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24/04/2024



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Harry Crowl

 Harry Crowl

Um dos objetivos da coluna Frente Fria é lançar luzes sobre certos nomes da cultura curitibana que, apesar do trabalho de alto nível que realizam, são pouco conhecidos do grande público. Este é o caso do tema de hoje: Harry Crowl, compositor, musicólogo, pesquisador, professor e diretor artístico da Orquestra Filarmônica da Universidade Federal do Paraná.

 

Descendente patrilinear de norte-americanos, Harry Lamott Crowl Jr é um homem grande, de longas barbas brancas e traços renascentistas. Nascido em Belo Horizonte, em seis de outubro de 1958, mesmo dia de nascimento do romancista americano Joseph Finder, perdeu cedo os pais e foi criado pelos avós maternos, que eram musicais e despertaram seu amor pela música erudita. Começou a estudar violino aos 15 anos e a partir de 1977 se aperfeiçoou nos Estados Unidos, mudando seu instrumento para a viola na Westport School of Music de Connecticut. Estudou música, letras e semiótica no Brasil; e nos EUA, aprendeu composição na Juilliard School of Music, de Nova Iorque, com o compositor Charles Jones.

 

De volta ao Brasil em 1980, foi violista na orquestra jovem da Fundação Clóvis Salgado, e em 1983 também violista da Orquestra Sinfônica de Brasília. Em 1984, mudou-se para Minas Gerais, onde passou a trabalhar na Universidade Federal de Ouro Preto, participando de projetos de pesquisa e resgate da música colonial brasileira, sendo o responsável pela descoberta da Abertura em Ré maior do padre João de Deus de Castro Lobo, de obras do compositor José Rodrigues Domingues de Meireles, e pela reconstrução de várias obras de Inácio Parreiras Neves, Jerônimo de Souza Queiroz, Domingues de Meireles, Francisco Gomes da Rocha e Francisco Barreto Falcão.

 

Em 1994 transferiu-se para Curitiba, passou a dar aulas de História da Música e Composição na Escola de Música e Belas Artes do Paraná, e coordenou o Curso de Composição e Regência. Desde 2001 é diretor artístico da Orquestra Filarmônica da Universidade Federal do Paraná, cujos programas dinamizou, tornando-a uma importante escola de novos profissionais. Continuando atividades como musicólogo, reconstruiu o Ofício de Domingo de Ramos de Lobo de Mesquita e orquestrou o Te Deum de Luís Álvares Pinto, para a Camerata Antiqua de Curitiba, juntamente com Ricardo Bernardes, em 1995.

 

Seu catálogo de obras conta, até o momento, com aproximadamente duzentas composições, entre as quais constam todos os gêneros instrumentais e vocais, incluindo música para cinema e teatro, o que lhe valeu grande prestígio no Brasil e no exterior. Em 1990 recebeu uma encomenda da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, resultando na Sinfonia nº 1 para banda sinfônica, estreada sob a regência de Roberto Farias no Memorial da América Latina. Em 2002 foi eleito presidente da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea, e foi delegado do Brasil na Sociedade Internacional de Música Contemporânea entre 2002 e 2006.

 

Sua obra Aetherius abriu a XIV Bienal de Música Contemporânea Brasileira. Em outubro de 2004 recebeu a Ordem do Barão do Cerro Azul, outorgada pela Secretaria de Cultura do Paraná. Sua obra Cerrados abriu o VI Festival Internacional de Música Contemporânea da Universidade do Chile. Em 2020 foi escolhido para representar a América do Sul em um projeto internacional desenvolvido pela Universidade de Tübingen, na Alemanha, para a composição de uma obra sobre a pandemia do novo coronavírus.

 

Participou de vários festivais internacionais, e suas composições vêm sendo executadas por conjuntos renomados de vários países, como o Trio Fibonacci do Canadá, o Ensemble Recherche da Alemanha, a Orchestre de Flutes Français, o Ensemble 2E2M, também da França, o Moyzes Quartet da Eslováquia, The George Crumb Trio da Áustria, o Cvartetul Florilegium da Romênia, a Orquestra de Câmara da Rádio Romena, bem como orquestras nacionais como as sinfônicas do Paraná, Minas Gerais e Campinas, Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro, Brasília, e a Orquestra Filarmônica de Goiás.

