se devotou ainda mais à ioga, na qual mais tarde alegou ter atingido o estado mental de dhyana. Foi durante esta visita que Bennett decidiu se tornar um monge budista da tradição Theravada, viajando até à Birmânia, enquanto Crowley ia à Índia estudar as muitas ramificações do hinduísmo. Em 1902, Eckenstein se juntou a ele na Índia com alguns outros alpinistas. Juntos, a expedição Eckenstein-Crowley tentou escalar o K2, no Himalaia, que até então nenhum outro europeu tinha tentado escalar. Nessa jornada, Crowley se infectou com influenza, malária e cegueira de neve, junto com outros membros. Atingiram seis mil metros de altura antes de decidirem retornar.
Ao retornar à Europa visitou MacGregor Mathers em Paris e, apesar de terem sido amigos uma vez, os dois logo se estranharam: Crowley afirmou que Mathers estava roubando dele enquanto ele esteve fora (Crowley mais tarde roubou tudo de volta) e como o biógrafo de Crowley John Symonds notou, ambos se consideravam os maiores esoteristas vivos e se recusavam a sujeitar-se ao outro. Em 1903, por conveniência ao invés de afeto, Crowley se casou com Rose Edith Kelly, que era irmã de um amigo de Crowley, o pintor Gerard Kelly. Entretanto, pouco depois do casamento, Crowley se apaixonou de verdade por ela e os dois começaram a namorar. Gerard Kelly era de fato um grande amigo do escritor W. Somerset Maugham, que mais tarde se inspiraria Crowley para criar um personagem na sua novela O Mágico, publicada em 1908.
Outro de seus interesses foi pelo tarô. Pedi informações à taróloga Zoe de Camaris, que me indicou o livro “Tarot”, de Jessica Hundley. Segue um trecho do capítulo LADY FRIEDA HARRIS & ALEISTER CROWLEY:
“Inspirado nos baralhos de Tarô reimaginados por MacGregor Mathers e outros membros da Aurora Dourada, Crowley decidiu eventualmente criar seu próprio baralho, intitulado Thoth Tarot. Crowley originalmente pretendia que o baralho Thoth atualizasse ligeiramente o simbolismo pictórico tradicional do Tarô, com base nas correlações anteriores do Livro de Thoth. Procurando um colaborador artístico para o projeto, Crowley foi apresentado à ilustradora e estudiosa Lady Frieda Harris em 1937. Uma estudante apaixonada do trabalho do filósofo Rudolf Steiner, Harris acabaria por adicionar suas próprias filosofias e crenças à criação e imagens do baralho Thoth. Para o processo de trabalho no Tarô, Harris começou a ter aulas de geometria projetiva sintética, com base nas ideias de Goethe e refletida nos ensinamentos de Steiner. Crowley também começou a ensinar sua adivinhação.
“Os dois trabalharam juntos pelos próximos cinco anos, repintando e redefinindo certos cartões, às vezes muitas vezes. Enquanto Harris criava ilustrações, Crowley escreveu um livro com o mesmo título destinado ao uso com o baralho. Por sua própria admissão, o baralho Thoth foi originalmente destinado a ser tradicional, mas Harris insistiu que eles integrassem suas próprias ideias mágicas, espirituais e científicas no projeto. Artisticamente, as ilustrações dão um aceno para movimentos do século XX, como Futurismo, Construtivismo e Art Deco. Crowley também integrou a tradição da Aurora Dourada de incluir letras hebraicas e correspondências astrológicas dentro da tipografia de cada cartão. Ele renomeou várias cartas dos Arcanos Maiores também, mudando as cartas de Justiça, Força, Temperança e Julgamento para Ajuste, Luxúria, Arte e Eon, respectivamente.
