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SERGIO-CABECA-COLUNA

O Conto de Genji

13/03/2025

Em janeiro deste ano, resenhei o livro “A Cidade das Mulheres”, feito entre 1404 e 1405 pela franco-italiana Christine de Pizan, considerada a primeira mulher escritora profissional do Ocidente. Agora, tenho outra surpresa ao ficar sabendo que o primeiro romance literário do mundo foi escrito também por uma mulher.

Trata-se de “Genji Monogatari” (O Conto de Genji), um livro de literatura clássica japonesa de autoria atribuída à fidalga Murasaki Shikibu e escrito no começo do século XI. Consegui baixar no meu Kindle “O Conto de Genji – Volume 1”, traduzido para o português por Yuko Yamashita.

A crítica literária Janice Nimura escreveu sobre a obra para o The New York Times Book Review de dezembro de 2001:

“Mil anos atrás, durante o período Heian no Japão, uma dama da corte imperial escreveu uma prosa narrativa que não tinha nada a ver com as histórias de influência chinesa que os contemporâneos dela liam.

“Era algo novo: uma recriação imaginativa das confusões humanas feita para parecer mais real do que a própria realidade – um romance, como definimos hoje.

“Mas é impossível classificar o “Conto de Genji” como apenas um “romance”. Os príncipes e concubinas e monges e criados que Murasaki Shikibu descreveu podem ser fictícios, mas as suas preocupações e as armadilhas das suas vidas privilegiadas foram tiradas diretamente do dia-a-dia da autora.

““Genji”, por séculos para os leitores japoneses e por décadas para os leitores ocidentais, é um retrato do Japão Heian, um mundo perdido e estranho para os cidadãos do Japão moderno, assim como o Japão moderno é para a maioria dos ocidentais.”

Pesquisando mais um pouco na internet, descobrimos que o “Genji” foi escrito capítulo por capítulo, por partes, enquanto Murasaki entregava o conto para as mulheres da aristocracia. Ele tem muitos elementos encontrados em um romance moderno: um personagem principal e um número muito grande de personagens principais e secundários, com uma caracterização bem desenvolvida de todos os personagens centrais, uma sequência de eventos que acontecem ao longo de vida do personagem principal e mais além. O trabalho não faz uso de um enredo; em vez disso, assim como na vida real, eventos acontecem e os personagens evoluem simplesmente com o passar do tempo. Uma característica notável do “Genji”, e da habilidade de Murasaki, é sua consistência interna, apesar de um total de cerca de 400 personagens. Todos os personagens envelhecem à mesma velocidade e toda a família e as relações feudais são consistentes em todos os capítulos.

Uma complicação para os leitores e tradutores do “Genji” é que quase nenhum dos personagens no texto original recebe um nome explícito. Os personagens são, ao invés disso, chamados por sua função ou papel (por exemplo, Ministro da Esquerda), um título honorífico (por exemplo, Sua Excelência), ou sua relação com outros personagens (por exemplo, Herdeiro natural), que podem mudar completamente à medida que o romance progride. Esta falta de nomes decorre dos costumes da corte do período Heian, que considerava inaceitável mencionar livremente o nome de um personagem de forma familiar. Leitores modernos e tradutores têm, em maior ou menor grau, usado vários apelidos para acompanhar as ações dos personagens.

Os críticos têm quase sempre descrito “Os Contos de Genji” como o mais antigo, o primeiro e/ou maior romance da literatura japonesa, apesar de que, mesmo no Japão, não são uma unanimidade; o menos conhecido Ochikubo Monogatari tem sido proposto como “primeiro romance completo do mundo”, mesmo que seu autor seja desconhecido . Apesar destes debates, “O Conto de Genji” goza de sólido respeito entre as obras de literatura e sua influência na literatura japonesa tem sido comparado a Arcadia, de Philip Sidney, da literatura inglesa. O romance e outras obras novas de Murasaki são material de leitura básico nos currículos das escolas japonesas. O Banco do Japão emitiu a nota de dois mil ienes em sua homenagem, com uma cena do romance baseado no rolo ilustrado do século XII. Em 1987, foi lançado o anime “Genji Monogatari”. Veja um trecho de suas belas cenas aqui: https://www.youtube.com/watch?v=uZdEO0oymg8

Apesar de não haver provas concretas a respeito da autoria desta obra, uma mulher que fazia parte da corte da imperatriz em finais do Século X e princípios do Século XI, chamada Murasaki Shikibu, geralmente é considerada a autora do livro. Sabe-se o nome da autora somente indiretamente. Vários estudiosos atestam que existem vários indicadores de descontinuidade de autoria, principalmente nos últimos dez capítulos. Somam-se a isso recentes estudos computacionais que confirmam tais observações, oferecendo um número ainda maior de discrepâncias no escrito.

O debate sobre quanto do “Genji” foi realmente escrito por Murasaki Shikibu já dura séculos e é provável que jamais será resolvido, a menos que alguma grande descoberta arquivística seja feita. É geralmente aceito que o conto foi concluído em sua forma atual em 1021, quando a autora do Sarashina Nikki escreveu um diário famoso sobre sua alegria em adquirir uma cópia completa do conto. Ela escreve que existem mais de cinquenta capítulos e menciona uma personagem introduzida perto do fim dos trabalhos, por isso, se outros autores além de Murasaki Shikibu trabalharam no conto, o trabalho foi feito muito próximo da época de sua escrita. O próprio diário de Murasaki Shikibu inclui uma referência ao conto: o apelido para ela própria de ‘Murasaki’, em alusão ao personagem principal do sexo feminino. Esse registro confirma que uma parte, senão a totalidade, do diário estava pronta em 1008, quando evidência interna sugere que a passagem foi escrita. Fala-se que Murasaki escreveu sobre o personagem Genji baseado no Ministro da Esquerda na época em que ela estava na corte. Outros tradutores, como Tyler, mencionam o fato de que o personagem Murasaki que Genji, posteriormente, lhe faz sua esposa é baseado na própria Murasaki Shikibu.

