Não é uma montagem: esta foto é do cultuado cineasta Francis Ford Coppola na antiga Arena da Baixada, assistindo ao clássico local Paraná X Atlético (o time ainda não tinha acrescentado um H ao nome). Ele chegou por aqui no dia 30 de julho de 2003, há pouco mais de 20 anos, e hospedou-se na suíte presidencial do Hotel Bourbon.
Parece muito estranho, mas Coppola, que completou 84 anos em 7 de abril de 2023, pretendia rodar aqui uma parte de seu então próximo filme:”Megalópolis”, ainda em fase de pré-produção, em que ele pretendia mostrar que é possível viver numa grande cidade e ter seus problemas urbanos resolvidos por soluções de baixa tecnologia. Em entrevista coletiva à época, o diretor contou que a história iria se passar numa Nova York que poderia surgir daqui a 20 (ou seja, agora) ou 50 anos. Com o filme, ele também pretendia traçar um paralelo entre a influência americana no mundo atual com a hegemonia conquistada pelo império romano.
Coppola estava em Curitiba pesquisando exemplos de projetos com a filosofia de facilitar o cotidiano do cidadão. O diretor disse que a capital do Paraná reúne ideias que vão estar no filme. A obra estava orçada em US$ 60 milhões. Para Coppola, o sistema de transporte coletivo de Curitiba, por exemplo, impede que as ruas fiquem lotadas de carros e apareçam congestionamentos. O sistema tem linhas que passam por vias exclusivas, o que aumenta a velocidade e a pontualidade dos ônibus. Ele achou a cidade limpa, elogiou o programa de reciclagem do lixo, mas chamou a atenção pelo fato de ter encontrado muitos prédios e fachadas pichados.
Pois pasmem ainda mais: no dia do seu último aniversário Coppola comunicou que, em breve, um dos seus maiores projetos deve ser lançado: o filme “Megalópolis”, que demorou 40 anos para sair do papel!
Antes de contarmos mais sobre a estadia de Coppola em Curitiba, vamos voltar ao Hotel Bourbon, onde ele estava hospedado. Ali foi a origem da amizade com o presidente da Rede Bourbon, Alceu Vezozzo Filho, que convidou Coppola a conhecer seu hotel em Buenos Aires. O cineasta topou e se apaixonou pela cidade. Lá ele filmaria seu próximo filme “Tetro” lançado em 2009.
No artigo “Tetro – A Arte como Salvação” o crítico Francisco Russo escreve sobre o filme para o site Adoro Cinema: “Francis Ford Coppola é um gênio inconteste do cinema. Poucos têm no currículo pérolas cinematográficas do porte da trilogia O Poderoso Chefão, Apocalypse Now ou A Conversação. Ainda assim, Coppola nem sempre acerta. Nas últimas duas décadas, pelo menos, o veterano diretor tem patinado no comando de seus filmes. Seu penúltimo trabalho, Velha Juventude, nem chegou a ser lançado nos cinemas brasileiros. Este desempenho recente joga de imediato uma dúvida sobre Tetro, seu novo trabalho. Seria um filme digno dos áureos tempos de sua carreira ou apenas mais um trabalho que ganha destaque graças ao seu currículo? Felizmente, a primeira opção é a resposta correta.
Praticamente todo em preto e branco, Tetro traz consigo uma aura de filme noir. A cidade tema é Buenos Aires, mais exatamente o bairro de La Boca, pobre mas repleto de paixões a cada esquina. O espírito argentino, carregado e por vezes exagerado – o tango que o diga -, também ajuda a compor o clima. É em meio à inevitável névoa que chega Bennie, o jovem em busca do irmão que resolveu abandonar a família para iniciar nova vida. Angelo era seu nome, Tetro é o atual. Recepcionado pela bela Maribel Verdú, que por vezes faz o papel da mulher fatal, Bennie fica hospedado na casa do irmão. Só que Tetro não quer encontrá-lo nem relembrar do que deixou para trás. A ânsia em se tornar escritor foi deixada dentro de uma mala empoeirada, largada em cima do armário. É lá que está o segredo do que fez Angelo se tornar Tetro. Bennie, curioso, resolve investigar. E, à medida que descobre a verdade, decide que o único meio de curá-lo é através da arte.