 

Foi realizado, em 2021, em Sófia, Bulgária, um concerto inteiramente dedicado à sua obra, no Festival “Sofia International Music Weeks”, 2021. Por ocasião dos seus 60 anos, em 2018, a UFPR o homenageou com um concerto dedicado à sua obra e com o filme documentário “Labirintos: A música contemporânea de Harry Crowl”, para a TV-UFPR, dirigido por Gabriel Snak. A Editora da UFPR lançou uma coleção de partituras de obras para orquestra.

 

Nas palavras do pesquisador Luiz Guilherme Pozzi, “Harry Crowl vem efetivamente marcando seu nome entre os grandes compositores brasileiros. Suas obras são executadas mundo afora, intensificando a produção e ajudando a sedimentar qualidade da música brasileira contemporânea. […] O compositor exerce intensa atividade não somente como compositor, mas também como pesquisador, responsável pela descoberta e restauração de várias obras do período colonial brasileiro, e como professor, dando aulas e ministrando palestras por todo mundo”.

 

Suas realizações ainda incluem os prêmios de encomenda da FUNARTE para as XXa. e XXIa. Bienais de Música Brasileira Contemporânea, sete CDs com suas obras, além de várias participações como compositor em diversas produções audiovisuais. A trilha sonora para o curta Visionários, de Fernando Severo, recebeu o prêmio de Melhor Música do Festival de Cinema e Vídeo de Curitiba.Veja em: https://www.youtube.com/watch?v=s1okrWkRLys. Entre suas realizações mais recentes, estreou em 2019, a Sonata do Girassol Vermelho para viola e piano, com a violista bielorrussa, Darya Filippenko e o pianista brasileiro Gustavo Carvalho, lançadas em CD, em 2023, assim como o Concerto no. 4, sobre o nome de Marielle Franco, em forma de via-crúcis, para violino e percussão, dedicado à violinista portuguesa Sofia Leandro e o percussionista brasileiro Bruno Santos. Em 2021, Celso Faria estreou a sua “Sonata Fantástica” para violão, na XXIVª Bienal de Música Contemporânea Brasileira, no Rio de Janeiro. Foi produtor e apresentador dos programas “Sacro e Profano”, “Clássicos da Atualidade” e, “Novos Sons – Brasil”, na Rádio Educativa do Paraná FM.

 

Harry Crowl também tem uma faceta literária, como ficamos sabendo numa entrevista que deu a Daniel Zanella, do jornal Cândido, da Biblioteca Pública do Paraná, em fevereiro de 2023.

 

“Poliglota, lê fluentemente em inglês, espanhol, italiano e francês. Recentemente começou a se arriscar na língua alemã, que ainda não domina plenamente, o que não o impede de ler alguns autores contemporâneos do país europeu. Uma das coisas que acha mais fascinante no processo de descobrimento de um novo léxico através da literatura, é que por não ter a abrangência necessária para capturar a integridade completa do que se lê, é preciso imaginar o que está sendo dito, em um exercício abstrato de criação e reescrita da história. “É um processo bem intimista mesmo. Só leio traduções de línguas que eu sei que nunca irei ler.”

 

Sua relação com a literatura começou cedo. Foi criado na casa de seu avô materno, José Santana, dono de uma vasta biblioteca. O avô lia muita literatura francesa e portuguesa, com apreço especial por Machado de Assis e Eça de Queiroz. A influência foi, portanto, natural. Ainda assim, com tantos bons romancistas à disposição, foi a poesia, principalmente de Carlos Drummond, que primeiro fisgou Harry. “Meu avô foi colega do Drummond numa faculdade de Farmácia em Belo Horizonte. Ele, meu avô, terminou o curso e o Drummond, por motivos óbvios, não. Então meu avô olhava o poeta com certa desconfiança. Não engolia a poesia moderna. Achava o Drummond um picareta, simplesmente. Gostava mesmo era de Manuel Bandeira e Cecília Meirelles”, diz o compositor.

 

Dos 18 aos 21 anos, Harry morou nos Estados Unidos, onde teve contato com a literatura americana, principalmente com a obra de Ernest Hemingway e William Faulkner. Gosta também de Gabriel García Márquez, Federico Garcia Lorca e Julio Cortázar. Entre os escritores brasileiros, já compôs a partir da poesia de Haroldo de Campos, Affonso Ávila, Thiago de Mello e de diversos autores simbolistas do Paraná do começo do século XX, como Emiliano Perneta, Dario Vellozo, Tarso da Silveira e Silveira Neto. Desta série de estudos surgiu uma cantata encomendada pela Camerata Antiqua de Curitiba, em 2001, chamada Turris Eburnea (Torre de Marfim), também título de uma coletânea de poemas de Dario Vellozo. Harry também se debruçou sobre a obra de Guimarães Rosa na ópera Sarapalha, baseada na adaptação teatral de Renata Palottini para o conto de mesmo nome do escritor mineiro.

