HojePR

HOJEPR LOGO
Siga no WhatsApp
Pesquisar

07/09/2024

frente fria sergio viralobos SERGIO VIRALOBOS

Antologia Pessoal

antologia

Quem quiser comemorar os 99 anos de Dalton Trevisan, completados em junho último, tem uma boa oportunidade ao ler seu último livro lançado por uma editora grande: Antologia Pessoal, no ano passado. Broinha de fubá mimoso recém-saída do forno, os 94 contos que compõem a obra foram selecionados pelo próprio Trevisan e reúne histórias de Novelas nada exemplares (1959), primeiro livro reconhecido pelo contista, até O beijo na nuca (2014).

De quebra, tem um longo e perspicaz prefácio do professor e crítico Augusto Massi, que finaliza assim:

“A arte de organizar antologias incita movimentos semelhantes ao erotismo. O fetiche potencializa esferas maiores que o objeto de desejo. A parte se impõe ao todo. Mestre em antologias, Manuel Bandeira ilumina a questão: “Todo grande verso é um poema completo dentro do poema.” Cada conto de Dalton é um bazar poético de frases e aforismos. Mil e uma noites de ministórias.”

“Para pinçar o que é realmente original, único, particular, o organizador precisa dominar a totalidade da matéria estudada, possuir vasta experiência de leituras, mostrar convívio e intimidade com a obra. Espião da memória. Neste ponto, estamos em boas mãos. Dalton conhece Dalton como ninguém.”

“Do ângulo do leitor, Antologia Pessoal cumpre a promessa fundante das melhores antologias, de ser um rito de iniciação, uma leitura introdutória, abracadabra que abre passagem para a grande obra.”

“O vampiro é extremamente rigoroso. Quando não gosta: corta, risca, sangra. De uma constelação de 700, escolheu apenas 94 contos. Lamento não ter adotado o mesmo método. Após todo este inventário, essa ontologia, essa contabilidade, poderia ter poupado o leitor e resumido tudo neste miniprefácio: “O conto não tem mais fim que novo começo.””

Conheci Trevisan quando tinha uns 13 anos de idade e morava em Brasília. Li o conto “Cemitério de Elefantes” e fiquei bastante impactado e ainda mais quando soube que o autor era natural da mesma cidade que eu. Foi um dos principais motivos de ter começado a escrever uns versos. Bem mais tarde, quando fundamos o movimento cultural que chamo de “Frente Fria”, ele foi eleito por unanimidade nosso patrono e segue assim até hoje. Um dos meus parceiros mais frequentes, o escritor Thadeu Wojciechowski, me falou um pouco sobre o Mestre:

“Quando publiquei o romance Assim Até Eu, eu o dediquei ao Machado de Assis, Nelson Rodrigues e Dalton Trevisan, pois esta é uma das linhas sucessórias de grandes escritores brasileiros. É a evolução do ritmo da nossa língua, e por gostar tanto desses 3 gênios, acabei criando um escritor híbrido, que se inspira nos 3 para escrever as suas tão mirabolantes crônicas: o Dalton Machado Rodrigues. O Dalton é a gente. E quando um escritor atinge esse nível só é possível amá-lo e homenageá-lo.”

Outro parceiro mais recente e não menos talentoso é o Marcelo Sandmann, que além de poeta e tecladista da Orquestra Sem Fim, minha banda atual, é professor de Literatura na Universidade Federal do Paraná e pode falar com propriedade sobre o significado de Dalton para nós:

“Dalton Trevisan é um dos maiores escritores brasileiros vivos. E permanece vivíssimo. Da altura dos seus 99 anos de idade, continua reescrevendo seus contos, organizando antologias, enviando brochurinhas aos leitores amigos, acompanhando a cena artística e literária. Expressionista-naturalista, criou uma Curitiba toda sua, um misto de observação objetiva da realidade com outro tanto de distorção subjetiva, palco de dramas passionais e sociais, metáfora do mundo. E tudo isso numa linguagem sintética e incisiva, que vai de um extremo ao outro, do grotesco mais abjeto à iluminação lírica. Caso singular de uma vida inteira dedicada à literatura.”

