Já ouviu falar de um projeto 360 graus? DOZE TRABALHOS DE HÉRCULES é uma audaciosa iniciativa do Radiocaos, através de seus produtores Rodrigo Barros e Samuel Lago, para transmitir cultura em meios de comunicação de massa. Primeiro surgiu como um programa radiofônico, depois como um livro, depois como leitura ao vivo, agora como uma série numa plataforma de notícias, o HOJE PR. Os poetas Monica Berger, Roberto Prado, Sérgio Viralobos e Thadeu Wojciechowski tomaram a tarefa de transformar esta epopeia em poesia. Veja mais detalhes sobre o projeto aqui.
Como se sabe, os doze trabalhos de Hércules são uma série de episódios arcaicos ligados entre si por uma narrativa contínua, relativa a uma penitência que teria sido cumprida por um dos maiores heróis gregos. Os Trabalhos foram apresentados durante a temporada 2019 do Radiocaos e ao vivo, no Teatro Ave Lola em Curitiba.
Deleite-se com a leitura que Roberto Prado fez para O Leão de Nemeia.
O LEÃO DE NEMEIA
Roberto Prado
No lugar em que o povo matava um leão por dia
e nas horas vagas se divertia inventando tudo que existe
houve um tempo em que os deuses desceram do salto
para ensinar que nem tudo na vida é trigonometria.
Vivendo em uma terra na qual sempre dava praia
os gregos não faziam onda e com seus barcos à tona
vendiam de tudo, compravam o que dava na telha
e quem não aceitasse com gosto levava azeitona.
Já que quase ninguém no mundo podia com eles
e eles gostassem mesmo de uma boa briga
de vez em quando detonavam uns aos outros
e faziam-se grandes mestres da arte da intriga.
Para contrabalançar esse poder imenso
e evitar que esse povo tomasse o Olimpo pela guerra
os deuses mandavam castigos horrendos
e espalhavam estranhos monstros pela terra.
Mas, prudentes, para não extinguir seus adoradores,
enviaram na cola heróis e semideusas criaturas
fundidas, mistas, com seus poderes e misérias
que até hoje dão nome às nossas loucuras.
Para equilibrar a balança aos mortais viventes
e subjugar os terríveis seres de DNA embaralhado
Zeus decidiu conceber um filho poderoso
que entre deuses e humanos, escolheria o nosso lado.
Foi assim: no auge desta doida cosmogonia
viveu em Argos, no Peloponeso, Alcmena, a bela,
que pelo imenso amor ao marido Anfitrião
rejeitou os encantos de Zeus e o Olimpo, por tabela.
O maior dos deuses engoliu o orgulho ferido
e na fissura de gerar o maior herói da terra
driblou a esposa Hera, transmutou-se no marido
para penetrar na cama da mulher teimosa.
Driblando as muitas qualidades da moça
aproveitou a partida de Anfitrião para a guerra
e querendo aproveitar melhor a grossa trapaça
fez seu filho Apolo parar o carro do sol na marra.
Nessa vigarista noite de três longos dias
de tórrido amor humanizado e urgente
concebeu um feto divino naquela barriga
iludindo a mulher na forma do marido ausente.
Porém, sua esposa Hera, cheia de veneno eterno,
deusa poderosa que de otária nada tinha,
diante da traição do marido com uma simples humana
perseguiu o rebento desde o ventre materno.
Salvo pela astúcia de outros deuses do céu
Hércules nasceu, mas não com esse nome
foi chamado de Alcides, tributo ao avô Alceu,
que quer dizer homem muito, muito forte.
Sonhando apaziguar aos poucos a ira da fera
Zeus inspirou a pitonisa do Oráculo de Delfos
a convencer o pai a chamar o filho herói de Hércules,
nome que quer dizer À Glória de Hera.
Claro que isso fez piorar a fúria da esposa
e a criança só sobreviveu a muito custo
graças à guarda de deuses e deusas
entre pragas, feitiçarias e inimigos astutos.
As entidades que protegiam o menino semideus
sabiam que para sobreviver e cumprir a sina
só havia uma maneira de escapar da megera:
ele teria de mamar no seio da celeste assassina.
O ligeiro Hermes aproveita o raro sono de Hera
coloca o detestado bebê no colo da inimiga
mas Hércules suga tão forte que tira pedaço
como se desafiasse aquele peito para a briga.