“Harris enviou a Crowley um estipêndio regular durante a criação do baralho e usou seus contatos com a sociedade para encontrar apoiadores financeiros. Esses fundos ajudaram a financiar a exposição das pinturas e a publicação do catálogo que a acompanham. Infelizmente, nem Crowley nem Harris viveram para ver o baralho impresso para um público em massa. O Tarô Thoth é agora um dos baralhos mais populares do mundo e talvez um dos mais intrincados e bonitos já feitos; o brilho de seus criadores – as imagens requintadas de Harris e as referências simbólicas densas e ponderadas de Crowley – ainda ressoam.”
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O ano de 1904 foi um divisor de águas para Crowley, o ano em que o mistério que viria persegui-lo por toda a vida estava por se revelar, como bênção e maldição. Naquele tempo Crowley estava viajando o mundo. Em março e abril de 1904 estava no Cairo, Egito, em lua-de-mel com a esposa Rose Kelly. Mesmo entre as alegrias da viagem de núpcias Crowley e Kelly não largavam os afazeres esotéricos. Durante um trabalho de invocação de elementais do ar para a esposa. Kelly começa a balbuciar que o deus egípcio Hórus falava através dela. O deus prescreve então uma série de detalhes para um ritual de invocação no qual Crowley recebe o Liber Al vel Legis (Livro da Lei), uma suposta escritura sagrada contendo a Lei e as liturgias mágicas do “Novo Aeon” (a Era de Aquário). Crowley ficou perplexo com o conteúdo, mas a força das revelações lá contidas, que segundo ele influenciaram eventos históricos de magnitude global (Primeira e Segunda Guerras Mundiais, por exemplo), deixou para ele fora de dúvida a veracidade, beleza e poder do Livro da Lei. “Os Livros Sagrados de Thelema” são uma compilação dos mais importantes livros escritos por Aleister Crowley entre 1907 e 1911, que resultaram na fundação de uma nova religião, ou filosofia, em nova esfera, distante do eixo principal em torno do qual revolve-se a vida espiritual judaico-cristã. Nesse sentido, Thelema pode ser caracterizada não apenas como uma religião secular, mas também como uma ética filosófica. A obra se subdivide em 14 livros sagrados.
Em 1930, a cidade de Lisboa assistiu ao mais improvável dos encontros: o do mago ocultista Aleister Crowley com o, à época obscuro, poeta português Fernando Pessoa. Nos idos de setembro de 1930, Crowley recebe uma correspondência cujo remetente residia em Portugal. Astrólogo e poeta entusiasta, o gentil lusitano dizia ser um acompanhador de suas obras e escrevera-lhe para informar que a tabela de correspondências astrológicas de Crowley no “Magick in theory and practice” continha sérios erros, e anexou à carta a tabela devidamente corrigida.
Impressionado com a presteza e erudição, Crowley não só reconheceu os erros como, imediatamente, marcou uma viagem para cumprimentar e conhecer, em pessoa, o astrólogo. Nesse encontro, diversas trocas foram realizadas, incluindo uma tradução para a língua portuguesa de um dos primeiros poemas mágicos de Crowley, o “Hino a Pã”. O encontro terminou a 23 de setembro com o suposto suicídio de Crowley na falésia da Boca do Inferno, em Cascais, encenado por Pessoa com a colaboração de um jornalista. Essas circunstâncias tornam lícito especular que Crowley já viera a Portugal com essa intenção em mente. Sugere-se mesmo que Crowley pode ter chegado a pensar em suicidar-se a sério. Em todo o caso, parece claro que Crowley queria desaparecer por uns tempos, antes de “ressuscitar” em Berlim, onde inaugurou uma exposição de pintura em outubro de 1931.
Talvez Crowley pretendesse recrutar súditos em Portugal para as suas ordens iniciáticas; mas, se o fez, não foi através de Pessoa, que estava mais interessado em usar Crowley para conseguir publicar na Revista Mandrake seus poemas em inglês. Uma expectativa que Crowley alimentou, tentando convencer o poeta a investir na abertura de uma filial da editora em Lisboa. Crowley sabia que a Mandrake estava falida, o que Pessoa ignorava. Ambos estiveram também empenhados na publicação de uma novela policial sobre o mistério da Boca do Inferno, que Pessoa deveria escrever e que seria atribuída a um suposto detetive inglês. O poeta ainda escreveu 200 páginas de textos fragmentários para este livro, que nunca chegou a terminar.