 

Em contato permanente com músicos, escritores e artistas plásticos, Harry Crowl relembra uma história marcante em sua trajetória. Certa vez, participando de um encontro de jesuítas em Minas Gerais na década de 1980, onde discorria sobre a música colonial brasileira do século XVIII, um senhor de forte sotaque português levantou a mão e perguntou sobre a influência lusitana na música popular brasileira. Harry respondeu, terminou sua fala e se dirigiu ao auditório para ouvir a próxima palestra. Então, o senhor português que havia lhe feito a pergunta minutos antes se encaminhou à mesa de debates. Era José Saramago, que falaria sobre seu romance Jangada de pedra.”

 

Em outra entrevista muito interessante para Luiz Carlos Prestes Filho, da Tribuna da Imprensa Livre, em 2021, Crowl fala sobre sua visão da Música. Aqui vão alguns trechos:

 

Luiz Carlos Prestes Filho: Música de Concerto, Música Erudita ou Música clássica?

Harry Crowl: No Brasil, essa ainda é uma questão difícil. Creio que “música de concerto” é o termo que melhor explica do que se trata. Ainda acho que “música clássica” cria alguma confusão com o período clássico, que é o final do Séc. XVIII e início do XIX, época de Haydn, Mozart e Beethoven, e, “música erudita” sempre passa a ideia de algo muito pedante.

 

Prestes Filho: A música colonial brasileira influenciou a sua formação? Os anos vividos em Ouro Preto foram importantes para o surgimento da sua linguagem? Você disse certa vez que foi uma revelação conhecer a vida e as obras do Padre José Maurício Nunes Garcia.

Harry Crowl: Na minha formação, não. Porém, na minha infância, quando ainda descobria a música através de coleções de LPs que apareciam nas bancas de revista, fiquei encantando ao descobrir um compositor brasileiro, que no caso, era o Padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), uma vez que este universo da música de concerto era habitado até então, para mim, apenas por compositores europeus. Mais tarde, a música do período colonial foi um elemento determinante na construção da minha linguagem musical. No período que vivi em Ouro Preto, dediquei-me à musicologia, buscando me aprofundar no conhecimento da música criada na região e ainda, à reconstrução de obras da época colonial depositadas em acervos locais. Aprofundei-me em estudos sobre o Séc.XVIII e todo o período desde o Séc.XVI, em Portugal e nos países de influência da Igreja Católica, até o início do Séc.XIX, sempre com ênfase em música religiosa, predominante nos primeiros séculos da colonização do Brasil. Parecia-me fundamental conhecer esse universo barroco com seus antecedentes e desdobramentos posteriores. Já tinha descoberto a música de compositores brasileiros dos Séc. XIX e XX. Conhecia bem a produção de Villa-Lobos, Guarnieri e de todos os compositores mais importantes de música de concerto no Brasil, que curiosamente, foi uma descoberta enquanto estava nos EUA.

 

Prestes Filho: Você estudou viola e atuou como instrumentista em algumas importantes orquestras brasileiras. Porque escolheu este instrumento? Qual a importância da viola na sua obra?