Este é o conceito mais interessante por trás de Tetro. Os traumas familiares que fizeram com que seu personagem-título se tornasse cada vez mais fechado e intransponível são quebrados graças ao uso dos mesmos através da arte. Trata-se de uma trajetória sofrida, dura e complicada, mas necessária. É apenas através do enfrentamento que Tetro pode voltar a si e aceitar seu passado. Uma espécie de fazer as pazes consigo mesmo onde as pessoas à sua volta, é claro, também são atingidas.
Este caminho tortuoso é trazido através de uma fotografia linda, onde o colorido apenas aparece quando surgem memórias, representando também o quanto elas ainda estão vivas na mente de Tetro. Coppola usa as luzes e sombras para dar um clima nebuloso, realçado pelo preto e branco de grande parte do filme. Além disto Tetro conta com cenas memoráveis, que lembram o diretor no auge de sua forma. Duas em especial merecem ser citadas: o quase atropelamento do cachorro e o singelo encontro entre Tetro e sua esposa, onde “I love you” não é dito mas pode-se perfeitamente compreender seu significado, através da leitura labial. Belo.
Tetro não chega aos pés dos melhores filmes dirigidos por Coppola, mas é um digno representante de sua filmografia. Trata-se de um filme repleto de significados ocultos, desvendados de forma a montar um quebra-cabeça sobre o passado dos personagens apresentados. Muito bom filme, especialmente pelo modo como a história é apresentada. Fosse um diretor menos refinado e mais direto ao ponto e Tetro seria bastante diferente.”
Veja o trailer oficial de Tetro aqui.
Mais uma curiosidade: você sabia que Francis Ford Coppola gostou tanto da cidade que até hoje tem uma parceria com um hotel da Rede Bourbon em Buenos Aires, na Argentina? Veja como o site oficial do hotel faz a apresentação dessa parceria:
“Da parceria entre o cineasta Francis Ford Coppola e a rede Bourbon, surge o Be Jardín Escondido by Coppola, um hotel exclusivo, que oferece serviços e experiências únicas ao viajante. Francis Ford Coppola residia nesta propriedade durante as filmagens de seu filme Tetro, lançado em 2009. O cineasta ficou encantado pela casa, pela vizinhança e pela região, e decidiu compartilhar essa experiência única com viajantes de todo o mundo. Be Jardín Escondido by Coppola oferece aos seus hóspedes um refúgio elegante e convidativo, no coração de um dos bairros mais desejados de Buenos Aires”.
O hotel foi reformado de acordo com os desejos de Coppola e cada canto foi pensado e decorado por ele e por sua esposa, Ellie. A suíte principal é a Francis, o quarto que ocupou durante os anos em que viveu na cidade. Ainda temos a suíte Ellie, de frente para a piscina; a suíte Roman, batizada com o nome do filho; além da suíte Sofia, que recebeu o nome da filha-diretora.
Por fim, também há quartos que foram batizados com os nomes de seus escritores sul-americanos favoritos, o chileno Roberto Bolaño e o argentino Julio Cortazar: o homem tem bom gosto para leituras.
Agora vamos dar um flash back para a Curitiba de 2003 pra saber mais detalhes da estadia aqui de Coppola.
Em 15/01/2016, Sandro Moser, um dos maiores craques da história do jornalismo cultural paranaense, escreveu um artigo rememorativo sobre a visita na Gazeta do Povo. Leia alguns trechos:
“O ano amanheceu com a porta da Frutaria Canadá fechada. A quitanda de Nagib Kaiel funcionou 48 anos no térreo do edifício Anita, centro, esquina da Carlos de Carvalho com Ermelino de Leão.
Era o começo de uma curta amizade entre Francis e Nagib. E do roteiro de histórias protagonizado pelo cineasta que dedicou duas semanas a deambular por Curitiba.
Coppolla chegou no dia 30 de julho e hospedou-se na suíte presidencial no 16º andar do Hotel Bourbon. Duzentos metros ao leste, o Caffé Metropolis (também no Anita) virou seu ponto. O criador de O Fundo do Coração parava lá todo dia para um café nas mesas da calçada.
