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Antologia Pessoal

11/07/2024
antologia

Quem quiser comemorar os 99 anos de Dalton Trevisan, completados em junho último, tem uma boa oportunidade ao ler seu último livro lançado por uma editora grande: Antologia Pessoal, no ano passado. Broinha de fubá mimoso recém-saída do forno, os 94 contos que compõem a obra foram selecionados pelo próprio Trevisan e reúne histórias de Novelas nada exemplares (1959), primeiro livro reconhecido pelo contista, até O beijo na nuca (2014).

De quebra, tem um longo e perspicaz prefácio do professor e crítico Augusto Massi, que finaliza assim:

“A arte de organizar antologias incita movimentos semelhantes ao erotismo. O fetiche potencializa esferas maiores que o objeto de desejo. A parte se impõe ao todo. Mestre em antologias, Manuel Bandeira ilumina a questão: “Todo grande verso é um poema completo dentro do poema.” Cada conto de Dalton é um bazar poético de frases e aforismos. Mil e uma noites de ministórias.”

“Para pinçar o que é realmente original, único, particular, o organizador precisa dominar a totalidade da matéria estudada, possuir vasta experiência de leituras, mostrar convívio e intimidade com a obra. Espião da memória. Neste ponto, estamos em boas mãos. Dalton conhece Dalton como ninguém.”

“Do ângulo do leitor, Antologia Pessoal cumpre a promessa fundante das melhores antologias, de ser um rito de iniciação, uma leitura introdutória, abracadabra que abre passagem para a grande obra.”

“O vampiro é extremamente rigoroso. Quando não gosta: corta, risca, sangra. De uma constelação de 700, escolheu apenas 94 contos. Lamento não ter adotado o mesmo método. Após todo este inventário, essa ontologia, essa contabilidade, poderia ter poupado o leitor e resumido tudo neste miniprefácio: “O conto não tem mais fim que novo começo.””

Conheci Trevisan quando tinha uns 13 anos de idade e morava em Brasília. Li o conto “Cemitério de Elefantes” e fiquei bastante impactado e ainda mais quando soube que o autor era natural da mesma cidade que eu. Foi um dos principais motivos de ter começado a escrever uns versos. Bem mais tarde, quando fundamos o movimento cultural que chamo de “Frente Fria”, ele foi eleito por unanimidade nosso patrono e segue assim até hoje. Um dos meus parceiros mais frequentes, o escritor Thadeu Wojciechowski, me falou um pouco sobre o Mestre:

“Quando publiquei o romance Assim Até Eu, eu o dediquei ao Machado de Assis, Nelson Rodrigues e Dalton Trevisan, pois esta é uma das linhas sucessórias de grandes escritores brasileiros. É a evolução do ritmo da nossa língua, e por gostar tanto desses 3 gênios, acabei criando um escritor híbrido, que se inspira nos 3 para escrever as suas tão mirabolantes crônicas: o Dalton Machado Rodrigues. O Dalton é a gente. E quando um escritor atinge esse nível só é possível amá-lo e homenageá-lo.”

Outro parceiro mais recente e não menos talentoso é o Marcelo Sandmann, que além de poeta e tecladista da Orquestra Sem Fim, minha banda atual, é professor de Literatura na Universidade Federal do Paraná e pode falar com propriedade sobre o significado de Dalton para nós:

“Dalton Trevisan é um dos maiores escritores brasileiros vivos. E permanece vivíssimo. Da altura dos seus 99 anos de idade, continua reescrevendo seus contos, organizando antologias, enviando brochurinhas aos leitores amigos, acompanhando a cena artística e literária. Expressionista-naturalista, criou uma Curitiba toda sua, um misto de observação objetiva da realidade com outro tanto de distorção subjetiva, palco de dramas passionais e sociais, metáfora do mundo. E tudo isso numa linguagem sintética e incisiva, que vai de um extremo ao outro, do grotesco mais abjeto à iluminação lírica. Caso singular de uma vida inteira dedicada à literatura.”

Mês passado, recebi uma visita em casa de três poetas do Movimento Neomarginal de São Paulo. Entre outras coisas, mostrei-lhes o livro “234” de Dalton, em que ele encolhe seus contos até quase virarem haicais. Vitor Miranda, o fundador do Movimento, gostou particularmente deste conto/poema:

Curitiba é uma boa cidade se você for a pedra solta na rua, o galho seco de árvore, a pena de pardal soprada ao vento.

E disse-me o que acha de Trevisan: ““Era difícil pintar o mundo e os homens, e, ao mesmo tempo, conviver com eles.” Albert Camus escreve num conto do livro “O exílio e o reino” algo que talvez descreva a personalidade de Dalton Trevisan. Caminhar por Curitiba me faz imaginar ser Dalton Trevisan e sentir que o vampiro é a própria cidade. A alma e a literatura. A poesia da província. A pedra solta na rua. Me sinto a pedra solta na rua. Aquela que Dalton chutará na primeira frase após caminhar pelo Passeio Público sem que ninguém o perceba. Caminhar para escrever. Ver e ouvir. Sem que ninguém importune o saco da imaginação.”

Em homenagem a Vitor Miranda e aos tantos admiradores de Dalton Trevisan, finalizo este artigo com a publicação de mais oito dos seus minicontos ou grandes poemas, extraídos do meu livro preferido “234” (infelizmente nenhum deles consta de Antologia Pessoal):

13

Ao ver o pacote de bala azedinha na mão da mulher:

– Assim não há dinheiro que chegue.

E um pontapé na traseira do piá de três aninhos.

 

33

A santidade do pai é alcançada pela danação do filho.

 

46

Domingo, de volta do futebol, ele serve-se de uma cachacinha, liga o rádio

– Sabe, paizinho?

É o menino de seis anos, todo prosa.

– O que, meu filho?

– Essa a música que a mãe dança com o tio Lilo.

 

57

Os dois irmãos eram os piores inimigos. Bem me lembro no enterro da velhinha. Eles seguravam a alça do caixão – e não se olhavam. Pálidos, mas de fúria. Nem a cruz das almas comoveu os dois. Se odiavam tanto que a finadinha bulia sem parar entre as flores.

 

110

Na cama, diz o marido:

– Você é gorda, sim. Mas é limpa.

– …

– Você é feia, certo? Mas é de graça.

 

179

– Chorei a última lágrima. Chorei o terceiro olho da cara.

 

210

Haicai – a ejaculação precoce de uma corruíra nanica.

 

234

Essa outra me conheceu? Acho que tem esse lance. Eu ia passando na estrada, ela vinha vindo. Pedi horas pra ela. Comecei a trocar uma ideia e tal. Feliz Natal, eu disse. Aí ela viu a faca: “Tá limpo. Num quero que me mata. Num quero é morrer.” Eu usei ela. Fiquei com ela e tal. Dentro dos conformes. Com uma de menor? Nadinha a ver. Eu peguei e saí fora. Raiva de ninguém, não. Nesse mundo não tem amigo. Você tem de zoar mesmo. Estou pra tudo. Um fumo aí. Mais um bagulho. E umas. E outras. Aí fico meio doidão. Lá vem uma dona e tal. Trocar uma ideia. Feliz Natal. Tá limpo?

 

Antologia Pessoal
Características
• ISBN:978-65-5587-666-6
• Formato:Capa Dura
• Suporte:Texto
• Altura:20.5cm
• Largura:13.5cm
• Profundidade:2.4cm
• Lançamento:04-10-2023
• Páginas:448

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