Harry Crowl: Comecei a estudar música tardiamente, no violino. Quando fui para os EUA, achei mais interessante estudar viola, tanto pela minha idade, já além da ideal para o desenvolvimento da técnica do instrumento, mas também pelas oportunidades de trabalho e pela inserção da viola na orquestra. Não cheguei a tocar em orquestras
profissionais, mas o convívio com o instrumento foi determinante para mim. Ao tocar em orquestras jovens, pude perceber posicionado bem no meio da formação, como as vozes intermediárias funcionavam e isso me ajudou a desenvolver um gosto pela escrita polifônica. Como compositor, logo no início de minha carreira, escrevi uma peça para viola solo, “Cambiata” (1980). Foi uma das minhas primeiras composições e alguns elementos característicos da minha escrita que perduram até hoje já se encontram ali, tais como o uso da atonalidade em contraste com cantos gregorianos. Depois, relutei muito em escrever para viola. Bem mais tarde, já em Curitiba, em 1995, escrevi “Ipês”, uma miniatura para viola e piano, para uma então aluna da EMBAP (Escola de Música e Belas Artes do Paraná), Fabrícia Piva, que me pedira uma peça original não muito difícil, para tocar num recital. Em 1999, escrevi uma obra solo bem desafiadora, “As Impuras Imagens do Dia se Desvanecem”, para a violista canadense Laura Wilcox, na época, primeira viola da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP). Mais adiante, o
violinista e compositor, Zoltan Paulinyi adquirira uma viola pomposa, e me procurou pedindo para escrever um concerto para aquele instrumento, que é uma viola com 5 cordas, segundo um modelo do Séc.XVIII, na qual a corda mais aguda do violino, o “mi”, é acrescentada. Ele posteriormente gravou todas as minhas obras tanto para viola
quanto violino solo escritas até então, por volta de 2008. O Concerto ”Antíteses”, para viola pomposa e orquestra, foi estreado em 2009, em Curitiba, pela Orquestra Filarmônica da UFPR, regida por Márcio Steuernagel, e Zoltan Paulinyi como solista. Posteriormente, o concerto foi apresentado também em Belo Horizonte, para Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, sob a regência de Charles Roussin e, em 2015, em Brasília, pela Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro, sob a regência de Márcio Steuernagel. Todas com Zoltan Paulinyi. Em 2016, em viagem a Moscou, para a divulgação de minha obra a convite do secretário da Embaixada do Brasil, Wellington Bujokas, conheci a violista bielo-russa, Darya Filippenko, que executou a “Cambiata”, na ocasião. Posteriormente, ela incluiu “Ipês” em um recital com piano, na Fundação Casa Rachmaninov. Este contato selou uma intensa colaboração entre nós e a partir daí, escrevi várias obras para ela, “Visões do Paraíso” (2016) para viola e violão, “Sonata do Girassol Vermelho para viola e piano” (2019) e, “Tentos sobre um Miserere” para viola solo (2020). Ela veio em turnê ao Brasil, em 2019, realizando uma série de concertos acompanhada pelo pianista brasileiro Luís Gustavo de Carvalho, na qual executou obras de compositores russos e brasileiros, incluindo a estreia da “Sonata do Girassol Vermelho”, gravada no Estúdio Trilhas Urbanas em Curitiba, para um futuro CD. No momento, ela está finalizando as gravações das obras solo no Estúdio Cinelab, em Moscou, para a conclusão do CD.

 

Prestes Filho: Cite nomes de compositores que foram fundamentais para a sua formação. Também, aqueles que você acompanha no Brasil e no mundo. Também, algumas obras que tiveram importância estruturante na sua formação.

Harry Crowl: O primeiro compositor a chamar-me à atenção, ainda criança, foi Beethoven, por causa de suas quebras bruscas nos clímax de suas obras orquestrais. Porém, o primeiro que conheci e me interessei foi o russo Nikolay Rimsky-Korsakov, através de gravações em LPs. Mais tarde, Villa-Lobos, Ives, Schönberg, Berg, Stravinsky,
Debussy, Messiaen e Penderecki viriam a ter um impacto grande e determinante na minha formação. Gradualmente, a obra de Villa-Lobos foi tomando uma grande importância e hoje, muitas de suas criações, como o ciclo dos “Choros”, são uma referência para o meu processo criativo. A trajetória de um compositor é sujeita a
constantes transformações. Sempre me mantive aberto aos processos de criação que me chegavam ao conhecimento. Quando estudei nos EUA, na Juilliard School, tive acesso a todo um universo de música da segunda metade do Séc. XX, que só conhecia de ler a respeito em livros de história da música. Pude me aproveitar de todo o sistema de bibliotecas públicas de Nova York, assim como de toda a musicoteca e discoteca da própria Juilliard. Aos poucos fui me encantando com a música e as ideias de Charles Ives, que como Villa-Lobos, escolheu um caminho próprio se afastando da música romântica europeia e buscando soluções não lineares, ou melhor, imprevisíveis. Algumas obras dele são para mim uma referência constante, como “Central Park in the Dark”, “3 Lugares na Nova Inglaterra” , “Orchestral Set no.1” e, o “Orchestral Set no.2”. A obra de compositores como Debussy, Stravinsky, Schönberg e Berg são um ponto luminar também sempre presente. Olivier Messiaen e Krzystof Penderecki foram nomes muito importantes da 2ª metade do Séc. XX que me exerceram grande fascínio pela descoberta das novas sonoridades, das massas sonoras orquestrais e do uso de elementos extra musicais, como o canto dos pássaros, no caso de Messiaen. Já nos anos 90, me inteirei da obra do japonês Toru Takemitsu, e dos russos Alfred Schnittke e Sofia Gubaidulina, que entre os compositores vivos, é a que mais admiro, tanto pelo seu universo sonoro quanto pelo seu misticismo não convencional. O universo da primeira vanguarda representado por nomes como John Cage, Luciano Berio, Karlheinz Stockhausen e Pierre Boulez, que trilharam caminhos mais complexos cujo entendimento só veio com o tempo, também foram referência, mesmo que em menor grau, pois marcaram uma época. Com relação aos compositores brasileiros, além da grande admiração pela obra de Villa-Lobos, conheci Guerra-Peixe, com quem tive algumas aulas tumultuadas de composição, na época que era professor em BH, na UFMG, nos anos 80. Mais adiante, conheci e convivi com o Claudio Santoro, em Brasília. Devo muito a ele, pois foi quem me abriu as primeiras oportunidades como compositor. Sua obra tem me despertado um crescente interesse, inclusive. Camargo Guarnieri, Francisco Mignone, José Siqueira também sempre me interessaram muito. Outros que tive contato e me despertaram um olhar mais abrangente do processo de criação foram o Lindembergue Cardoso e o Ernst Widmer, que eram de Salvador, mas sempre mantiveram estreito contato com Belo Horizonte, através da Fundação de
Educação Artística. Em vários momentos, acompanhei com interesse a atividade dos compositores da Bahia, mesmo sem nunca ter ido lá. De um modo geral, procuro manter-me bem atento ao que os colegas compositores brasileiros têm produzido.

 

Prestes Filho: A Música Contemporânea abraça o seu ambiente de trabalho. Você acompanha quais movimentos de Música Contemporânea? Qual o espaço da Música Eletroacústica ou Acusmática em sua obra?

Harry Crowl: A pluralidade de movimentos estéticos hoje em dia é muito grande. Ao contrário de outras épocas, quando tínhamos uma alternância entre movimentos estéticos, a partir dos anos 70, há uma sobreposição constante de tendências possibilitada pelo acesso cada vez mais facilitado à informação. Com a chegada da rede internacional, a internet, isso se tornou algo incontrolável. Sou de uma época que não era ainda fácil acompanhar o que acontecia nas diversas partes do país, e muito menos do mundo. Subitamente, ficou tudo fácil. Isso torna as escolhas cada vez mais difíceis. Acompanho o que acontece nos países culturalmente dominantes, mas tenho um interesse cada vez maior em países periféricos que tentam não ser somente epígonos dos países centrais europeus e dos EUA. E estes são cada vez em menor número, infelizmente. Meu interesse como compositor dirigiu-se para a música instrumental e vocal, mas fiz algumas incursões no universo da música eletroacústica no início da carreira. Cheguei a produzir uma obra por meios bem limitados, através da manipulação de fitas de rolo e cassetes, “Convivium” (1986), a partir de cantos de variados países, denominados de 3º. Mundo, na época da Guerra Fria. Na verdade, era uma coleção de gravações provenientes de países e regiões que ainda mantinham as suas culturas originais, com quase nenhuma influência ocidental. Nessa obra, pude trazer lado a lado trombetas tibetanas com o som do canto de índias do Parque Nacional do Xingú, canto sussurrado do Burundi com danças das Filipinas, entre outras referências. Tudo em um amálgama muito elaborado com transformações manuais do som através de alterações
de velocidade, edições de fitas e sobreposições de gravações, assim como retrogradações. Só iria voltar à música por meios sintéticos em 2017, quando escrevi “À Memória do Caboclo d’Água – elegia para um rio assassinado”. Nessa obra fiz uso de sons eletrônicos produzidos em computador que se mesclam aos sons da orquestra e do fliscorne (flugelhorn) solista. Estes sons foram criados com a orientação e supervisão técnica de Antonio Spoladore, no LaMusa, laboratório de criação musical da EMBAP/Unespar. São provenientes das notas fundamentais do fliscorne, previamente gravadas. Tenho planos de escrever mais algumas obras envolvendo sons eletrônicos e conjunto instrumental.

 

Prestes Filho: Você nasceu em Belo Horizonte, mas é curitibano de coração. A obra “Enquanto a Cidade Dorme” retrata as suas duas cidades ou uma metrópole imaginária? Pergunto isso porque você consegue reunir no seu imaginário poético musical um Carlos Drummond de Andrade e um Dario Vellozo.