Em Curitiba, Coppola prospectava terreno para o nunca realizado filme Megalópolis. Há até o argumento e um esboço de story board (a história em quadrinhos que precede as filmagens) do filme, mas depois de Tetro (2009), ele parece ter deixado à filha Sofia as câmeras e hoje prefere produzir vinhos.
Mas sua passagem pela terra de Valêncio Xavier foi marcante. Me motivou –e assim se faz com visitantes ilustres como Saint Hillaire e Dom Pedro II – a seguir seus passos 13 anos depois tentando descobrir o quanto resta da cidade que ele viu, cheirou e comeu.
Relendo as crônicas de Dante Mendonça e as colunas sociais de Reinaldo Bessa vê-se que Coppola se integrou ao território. Quase o personagem Zequinha das balas: há fotos de Coppola fazendo pizza, tomando chope, sendo paparicado e num jogo do Atlético contra o Paraná Clube.
A Baixada ainda tinha grama natural e o “pombal” de onde Mario Celso Petraglia cornetava bandeirinhas sem se preocupar em tuitar sobre o acordo tripartite.
Conversando com quem conviveu com o homem notei uma coisa: quem tentou fazer contato formal não conseguiu. Muitos que nem sabiam quem ele era ficaram íntimos do gênio que um dia quis matar Dennis Hopper no set de “Apocalypse Now”.
Como o garçom Cléber de Souza do restaurante A Pamphylia que o reconheceu na mesa 28 da cantina e tornou-se seu primeiro amigo curitibano. Coppola jantou lá cinco vezes. Numa noite, meteu a mão na massa e criou uma receita para a casa.
O legado da visita de Coppola tem massa dupla coberta de generosa mistura de molho de tomate, azeite de oliva e manjericão fresco que depois de assados parecem uma das camisas tropicais do diretor criado no Queens em Nova Iorque. Para comer com a mão, serve quatro pessoas.
Numa tarde de sábado a professora de cinema Denize Araújo fez um golaço ao buscar Coppola no hotel e convencê-lo a dar uma aula a seus alunos. Ele falou que roteiro e atores são tudo num filme, de seu desprezo pela indústria do cinema e que achava o dvd uma evolução tecnológica importante.
Com o já ex-governador Jaime Lerner, o diretor de “Cotton Club” andou de biarticulado e se assustou com as pichações. Conheceu o MON, a Ópera de Arame, a Pedreira e foi até o Mercado Municipal comprar ingredientes para um jantar italiano. Em seu livro de crônicas, “Quem Cria Nasce Todo Dia”, Lerner conta que ainda mantém amizade com o diretor e o resume numa frase: “ninguém supera os filmes extraordinários, os vinhos, nem a coleção de camisas estampadas do Coppola”.”
Por falar em Jaime Lerner, ele recebeu Coppola quando este voltou a Curitiba, para uma breve passagem, em 2008, provavelmente a caminho de Buenos Aires. O arquiteto e Alceu Vezozzo Filho recepcionaram o amigo com um almoço bem brasileiro, a tradicional feijoada. “Já estava com saudades dessa delícia”, comentou Coppola, feliz.
Em 6/8/2003, outro craque de nossas letras, o jornalista Dante Mendonça, escrevia esta engraçada crônica para a Gazeta do Povo:
“O anúncio foi publicado discretamente nesta segunda-feira: “Produtora de cinema procura quem tenha mantido contato pessoal com Francis Ford Coppola em Curitiba, para participar de um documentário sobre a histórica estada do cineasta no Paraná”.
Ontem, uma longa fila se formou na porta do endereço indicado para contatos. Eram curitibanos de todas as extrações. Nem todos portavam um autógrafo comprobatório, ou uma foto ao lado do “poderoso chefão”, mas todos tinham uma história para contar.
– Levei pra conhecer a Vila Pinto, que fica no caminho do hotel. Sinceramente, não se entusiasmou. A Vila Pinto não é mais uma favela que se preze. Viu lá uns barracos, mas todos com cortinas na janela, flores no quintal, até carro do ano tinham na garagem. Então, pra não decepcionar, levei o homem pra conhecer a ocupação dos sem-teto no prédio do Banestado na Rua das Flores. Aí, sim: achou aquilo coisa de cinema!