A obra narra a vida de um filho de um imperador japonês, mostrado para os leitores como Hikaru Genji, ou “Genji Brilhante”. Por razões políticas, Genji é relegado ao status de cidadão (ao receber o sobrenome Minamoto) e começa uma carreira como um oficial imperial. O conto se concentra na vida romântica de Genji e descreve os costumes da sociedade aristocrática da época. Muito se fala da boa aparência de Genji. Ele era o segundo filho de um certo imperador antigo e uma concubina de baixa patente (conhecido pelos leitores como Senhorita Kiritsubo). Sua mãe morre quando Genji tem três anos de idade, e o Imperador não consegue esquecê-la. O Imperador, em seguida, ouve sobre uma mulher (“Fujitsubo”), antigamente uma princesa do imperador anterior, que se assemelha a sua concubina falecida e mais tarde se torna uma de suas esposas. Genji a ama primeiro como uma madrasta, mas depois como uma mulher. Eles se apaixonam um pelo outro, mas esse amor evidentemente é proibido. Genji fica frustrado com isso e se envolve em uma série de casos amorosos malsucedidos com outras mulheres. Na maioria das vezes, seus avanços são rejeitados, sua amante morre subitamente durante o relacionamento, ou ele passa a achar sua amante maçante. Em um caso, ele vê uma bela jovem por uma janela aberta, entra em seu quarto sem permissão, e começa a seduzi-la. Reconhecendo-o como um homem de poder incontestável, ela não resiste.

Genji visita Kitayama, a área rural montanhosa no norte de Kyoto, onde ele encontra uma linda menina de dez anos de idade. Fica fascinado por essa menina (“Murasaki”), e descobre que ela é uma sobrinha de Fujitsubo. Finalmente, ele a sequestra, leva-a a seu próprio palácio e a educa para ser sua mulher ideal. Durante este tempo Genji também encontra-se com Fujitsubo secretamente, e ela leva o seu filho. Todos, exceto os dois amantes, acreditam que o pai da criança é o Imperador. Mais tarde, o menino torna-se o Príncipe herdeiro e Fujitsubo torna-se a Imperatriz, mas Genji e Fujitsubo juram para manter seu segredo.

Genji e sua esposa Aoi se reconciliam e ela dá à luz um filho, mas ela morre logo depois. Genji fica triste, mas encontra consolo em Murasaki, com quem ele se casa. O pai de Genji, o Imperador, morre e os seus inimigos políticos, o ministro da Direita e a mãe do novo Imperador (“Kokiden”) tomam o poder na corte. Em seguida, outro dos relacionamentos secretos de Genji fica exposto: Genji e uma concubina de seu irmão, o Imperador Suzaku, são descobertos quando se encontravam em segredo. O Imperador confessa seu contentamento pessoal em descobrir Genji com a mulher (“Oborozukiyo”), mas tem o dever de punir seu meio-irmão. Genji é, portanto, exilado na cidade de Suma-ku, na zona rural da província de Harima (agora parte da cidade de Kobe, província de Hyogo). Lá, um homem próspero de Akashi, na província de Settsu, (conhecido como o Iniciante de Akashi) cuida de Genji, e ele passa a ter um caso amoroso com a filha de Akashi. Ela dá à luz uma filha. Esta filha única de Genji, que mais tarde, torna-se a Imperatriz.

Na Capital, o Imperador fica perturbado por sonhos com seu falecido pai e algo começa a afetar seus olhos. Enquanto isso, sua mãe adoece, o que enfraquece a sua influência sobre o trono. Assim, o Imperador ordena o perdão de Genji e ele retorna a Kyoto. Seu filho com Fujitsubo torna-se o imperador e Genji termina sua carreira imperial. O novo imperador Reizei sabe que Genji é seu verdadeiro pai, e eleva o status de Genji para o mais alto possível.

No entanto, quando Genji completa 40 anos de idade, sua vida começa a declinar. Seu status político não muda, mas seu amor e vida emocional estão lentamente se danificando. Ele se casa com outra mulher, a “Terceira Princesa”. O novo casamento de Genji muda a relação entre ele e Murasaki, que agora deseja tornar-se freira.

Murasaki, a amada de Genji, morre. No capítulo seguinte, Maboroshi (“Ilusão”), Genji contempla como a vida é passageira. Imediatamente após há um capítulo intitulado Kumogakure (“Desaparecido nas nuvens”), que é deixado em branco, mas insinua a morte de Genji.

O conto termina abruptamente, no meio de uma frase. As opiniões variam sobre se o final era a conclusão prevista pela autora. Arthur Waley, que fez a primeira tradução em inglês de todo o “Genji Monogatari”, acreditava que o trabalho foi de fato terminado. Ivan Morris, autor de O Mundo do Príncipe Brilhante, acreditava que a história não foi completa, mas apenas algumas páginas ou um capítulo no máximo, “desapareceram”. Edward Seidensticker, que fez a segunda tradução do “Genji”, acredita que ele não foi terminado, e que Murasaki Shikibu não tinha uma estrutura planejada da história com um “final” e simplesmente foi escrevendo enquanto podia. Ou seja, essa obra prima da literatura mundial continua até a eternidade seu percurso mitológico.

O fato é que o romancista Yasunari Kawabata disse em seu discurso de aceitação do Prêmio Nobel: “Genji Monogatari é, em particular, o ponto mais alto da literatura japonesa. Até hoje não existiu uma peça de ficção comparável a ele “.

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