O último livro que estou lendo chama-se “Os Bastidores: Como escrever”, do escritor inglês Martin Amis, recentemente falecido. É uma curiosa autoficção em que ele relembra períodos complexos de sua vida adulta, como os relacionamentos amorosos, e momentos de alegria e júbilo com amigos e mentores. As obsessões do autor, como a sombra de seu pai Kingsley Amis, também escritor, e de sua madrasta, a romancista Elizabeth Jane Howard, além da rivalidade literária na cena cultural e o desejo sexual em contraste com a vida burguesa retornam em um texto explosivo.
Martin Amis (Oxford, 25 de agosto de 1949 – Lake Worth, 19 de maio de 2023) estudou na Inglaterra na Faculdade de Exeter (onde se formou em Inglês como primeiro aluno da classe), na Espanha e nos Estados Unidos. Construiu uma carreira literária ousada, com livros que deixaram sua marca pela verve desaforada e pela coragem em tratar de temas espinhosos, como em “A Zona de Interesse”, que retrata o cotidiano doméstico de algozes nazistas durante o Holocausto.
Amis é considerado um influente romancista ao lado de escritores como Salman Rushdie, Ian McEwan e Julian Barnes. Suas obras marcaram a literatura britânica nas décadas de 1980 e 1990. Entre seus livros está “Grana”, de 1984, que trata de uma vida de excessos no auge do capitalismo e foi incluído na lista dos 100 melhores livros de língua inglesa do “The Guardian”.
Acossado pelo envelhecimento, Amis decidiu em “Os bastidores” encarar o espelho e tentar dar conta da própria vida, em tudo o que ela teve de mais difícil, constrangedor e contraditório. Neste seu último livro acompanhamos a formação do jovem Martin, que se dá em larga medida graças às pessoas que o cercam, como os grandes nomes da escrita anglófona do século XX, Philip Larkin, Saul Bellow e Christopher Hitchens e que são descritos em detalhes no livro. “Os bastidore”s , mais do que uma jornada pela cena literária britânica, oferece uma visão íntima e despudorada dos segredos de um homem, num texto que testa os limites do que Amis batizou de “escrita da vida”, gênero que se sentia muitas vezes condenado a exercer.
Em meio a estas reflexões sobre sua vida, há considerações perspicazes sobre a realidade e a literatura. Nada melhor do que ler um belo trecho do livro, em que ele fala do romance, para entender o que estou falando:
Qual o propósito do romance, que efeito tem, para que serve?
Sobre essa questão existem (como ocorre em tantos outros contextos) duas escolas de pensamento opostas: no presente caso, os estetas versus os funcionalistas. Aqueles explicariam com cansaço e até pena que o romance não serve para nada (é apenas um artefato, nada mais). Estes o veem como uma tendência francamente progressista: a ficção está (ou deveria estar) ocupada com o aperfeiçoamento da condição humana.
Bem, os funcionalistas/progressistas podem de fato estar errados, é o que sempre senti; mas os estetas não podem estar certos. Podemos, se quisermos, concordar sofisticadamente que certo tipo de romance talvez não tenha propósito. Mas pode um romancista existir sem propósito, monotonamente sem propósito, por toda a vida adulta? Alguém pode?
É uma questão de urgência de interesse, acho. Qual é o propósito de meu dia normal?
Se me perguntassem isso cinco anos atrás, eu teria, como hoje, citado John Dryden, que disse que o propósito da literatura é dar “instrução e deleite”.
Esse veredito remonta a três séculos e, em minha opinião, tem resistido bastante bem. Você espera encantar e também instruir. Instrua de um jeito que você espera estimular a mente, o coração e, sim, a alma do leitor, e torne o mundo dele mais completo e rico. Minha ambição é resumida por um personagem secundário no romance da última fase de Bellow, Dezembro fatal: um cachorro vadio, nas ruas de Bucareste, cujos latidos compulsivos parecem representar “um protesto contra os limites da experiência canina (pelo amor de Deus, abra um pouco mais o universo!)”.
E era isso que teria respondido no início de 2011. Então li o imenso e impositivo “Os anjos bons da nossa natureza”, de Steven Pinker, no qual o autor, cientista cognitivo, psicólogo, linguista e mestre em estatística, defende e justifica totalmente seu subtítulo: “Por que a violência diminuiu”.
