Acredito que a maioria de leitores de minha coluna Frente Fria seja de artistas ou aspirantes a ser. Para o segundo grupo, e mesmo para o primeiro, recomendo a leitura do livro, recém-lançado no Brasil, “Como Ser Artista”, de Jerry Saltz, ícone da crítica de arte americana. Conhecido por suas controvérsias, o escritor ensina novatos a lidar com o ‘ninho de cobras’ da arte.
Fiquei sabendo de Saltz num artigo de Clara Balbi, publicado na Folha de São Paulo, em 30 de janeiro de 2025. Aqui vão alguns trechos da entrevista que ela fez com o crítico:
“Mas o que um crítico sabe sobre ser artista? “Sim, quem diabos sou para escrever um livro desses?”, ele concorda diante da pergunta da Folha. “Bem, eu sou todo artista que falhou. Sou todo mundo que ouviu o chamado e foi impedido pelo medo de passar vergonha, de não ter nada a dizer. Todos esses medos que um artista sente, eu quis abordar como um ex-artista”, afirma.
“Além disso, “eu fui artista, e as memórias dessa época são tão profundas, tão fortes, tão comoventes”, acrescenta. “Então não me ouça. Ouça o meu antigo eu, aquele que um dia foi e de quem ainda me lembro.”
“Saltz só se tornou crítico de arte aos 40 e poucos anos. Antes, tentou ser pintor e não seguiu em frente. Acabou trabalhando por uma década como caminhoneiro. Ele conta que a princípio achou que aquela seria uma vida romântica. Com o passar dos anos, porém, passou a odiar a estrada e a sentir falta do métier nova-iorquino.
“O autor diz que aprendeu a escrever sobre arte copiando o estilo de artigos da Artforum, uma das revistas especializadas mais respeitadas do mundo. Mesmo quando começou a ter os textos publicados, no entanto, afirma que “não sabia o que estava fazendo”. Até que um dia, atrasado para enviar um artigo, apostou na própria voz. E nunca mais parou.
“Essa busca por autenticidade se faz presente na maior parte dos conselhos de “Como Ser Artista”. “Saiba o que você odeia”, “assuma seus prazeres infames”, “não sinta vergonha” e “se perca” são algumas de suas orientações aos aspirantes a artistas na publicação.
“O livro é o primeiro do autor a ser lançado no Brasil. É também provavelmente aquele cuja linguagem é a mais próxima daquela que usa nas redes sociais, provocativa e concisa —os demais são, em sua maioria, coletâneas de ensaios que publicou na imprensa ao longo dos anos, mais elaborados e, em certa medida, menos acessíveis.
“Em comparação, suas postagens muitas vezes consistem em poucas frases, que vão de perguntas sobre o cotidiano, como qual foi o melhor filme que seus seguidores viram no ano passado, a pílulas filosóficas sobre as artes plásticas.
“Saltz diz que “Como Ser Artista” é, das obras que escreveu, a sua preferida. “É a mais curta. Diria que é possível lê-la em duas ou três sentadas”, afirma. “E é barata. Você pode guardá-la no seu estúdio e fazer o que quiser com ela. Jogar na parede, por exemplo.”
“O crítico define a publicação como uma espécie de livro de orações, com meditações curtas e compreensíveis “sobre, bem, tudo”. De fato, muitos dos conselhos que ele traz parecem se aplicar também a não artistas.
“Saltz conta que ele mesmo se surpreendeu quando esportistas e chefs de cozinha, entre outros, o abordaram para contar que tinham se identificado com a publicação. Questionado sobre qual julga ter sido o motivo dessa identificação, responde que talvez todo processo criativo seja misterioso. “E eu devo ter tocado pelo menos algumas dessas ideias sobre a imaginação, sobre contar sua própria história, sobre a alteridade da arte, sobre não saber de onde ela vem, sobre se perder.”
“Se no livro é seu lado de ex-artista que predomina, na entrevista Saltz dá uma amostra da língua ferina que se tornou sua marca.
“”Como eu sou mais velho, ainda posso apontar o que não gosto”, diz. “Mas ninguém mais tem mais coragem de escrever críticas negativas. Têm medo de serem chamados de machistas, racistas, xenófobos.”
“O crítico já deve ter sido chamado de todos esses adjetivos na internet. Em uma entrevista ao portal Vulture sobre “Como Ser Artista”, disse que começou a reavaliar o que publicava depois que foi chamado de “Donald Trump das redes sociais do mundo da arte”, em 2016.
“Atualmente, ele limita suas publicações no Instagram, onde tem cerca de 680 mil seguidores, a imagens do próprio cotidiano e reproduções de suas postagens no X, além de obras de arte que o interessam.
“O retorno de Trump à Casa Branca não deixou de ter impacto sobre Saltz. Ele afirma que, no governo Barack Obama, de 2009 a 2017, tinha a sensação de que uma certa produção artística cosmopolita, politicamente engajada, era central para a cultura dos Estados Unidos.
“Ele cita Beyoncé, cujos álbuns têm aprofundado batalhas conceituais sobre o que é ser negro no país. “Hoje entendo que sempre estivemos fora do mainstream. A reeleição de Trump só reforça isso”, aponta.
“Seja como artista malsucedido ou crítico, o recado de Saltz acaba sendo o mesmo. “Tudo o que as pessoas disserem que você não pode fazer, elas que se danem. Use todas as ideias que tiver, trabalhe em qualquer suporte, e você fracassará como você mesmo, não tentando ser algo diferente —um humanista ou um progressista bonzinho, alguém que faz arte sobre as coisas certas. Fracasse com estilo. Fracasse como você mesmo.””
Em um painel da College Art Association em fevereiro de 2007, Saltz comentou: “Vivemos em um mundo de arte da Wikipédia. Vinte anos atrás, havia apenas quatro ou cinco enciclopédias — e eu tentei entrar nelas. Agora, toda a escrita está na Wikipédia. Algumas entradas são falsas, algumas são as melhores. Vivemos em um mundo de arte aberto.” Vejamos algumas coisas que a Wikipédia fala sobre ele:
Jerry Saltz (nascido em 19 de fevereiro de 1951, em Chicago, Illinois ) é um crítico de arte norte-americano. Desde 2006, ele é crítico de arte sênior e colunista da revista New York . Anteriormente crítico de arte sênior do The Village Voice , ele recebeu o Prêmio Pulitzer de Crítica em 2018 e foi indicado ao prêmio em 2001 e 2006. Saltz atuou como crítico visitante na School of Visual Arts , Columbia University , Yale University , e The School of the Art Institute of Chicago e no New York Studio Residency Program, e foi o único conselheiro da Bienal do Whitney de 1995 .
Saltz recebeu três doutorados honorários, incluindo o da School of the Art Institute of Chicago em 2008 e o do Kansas City Art Institute em 2011.
Saltz nasceu em Oak Park , antes de se mudar para River Forest, Illinois . Sua mãe morreu quando ele tinha dez anos. Pouco depois, ele se lembra de uma viagem memorável ao Art Institute of Chicago , onde descobriu: “Tudo aqui está contando uma história, tudo aqui tem um código, tem uma linguagem — e eu vou aprender toda essa linguagem e vou conhecer a história.”
Saltz mudou-se para o centro da cidade e frequentou a Escola do Instituto de Arte de Chicago de 1970 a 1975, antes de abandonar o curso.
Saltz trabalhou brevemente na Jan Cicero Gallery antes de co-fundar, com Barry Holden e artistas do Art Institute of Chicago , a NAME Gallery, uma galeria administrada por artistas. Saltz mudou-se para Nova York em 1980.
Em um artigo na revista Artnet , Saltz codificou sua perspectiva: “Todos os grandes artistas contemporâneos, escolarizados ou não, são essencialmente autodidatas e estão se desqualificando loucamente. Não procuro habilidade na arte… Habilidade não tem nada a ver com proficiência técnica… Estou interessado em pessoas que repensam a habilidade, que a redefinem ou a reinventam: um engenheiro, digamos, que constrói foguetes a partir de pedras.” Em 2008, Saltz disse: “Estou procurando o que o artista está tentando dizer e o que ele ou ela está realmente dizendo, o que o trabalho revela sobre a sociedade e as condições atemporais de estar vivo”.
Em Seeing Out Loud , sua coleção de colunas do Village Voice publicada em 2003, ele disse que se considera o tipo de crítico que Peter Plagens chama de “goleiro”, alguém que diz “Vai ter que ser muito bom para passar por mim”.
Saltz citou a “arte do cupim” de Manny Farber e a “Babilônia” de Joan Didion , bem como outras metáforas sistêmicas de amplo alcance para o mundo da arte . Embora tenha defendido o mercado de arte, ele também denunciou o comportamento do mercado da moda e o fetiche pela juventude, dizendo que “o mundo da arte devora seus jovens”.
Ele expressou dúvidas sobre a influência dos críticos de arte como fornecedores de gosto, dizendo que eles têm pouco efeito no sucesso da carreira de um artista. No entanto, a ArtReview o chamou de 73ª pessoa mais poderosa do mundo da arte em sua lista Power 100 de 2009.
Em uma entrevista de 2018, Saltz afirmou: “Até hoje eu acordo cedo e tenho que ir para minha mesa para escrever quase imediatamente. Quero dizer, rápido. Antes que os demônios me peguem. Eu tenho que começar a escrever. E uma vez que eu tenha escrito quase tudo, eu vou escrever praticamente o dia todo, eu não saio da minha mesa, eu não tenho outra vida. Eu não faço parte do mundo, exceto quando eu vou ver shows.”