UM GARÇOM não só tinha um depoimento, como também exibia faceiro um guardanapo autografado, manchado de caldo, relíquia da feijoada de sábado num restaurante de hotel:
– O italiano é bom de garfo e empatou com o Jaime Lerner, que também estava de regime. Os dois começaram com caipirinhas de cachaça e travessas de torresminho, só colesterol in natura. Depois pediram cervejas e a feijoada. Orelha de porco nem tanto, mas o que o seu Coppola gostou mesmo foi das piadas de polaco do Lerner. Como eles falavam em inglês, só entendi uma palavra: bitiful! Mas o americano me surpreendeu: pensei que ele fosse fechar a feijoada com um prato de macarrão e uma bisnaga de catchup.
NA UNIVERSIDADE, o estudante de cinema assistiu à palestra do grande diretor e confessou que, de inglês, fala inglês de roqueiro. Isto é, pouco mais que nada.
– Pelo que eu entendi, ele é proprietário de uma vinícola na Califórnia. Tipo assim, ele mesmo faz o vinho que bebe. E disse que os roteiristas do cinema brasileiro são como certos vinhos novos: quanto mais velhos, piores.
No final da palestra, entreguei a ele um meu roteiro inédito: Poderoso Chefão – O retorno. É a história de um clone de Dom Corleone que vem morar aqui em Santa Felicidade e se dá bem: monta um pequeno restaurante, abre uma casa de câmbio, depois uma empreiteira, entra no negócio de bingos e, com os filhos brasileiros, torna-se o maior acionista de uma gigantesca concessionária de pedágio. Ele ficou impressionado.
NO CENTRO DA CIDADE, um contabilista foi abordado pelo diretor de Apocalypse Now e contou como foi:
– Fim de expediente, eu estava andando em direção ao terminal, quando ele me abordou. É um senhor muito fino e solicitou se podia me acompanhar até minha residência, na Água Verde. Tomamos o ônibus expresso e ele fez questão de conhecer minha família. Perguntou de tudo: do meu time de futebol, da nossa renda familiar e do meu lazer nos fins de semana. Aí contei que gostava de lavar o carro, na calçada de casa. Não é que no domingo ele voltou, só pra ajudar a lavar a minha Parati? Ninguém acredita: ainda me convidou para fazer o papel de um curitibano no seu próximo filme – Megalópolis – e, juro, me pediu um autógrafo!
O DONO DE CAFÉ, na Boca Maldita, apresentou um álbum de fotografias: Coppola bebendo Gengibirra Cini, Coppola lendo a Tribuna do Paraná, Coppola com a camisa do Atlético, Coppola comendo paçoquinha, Coppola na garupa do Oil Man. Sobre a ilustre visita, confessou que aconteceu com o diretor o mesmo que ocorreu com o ator Anthony Quinn, quando este passou uma temporada filmando em Curitiba:
– No terceiro dia, a turma perde o respeito e pergunta: “Quando esse chato volta pra casa?””
Sobre a famosa palestra que Coppola deu na Faculdade Tuiuti, nosso grande cineasta Fernando Severo também estava lá e me disse: “Ninguém jamais mencionou que junto com ele estava seu diretor de arte favorito, o vencedor do Oscar Dean Tavoularis.” Dean Tavoularis é designer de produção e diretor de arte, conhecido pelo seu trabalho em O Poderoso Chefão II (1974), Apocalypse Now (1979) e O Poderoso Chefão III (1990). Ou seja, Coppola estava seriamente determinado a buscar aqui locações para o filme “Megalópolis” que começará a ser rodado este ano. Será que ele volta?
Leia outras colunas Frente Fria aqui.
2 Comentários
Desde que escrevi este artigo, recebi dezenas de mensagens de pessoas que tiveram contato com Coppola. Realmente o homem era muito sociável.
Sou proprietário de um comércio de materiais elétricos na rua Cruz Machado, próximo ao Hotel Bourbon, recebi um telefonema do hotel perguntando se vendiamos cabo telefônico e se alguém poderia atender um cliente em Inglês , para minha surpresa entrou na loja o Coppola, vestindo calça social cortada e transformada em bermuda e camisa florida, na época os celulares não tinham câmera, na emoção esqueci até de pedir autógrafo. Ficou a lembrança.