A violência diminuiu, diminuiu de modo drástico. Você franze a testa; e ao ouvir isso pela primeira vez fiz o mesmo. Porque com toda certeza não parece assim, o que explica, em parte, por que o livro de Pinker ainda não produziu uma real mudança de consciência: sua tese e suas conclusões são chocantemente contraintuitivas e provocam muita resistência natural. Minhas terminações nervosas insistem, assim como as suas, que o mundo, com seu constante acúmulo de armas de todos os tipos, nunca foi tão violento. No entanto, não é assim.
Nos cálculos de Pinker, “violência” é a probabilidade de morte súbita nas mãos de outros (o que inclui mortes em campo de batalha). Agora, deixe-me fazer uma pergunta: o que foi mais violento, a Inglaterra de “Contos de Canterbury” e Ricardo Coração de Leão e as Cruzadas, ou a Inglaterra de “A terra desolada” e as duas Guerras Mundiais?
O professor Pinker fez uma pesquisa. O típico entrevistado “imaginou que a Inglaterra do século XX fosse cerca de catorze por cento mais violenta do que a Inglaterra do século XIV. Na verdade, foi noventa e cinco por cento menos violenta”.
A violência diminuiu. Por que e como? E o que, você pode perguntar, isso tem a ver com escrever romances?
No livro, Pinker apresenta o que considera serem as influências decisivas.
1) A ascensão do Estado-nação, que na verdade exige o monopólio da violência. As sociedades pré-estatais eram basicamente as de senhores da guerra e até dez vezes mais violentas do que as sociedades da fase posterior. “Leviatã” exerce uma força policial, e a palavra “política” (a arte ou ciência de governar) é derivada de “polícia”.
2) A ascensão do doux commerce: o comércio “suave”, baseado em cooperação e vantagem mútua (e não em trapaça, extorsão, fraude e processo judicial).
3) A ascensão de uma prosperidade modestamente generalizada. O que se considerava “ter uma posição” passou a abranger muitas pessoas, dando-lhes mais a perder com a interrupção da ordem e mais a temer com isso.
4) A ascensão da ciência e da razão; isso inclui o recuo da superstição e daquela perene casus belli, a religião.
5) A ascensão da alfabetização, que aos poucos se transformou em um fenômeno de massa, cerca de trezentos anos após a invenção da imprensa (1452).
6) A ascensão das mulheres. A violência é quase exclusivamente uma reserva masculina, e as culturas que “respeitam os interesses e os valores das mulheres” estão destinadas a se tornar não apenas muito mais pacíficas, mas também muito mais prósperas.
7) A ascensão do romance.
A princípio a número sete parece uma intrusa, não acha? Em termos de eficácia é sem dúvida a última entre iguais; mas o romance não deve ter vergonha de se encontrar em tão grande companhia geo-histórica. O romance tem outros motivos de constrangimento, é verdade, porém esses são menores e cômicos, e têm a ver com seu confuso nascimento.
Júlia, ou a nova Heloísa (1761), de Rousseau, foi extremamente influente, mas aqui o totêmico livro anglófono é, infelizmente, Clarissa (1748) de Samuel Richardson. Tenho a edição Everyman em quatro volumes e, ao longo do tempo, dediquei cerca de doze horas a ela. E é terrível. Clarissa é terrível, e Richardson é terrível: detalhista, puritano, meticuloso e sempre atormentado pela ansiedade ligada a religião, a classe e, acima de tudo, a repressão sexual (a piedosa Clarissa é finalmente drogada e estuprada pelo taciturno anti-herói sr. Lovelace, e morre de vergonha, sozinha). Além disso, é imperdoavelmente longo, o romance mais longo da língua. No entanto, precisamos atentar que os primeiros admiradores de Clarissa, um vasto grupo, sentiram-se ligados à heroína com intimidade e calor sem precedentes; se identificaram, simpatizaram, compartilharam e compreenderam seus sentimentos; um estágio novo e bastante inesperado do relacionamento leitor-escritor fora alcançado, um estágio que enfatizava a lição elementar sobre fazer aos outros o que gostaria que fizessem a você… Portanto, nos sentimos gratos a Richardson; e não importa, por enquanto, que a Inglaterra literária, ou letrada, do fim da década de 1740 estivesse torcendo apaixonadamente por um pedante, e um pedante criado por um brutamontes.
Tudo tem que começar em algum lugar. E, além disso, essa onda profunda de esclarecimento já rolou pelas comunidades (e agora se estende, como mostra Pinker, ao nosso tratamento das minorias sexuais, das crianças e dos animais)… Parece que havia uma prontidão evolutiva a ser mais ponderada, em ambos os sentidos, que pensasse mais e com mais consideração.
Leia outras colunas Frente Fria aqui.