Saltz usa o Facebook mais ativamente do que muitos outros críticos de arte, postando perguntas e diatribes diárias para seu público de amigos, que somava 94.039 pessoas em dezembro de 2020. Ele declarou que quer desmistificar o crítico de arte para artistas e um público de arte em geral. Suas postagens são menos polidas e contidas do que seus escritos para a New York Magazine e vulture.com, e ele compartilhou assuntos pessoais, incluindo tragédias familiares, solavancos na carreira e sua dieta. Ele disse ao New York Observer : “É emocionante estar nesta sala com 5.000 pessoas. É como o Cedar Bar para mim, ou o Max’s Kansas City .”
Ele usou sua página para defender o uso da ironia na arte, argumentando contra os adeptos da “Nova Seriedade”, a quem ele chama de “Polícia da Pureza”.
Em 2010, a artista Jennifer Dalton expôs uma obra de arte chamada “Sobre o que não estamos nos calando?” na FLAG Foundation em Nova York, que analisou estatisticamente cinco meses de conversas no Facebook entre Saltz e seus amigos online. Em uma entrevista com a Artinfo , Dalton disse sobre o trabalho: “Fiquei interessado na página do Facebook de Jerry Saltz como um site incrível de diálogo escrito e como um lugar onde a cultura está sendo criada na hora. Acho que minha peça, e a própria página do Facebook de Jerry Saltz, nos dizem que muitas pessoas no mundo da arte anseiam por diálogo e comunidade, e quando um espaço é acolhedor o suficiente, as pessoas realmente se aglomeram nele.”
Em 2015, Saltz foi brevemente suspenso do Facebook depois que o site recebeu reclamações de usuários sobre postagens provocativas.
Saltz hoje vive na cidade de Nova York com sua esposa Roberta Smith , co-crítica de arte chefe do New York Times . Eles se casaram em 1992. Saltz é judeu.
Quem já leu um catálogo de exposição artística, com sua linguagem confusa e termos estapafúrdios, sabe que a linguagem não é o forte da turma das artes plásticas. Para finalizar este artigo, quero dar voz ao próprio crítico, que assim escreveu, no seu estilo límpido, a Introdução de “Como Ser Artista”:
Arte é para qualquer um. Eu sei disso de maneira visceral, como um aspirante a artista que acabou esgotado… Em toda palestra que ministro, em toda galeria que visito, as pessoas me pedem conselhos. O que a maioria delas está de fato perguntando é: “Como posso ser artista?”
…Posso mesmo ser artista se não fiz faculdade de arte? Se trabalho em tempo integral? Se tenho filhos? Se estou apavorado? Claro que pode.
…Recentemente, transformei o cerne desses conselhos em um artigo para a revista “New York”, uma espécie de assemblage feita para levar o leitor “de amador desinformado a um talento geracional”, como a revista definiu, “ou ao menos ajudá-lo a viver a vida de maneira mais criativa”. O artigo pareceu reverberar, mas também me fez pensar. Assim que a tinta estava seca, comecei a compor novas regras, para além das 33 que eu havia escrito de início. Constelações de perguntas, reflexões e direcionamentos gentis, como “Faça arte para o agora, não para o futuro”. Ou então “Não se preocupe em fazer algo bom – só faça algo”. Ou mesmo “Seja legal, generoso e aberto com os outros e cuide bem dos seus dentes”. Todas essas frases têm o objetivo de ajudar as pessoas a acessar aquilo que já existe no fundo dentro delas e transformá-lo em arte.
…Alguns dos medos que nos bloqueiam são conjunturais:
“O que acontece se você não frequentou um curso formal de arte?” (Eu não frequentei.)
“E se você for quase patologicamente tímido?” (Olá.)
“E se você sofrer de síndrome do impostor?” (Quase todo mundo sofre; é o preço do ingresso à Casa da Criatividade.)
“Ou se tiver pouco dinheiro?” (Bem-vindo ao maior clube ruim que existe.)
… Espero que este livro traga não apenas respostas, mas também novas perguntas sobre sua relação com a arte… Se você é aspirante a artista, quero que se lembre disto: nada acontece se você não estiver trabalhando… (Eu aprendi isso tarde, como um ex-motorista de caminhão que percorria longas distâncias, sem diploma, que nunca escreveu uma palavra na vida até quase os 40 anos, evitando o trabalho criativo porque estava paralisado de medo.) … A arte permite que acessemos experiências e estados que parecem profundamente humanos, importantes e prazerosos… Espero que essas ideias ajudem você a mergulhar nesses estados e, talvez, a concretizá-los.
… Então aqueça seus motores; mergulhe; sinta sua imaginação se engajar com a realidade, superando limites e convenções e se transformando diante dos seus olhos. Nunca se sinta intimidado. Arte é apenas um recipiente dentro do qual você pode se derramar.
Mão à obra!
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