Mês passado, recebi uma visita em casa de três poetas do Movimento Neomarginal de São Paulo. Entre outras coisas, mostrei-lhes o livro “234” de Dalton, em que ele encolhe seus contos até quase virarem haicais. Vitor Miranda, o fundador do Movimento, gostou particularmente deste conto/poema:

Curitiba é uma boa cidade se você for a pedra solta na rua, o galho seco de árvore, a pena de pardal soprada ao vento.

E disse-me o que acha de Trevisan: ““Era difícil pintar o mundo e os homens, e, ao mesmo tempo, conviver com eles.” Albert Camus escreve num conto do livro “O exílio e o reino” algo que talvez descreva a personalidade de Dalton Trevisan. Caminhar por Curitiba me faz imaginar ser Dalton Trevisan e sentir que o vampiro é a própria cidade. A alma e a literatura. A poesia da província. A pedra solta na rua. Me sinto a pedra solta na rua. Aquela que Dalton chutará na primeira frase após caminhar pelo Passeio Público sem que ninguém o perceba. Caminhar para escrever. Ver e ouvir. Sem que ninguém importune o saco da imaginação.”

Em homenagem a Vitor Miranda e aos tantos admiradores de Dalton Trevisan, finalizo este artigo com a publicação de mais oito dos seus minicontos ou grandes poemas, extraídos do meu livro preferido “234” (infelizmente nenhum deles consta de Antologia Pessoal):

13

Ao ver o pacote de bala azedinha na mão da mulher:

– Assim não há dinheiro que chegue.

E um pontapé na traseira do piá de três aninhos.

 

33

A santidade do pai é alcançada pela danação do filho.

 

46

Domingo, de volta do futebol, ele serve-se de uma cachacinha, liga o rádio

– Sabe, paizinho?

É o menino de seis anos, todo prosa.

– O que, meu filho?

– Essa a música que a mãe dança com o tio Lilo.

 

57

Os dois irmãos eram os piores inimigos. Bem me lembro no enterro da velhinha. Eles seguravam a alça do caixão – e não se olhavam. Pálidos, mas de fúria. Nem a cruz das almas comoveu os dois. Se odiavam tanto que a finadinha bulia sem parar entre as flores.

 

110

Na cama, diz o marido:

– Você é gorda, sim. Mas é limpa.

– …

– Você é feia, certo? Mas é de graça.

 

179

– Chorei a última lágrima. Chorei o terceiro olho da cara.

 

210

Haicai – a ejaculação precoce de uma corruíra nanica.

 

234

Essa outra me conheceu? Acho que tem esse lance. Eu ia passando na estrada, ela vinha vindo. Pedi horas pra ela. Comecei a trocar uma ideia e tal. Feliz Natal, eu disse. Aí ela viu a faca: “Tá limpo. Num quero que me mata. Num quero é morrer.” Eu usei ela. Fiquei com ela e tal. Dentro dos conformes. Com uma de menor? Nadinha a ver. Eu peguei e saí fora. Raiva de ninguém, não. Nesse mundo não tem amigo. Você tem de zoar mesmo. Estou pra tudo. Um fumo aí. Mais um bagulho. E umas. E outras. Aí fico meio doidão. Lá vem uma dona e tal. Trocar uma ideia. Feliz Natal. Tá limpo?

 

Antologia Pessoal
Características
• ISBN:978-65-5587-666-6
• Formato:Capa Dura
• Suporte:Texto
• Altura:20.5cm
• Largura:13.5cm
• Profundidade:2.4cm
• Lançamento:04-10-2023
• Páginas:448

Leia outras colunas Frente Fria aqui.

Deixe seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *