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SERGIO-CABECA-COLUNA

Literatura coreana

13/02/2025

Quando morei em São Paulo por 20 anos tive bastante contato com a cultura coreana. Ao chegar, fui gerente de uma agência bancária no Shopping Paulista que tinha um espaço para atendimento de adolescentes, uma estratégia do banco pra rejuvenescer a clientela. A maioria da garotada que frequentava era descendente de coreanos por morarem no bairro da Aclimação, ali perto. Pude ver que tinham uma moda própria, desde as roupas até os cortes de cabelo, além de ídolos da música denominada K-Pop, que hoje é conhecida de todo mundo. Mais tarde, fui gerente de uma agência para atendimento de grandes empresas localizadas nos bairros da Luz, Brás e Bom Retiro, onde a colônia coreana dominava o comércio de roupas, principalmente na rua José Paulino. Quando uma certa tendência de moda era lançada em Paris, uma semana depois já se podiam ver cópias nas lojas do Bom Retiro.

Desde então, a Coréia do Sul vem empreendendo uma grande estratégia de exposição ao mundo de sua cultura. Com forte apoio governamental, a música, o cinema e a literatura coreanos ganharam diversos prêmios e muita relevância internacional. Uma série de lá é, por exemplo, a mais vista da história da Netflix. E “O Parasita” foi a primeira produção asiática a ganhar o Oscar de melhor filme.

A diva do cinema Isabelle Huppert que presidiu o júri do último Festival de Veneza declarou que está muito mais empolgada com produções do leste asiático, em especial da Coreia do Sul, que considera tão frutífera quanto a França em obras originais, longe dos enlatados. Essa originalidade Huppert reconhece, hoje, no coreano Hong Sang-soo, com quem trabalhou em “A Câmera de Claire”, “A Visitante Francesa” e, no ano passado, “As Aventuras de uma Francesa”, premiado em Berlim.

“Sang-soo faz filmes como ninguém no mundo. Você não tem diálogos ou personagens que normalmente definiriam uma história clássica. Mas, no fim das contas, você ainda tem um filme que declara algo sobre o mundo e sobre a conexão entre pessoas”, diz ela. “Para mim, a criatividade se encontra no dia, não há como antecipar. E, com Sang-soo, você descobre os diálogos duas horas antes de filmar, não tem roteiro. O que você precisa fazer é explorar o momento presente”, afirma.

Ela credita a efervescência do cinema sul-coreano a um sistema de financiamento de filmes similar ao francês. “Não tem como comparar um filme de Hong Sang-soo com um de Bong Joon-ho ou Lee Chang-dong. O cinema deles é muito diverso”, diz a atriz.

No final do ano passado, li dois livros que me impactaram bastante, ambos escritos por coreanas. O primeiro ganhei de presente de Natal e se chama “Coelho Maldito”, de Chung Bora: sua coleção de contos foi pré-selecionada para o Prêmio Internacional Booker de 2022. O outro é de Han Kang, distinguida em 2024 com o Prémio Nobel de Literatura. A obra é intitulada “A Vegetariana”. Foram duas porradas no estômago, com temas fortes e muito originais.

Bora Chung nasceu em 1976, em Seul . Seus pais eram dentistas. Ela completou sua pós-graduação em estudos de área da Rússia e do Leste Europeu na Universidade de Yale , depois obteve um doutorado em literatura eslava pela Universidade de Indiana Bloomington. Ela ensinou língua russa, literatura e estudos de ficção científica na Universidade Yonsei. Chung traduz prosa contemporânea do russo e do polonês para o coreano. Ela também é uma ativista social. Bora escreveu três romances e três coleções de contos. Ela lista como suas influências literárias as obras de Park Wan-suh , Bruno Schulz , Bruno Jasieński , Andrei Platonov e Lyudmila Petrushevskaya , bem como os contos populares de Samguk yusa . Em 1998, ela ganhou um Prêmio de Literatura Yonsei por seu conto “A Cabeça”. Ela também recebeu o segundo prêmio no Digital Literature Awards (2008) e no Gwacheon Science Center SF Awards (2014).

Em 2022, a edição em inglês de sua coleção de contos “Coelho Maldito”, traduzida por Anton Hur, foi selecionada para o Prêmio Internacional Booker. As dez histórias tomam emprestado de diferentes gêneros, incluindo realismo mágico , terror e ficção científica. Em setembro de 2023, o livro foi selecionado para o Prêmio Nacional do Livro de Literatura Traduzida.

Os contos de “Coelho Maldito” tratam de temas provocantes, como em “A Cabeça”, em que os excrementos de uma mulher formam uma cabeça que passa a assombrá-la, perseguindo-a em vasos sanitários. A figura monstruosa cresce e, quando se torna uma versão jovem da personagem, condena-a a tomar seu lugar dentro dos encanamentos.

Já no conto que dá nome ao livro, um abajur em formato de coelho leva toda uma família à ruína. Quando o neto de um empresário toca na luminária, passa a ter alucinações com o animal, que rói seu cérebro. Em dez contos perturbadores, a coletânea expõe até que nível a crueldade pode chegar e o caráter destrutivo da ganância humana.

“Queria que todas as coisas horríveis e injustas do mundo não acontecessem e que pessoas inocentes não tivessem que sofrer. Não posso mudar a realidade mas, pelo menos nas minhas histórias, posso matar as pessoas más e me divertir durante o processo”, diz a escritora.