Socialmente, Crowley se tornou conhecido devido as referências feitas a ele no rock n’ roll dos anos 60 e 70, pelas bandas Led Zeppelin, Rolling Stones, Iron Maiden, The Beatles e Black Sabbath, e pelos cantores Bruce Dickinson, Ozzy Osbourne, David Bowie, Raul Seixas e John Frusciante. Os primeiros a citar Crowley em sua obra foram os Beatles. Por serem britânicos, os quatro membros da banda acreditaram que Crowley era uma personalidade influente o bastante para ser colocado na capa do disco Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Isso possibilitou que vários artistas tivessem conhecimento da obra de Crowley: uma boa combinação entre a rebeldia e o anarquismo promovidos pelo rock da época.
Serenamente segundo alguns, exultante segundo outros, Aleister Crowley faleceu aos 72 anos, no primeiro dia de dezembro de 1947, supostamente de bronquite. Quatro dias depois, no crematório de Brighton, é realizada a cerimônia que ficou conhecida como “O Último Ritual”, com a leitura de trechos da Missa Gnóstica, e de seu famoso Hino, a Pã. Aqui reproduzido na tradução de Fernando Pessoa:
HINO A PÃ
Vibra do cio subtil da luz,
Meu homem e afã!
Vem turbulento da noite a flux
De Pã! Iô Pã!
Iô Pã! Iô Pã! Do mar de além
Vem da Sicília e da Arcádia vem!
Vem como Baco, com fauno e fera
E ninfa e sátiro à tua beira,
Num asno lácteo, do mar sem fim
A mim, a mim!
Vem com Apolo, nupcial na brisa
(Pegureira e pitonisa),
Vem com Artémis, leve e estranha,
E a coxa branca, Deus lindo, banha
Ao luar do bosque, em marmóreo monte,
Manhã malhada da âmbrea fonte!
Mergulha o roxo da prece ardente
No ádito rubro, no laço quente,
A alma que aterra em olhos de azul
O ver errar teu capricho exul
No bosque enredo, nos nós que espalma
A árvore viva que é espírito e alma
E corpo e mente — do mar sem fim
(Iô Pã! Iô Pã!),
Diabo ou deus, vem a mim, a mim!
Meu homem e afã!
Vem com trombeta estridente e fina
Pela colina!
Vem com tambor a rufar à beira
Da primavera!
Com frautas e avenas vem sem conto!
Não estou eu pronto?
Eu, que espero e me estorço e luto
Com ar sem ramos onde não nutro
Meu corpo, lasso do abraço em vão,
Áspide aguda, forte lião —
Vem, está vazia
Minha carne, fria
Do cio sozinho da demonia.
À espada corta o que ata e dói,
Ó Tudo-Cria, Tudo-Destrói!
Dá-me o sinal do Olho Aberto,
E da coxa áspera o toque erecto,
E a palavra do Louco e do Secreto,
Ó Pã! Iô Pã!
Iô Pã! Iô Pã Pã! Pã Pã! Pã,
Sou homem e afã:
Faze o teu querer sem vontade vã,
Deus grande! Meu Pã!
Io Pã! Iô Pã! Despertei na dobra
Do aperto da cobra.
A águia rasga com garra e fauce;
Os deuses vão-se;
As feras vêm. Iô Pã! A matado,
Vou no corno levado
Do Unicornado.
Sou Pã! Iô Pã! Iô Pã Pã! Pã!
Sou teu, teu homem e teu afã,
Cabra das tuas, ouro, deus, clara
Carne em teu osso, flor na tua vara.
Com patas de aço os rochedos roço
De solstício severo a equinócio.
E raivo, e rasgo, e roussando fremo,
Sempiterno, mundo sem termo,
Homem, homúnculo, ménade, afã,
Na força de Pã.
Iô Pã! Iô Pã Pã! Pã! Iô Pã!
O MESTRE THERION
(Aleister Crowley)
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