Harry Crowl: “Enquanto a Cidade Dorme” refere-se a uma metrópole imaginária inspirada um pouco por São Paulo, que está entre as duas e é a megalópole que nunca dorme. Sempre me impressionou aquele ruído da cidade de madrugada, bem perceptível no andares mais altos dos edifícios, que vem de todas as direções. No caso do Dario Vellozo, assim como dos demais poetas simbolistas paranaenses que utilizei em algumas obras minhas, como na cantata “Túrris Ebúrnea”, trata-se de uma homenagem e busca de referências de Curitiba e do Paraná. Enquanto a contribuição de Minas para a literatura brasileira é enorme, a do Paraná é mais restrita e menos divulgada. Além disso, o movimento simbolista me atraiu muito devido à sua aura de mistério, das coisas intangíveis, que Drummond também abordava à sua maneira, mais modernista e direta. Posso dizer que acabei construindo um eixo Minas-São Paulo-Paraná, pois tive muito contato e trabalhei sobre textos também do Haroldo de Campos. A mudança para Curitiba foi determinante. A partir de lá, pude estabelecer vários contatos com o mundo e as demais regiões do Brasil, além de estabelecer um trabalho muito frutífero com as instituições locais.

 

Prestes Filho: O espaço para a Música Contemporânea no Brasil está reduzido. São poucos patrocínios que a iniciativa privada disponibiliza e as políticas públicas estão cada vez mais limitadas. Quais perspectivas para os próximos anos?

Harry Crowl: O espaço para a música contemporânea sempre foi muito reduzido, e não somente no Brasil. Como se trata de uma forma de expressão que não se interessa pelo simples entretenimento, e mais pela linguagem em si, que usam os sons como materiais, ao invés de cores, contornos e objetos inusitados, como nas artes abstratas, há uma constante relutância em se programar obras atuais. O preconceito contra música contemporânea é muito mais por parte de organizadores e, muitas vezes até dos músicos que não querem sair de suas zonas de conforto, do que do público. Porém, as leis de incentivo, tanto locais quanto a Rouanet, têm sido um grande alento, mesmo que
atraiam ainda recursos ínfimos se comparados à música comercial. O que realmente tem impulsionado a criação e a pesquisa são os departamentos de música e os setores de extensão das universidades públicas. Nessas, mesmo com suas limitações de recursos, tem havido não somente uma atividade constante, com presença inclusive de grandes
laboratórios de música eletroacústica, e de uma formação e reflexão permanentes, mas também uma descentralização da produção, que até os anos 1950 eram concentradas no Rio de Janeiro. Hoje, graças às universidades públicas, há produção do norte ao sul do país. Evidentemente, os grandes centros, São Paulo e Rio, concentram a maior parte por causa de suas dimensões, mas, de qualquer maneira, quase todas as capitais hoje
em dia têm atividades de música contemporânea importantes, assim como muitas cidades do interior também.

 

Pra finalizar este artigo, a Frente Fria também fez umas perguntas para Harry Crowl:

 

Sérgio Viralobos: Você mora em Curitiba desde 1994, essa mudança foi por motivos profissionais ou a cidade lhe agradou?

Harry Crowl: Foram ambos os motivos. Vim dar um curso sobre música no Período Colonial Brasileiro, na Oficina de Música, em janeiro. Gostei muito da cidade e senti que era o lugar para mim.

 

Sérgio Viralobos: O que acha da atuação da Orquestra Sinfônica do Paraná?

Harry Crowl: A OSP é uma orquestra importante no cenário nacional. Mas, ainda não está entre as cinco melhores. Acho que temos potencial para ser um das três melhores do país. A minha expectativa com o Maestro Roberto Tibiriçá é bem grande. É um privilégio tê-lo frente à OSP. A orquestra precisa ter mais interlocução com a produção local e também com a produção de compositores brasileiros com mais frequência.

 

Sérgio Viralobos: Li que você já fez composições em cima de poetas simbolistas de Curitiba, como Dario Vellozo. Já pensou em fazer música com os compositores e poetas curitibanos da atualidade?

Harry Crowl: Me considero um dos compositores curitibanos da atualidade…Quanto aos poetas curitibanos, há muitos excelentes. Só não tive a oportunidade ainda de trabalhar com eles, ou elas. A obra à qual você se refere é a Cantata “Turris Ebúrnea”, que escrevi em 2000 para a Camerata Antiqua de Curitiba, sobre poetas simbolistas paranaenses.

 

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