Chung ainda usa essas narrativas para questionar a estabilidade de instituições como a família e o casamento, enfatizando como elas privilegiam os homens em detrimento das mulheres.

Um exemplo é “Menorreia”, que retrata uma jovem que começa a fazer uso de anticoncepcionais para regular o fluxo menstrual. Depois de alguns meses tomando pílula, ela recebe o diagnóstico de que está grávida mesmo sem ter tido relações sexuais e precisa arranjar um marido que aceite ser pai da suposta criança.

O enredo foi inspirado em uma experiência da própria Chung. Aos 28 anos, ela começou a ter sangramentos anormais por causa de um cisto no ovário. Quando marcou uma consulta com um ginecologista, sua mãe quis impedi-la de ir por ela não ter um marido.

“Eu era legalmente, fisicamente e mentalmente uma adulta, mas meus ovários claramente pertenciam a um cara que eu nunca nem conheci”, afirma. “Partiu meu coração saber que muitas leitoras de diferentes países se identificaram com a história e me disseram que tinham tido experiências semelhantes.”

Os contos mesclam gêneros literários como terror, contos de fadas, fábulas e ficção científica, mas ela afirma que o folclore local é o seu favorito.

Han Kang nasceu em Gwangju, em 27 de novembro de 1970. Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura do ano passado “pela sua intensa prosa poética que confronta traumas históricos e expõe a fragilidade da vida humana”.

É filha do romancista sul-coreano Han Seung-won. Aos 10 anos, mudou-se para Seul com a família. Estudou literatura coreana na Universidade Yonsei, localizada em Seul, a mesma universidade de Bora Chung. Depois de se graduar trabalhou durante três anos como jornalista nas revistas Publishing Journal e Samtoh, entre outras.

Sua carreira literária teve início com a publicação de cinco de seus poemas, incluindo “Inverno em Seul”, em edição da revista Munhak-gwa-sahoe (Literatura e Sociedade) em 1993. Já sua carreira enquanto romancista iniciou-se no ano seguinte, em 1994, quando foi ganhadora do Concurso Literário da Primavera de Seoul Shinmun, com o relato “A âncora escarlate”. Em 1995, publicou seu primeiro livro de contos intitulado Yeosu. Em 1998, ela participou do Programa Internacional de Escrita da Universidade de Iowa por três meses, com o suporte do Conselho de Artes da Coréia. Notem que ambas as escritoras ganharam bolsas de estudo do governo para estudarem no exterior.

Tornou-se mundialmente conhecida após a publicação do seu romance “A vegetariana”, em 2007, pelo qual, após sua tradução ao inglês, conquistou o Prêmio Booker em 2016.

Em 2021, Han Kang participou da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), integrando a mesa “Vegetalize”, ao lado da escritora Adriana Lisboa. A mediação do evento foi conduzida por Guilherme Henrique. Durante a mesa, Han Kang abordou temas centrais de sua obra, como a relação entre humanidade e natureza, explorados em seus livros. A discussão destacou a sensibilidade da escritora para questões de opressão, violência e a resistência silenciosa, temas que permeiam sua narrativa e que conquistaram reconhecimento internacional. “A vegetariana”, romance perturbador e único, tem sido apontado como um dos livros mais importantes da ficção contemporânea – e uma introdução à fecunda literatura produzida na Coreia do Sul.

“…Eu tive um sonho”, diz a personagem Yeonghye, e desse sonho de sangue, mortes e escuros bosques nasce uma recusa vista como radical: deixar de comer, cozinhar e servir carne. É o primeiro estágio de um desapego em três atos, um caminho muito particular de transcendência destrutiva que parece infectar todos aqueles que estão próximos da protagonista. “A vegetariana” conta a história dessa mulher comum que, pela simples decisão de não comer mais carne, transforma uma vida aparentemente sem maiores atrativos em um pesadelo perturbador e transgressivo. Narrado a três vozes (a primeira do seu marido, a segunda do cunhado de Yeonghye e a terceira voz de sua irmã), o romance apresenta o distanciamento progressivo da condição humana de uma mulher que decidiu deixar de ser aquilo que marido e família a pressionaram a ser a vida inteira. Este romance de Han Kang tem sido apontado como um dos livros mais importantes da ficção contemporânea. Uma história sobre rebelião, tabu, violência e erotismo escrita com a clareza atordoante das melhores e mais aterradoras fábulas. A tradução para o português, diretamente do coreano, restitui o estranhamento da obra original.

Atualmente, Han Kang ensina escrita criativa no Universidade de Seul, e escreve contos e novelas, além de realizar trabalhos de artes visuais. Veja sua relação de prêmios:

• Prêmio de Novela Coreana (1999) por O menino Buda• Prêmio Artista Jovem do Ano (2000)
• Prêmio Literário Yi Sang (2005) por “A mancha mongólica”
• Prêmio de Literatura Dong Ri (2009) por “Luta de alento”
• Festival Sundance de Cinema (2010) por “A vegetariana”
• Festival Internacional de Cinema de San Sebastián (2011) por “A cicatriz” (baseada em O menino Buda)
• Prêmio Internacional Man Booker (2016) por “A vegetariana”
• Prêmio Nobel da Literatura (2024) pelo conjunto da obra.

Fica a dica destes dois potentes livros escritos por mulheres coreanas para pessoas de estômago forte.

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