Hera, acordada pela dor, afastou o bebê, horrorizada
espalhando seu leite milagroso pelo espaço
gerando o enorme rastro que chamamos Via Láctea
na qual as deusas ocultaram Hércules da danada.
Hércules cresceu bondoso e fiel à humanidade
mas tinha no temperamento sérios defeitos
era orgulhoso e impulsivo de nascença
não pensava duas vezes, resolvia tudo do seu jeito.
Usando esse calcanhar de Aquiles tão exposto,
Hera, por meio de mil sujas artimanhas
enlouqueceu Hércules que, cego de fúria,
matou seus próprios filhos e lançou-os ao fogo.
Passado o efeito do macabro holocausto
graças ao sono reparador provocado por Atena
Hércules voltou à razão e se contorceu de culpa
ao ver que tinha feito do lar uma sangrenta arena.
Querendo expiar o crime horrendo e zerar o arquivo
Hércules submeteu-se ao desprezível rei Euristeu,
teleguiado de Hera, que para ele destinou doze trabalhos
na certeza de que nem do primeiro escaparia vivo.
Para começo de conversa deu ao herói a tarefa
de matar o leão da Lua, que Selene, a deusa feiticeira,
havia solto em Nemeia para castigar o povo rebelde
que no templo lunático não ia prestar culto à chefa.
Hércules estranhou a moleza do pedido
pois um animal, por mais estrago que fizesse,
não era páreo para a força de um filho de Zeus
que o levaria pela orelha na hora que quisesse.
Desconfiado que por trás havia alguma sacanagem
logo descobriu que o mutante era cruza
da maléfica Équidna e Cérbero, guardião do inferno
e de felino só tinha a forma e a safadeza.
Quando batia tédio o enorme leão buscava treta
e assolava as matas de Nemeia com grande gula
devorava pessoas e rebanhos a hora que queria
e dormia para relaxar quando lhe dava na veneta.
Quando Hércules partiu para a batalha insana
Euristeu riu com gosto da futura morte do rival
diante da fera abençoada com garras de navalha
e couro invulnerável a qualquer arma humana.
Ansioso para lavar o pecado mortal, Hércules partiu
e estando no meio de um prado de oliveiras
arrancou o tronco da árvore de madeira mais pesada
e fez com ela a maior clava que o mundo já viu.
Cruzou florestas e subiu colinas aos montes
à caça do tal leão que sabia ser matreiro
campeão de tocaia com passos de veludo,
que antes de se deixar ver, via primeiro.
Até que um tremor não deixou ave pra remédio
seguido do rugido de dez trovões conjugados.
Hércules seguiu o urro e do alto de uma leve colina
a criatura sonolenta o olhava com grande tédio.
O leão curioso nem piscou ao vê-lo retesar o arco
e soltar a flecha capaz de atravessar pedras.
Deixou que a seta esbarrasse o seu peito farto
e afastou-se dali como incomodado por uma mosca.
Vendo que o animal só aceitava as próprias brigas
Hércules o seguiu sorrateiro, até achar sua toca.
O leão sumiu e ele pensou que era magia,
até ver a malandragem: a gruta tinha duas saídas.
Com a formidável clava de tronco maciço
causou uma avalanche de grandes rochas
para cortar a rota de fuga do malandro bicho
e deixá-lo a ponto de aceitar a peleja.
Esperou com paciência que o leão retornasse
de uma de suas refeições de carne crua.
Entrou rápido na gruta, mas, em vez do efeito surpresa,
viu os olhos luminosos do leão da Lua.
O breu se fez quando o animal deu-lhe as costas
e foi tranquilo para a porta de emergência.
Hércules quase caiu de costas com a raiva do urro
quando da rota obstruída o leão teve ciência.
Com passos firmes e sangue na vista acesa
a fera decidiu finalmente enfrentar o intruso.
Veio para Hércules como quem cobiça a sobremesa
vendo no escuro tudo o que o herói só imagina.
Hércules testou a lança que o deus presenteara
mas a arma esbarrou no flanco do bicho como um graveto.
Usando a cabeça, entendeu que tanta armadura
deveria por certo proteger um miolo de carne e osso.
À meia luz da entrada da caverna, mirou o adversário,
um caçador nato, cauteloso, músculos de aço.
Com gestos debochados chamou-o para a luta,
não sem antes ter a clava ao alcance do braço.
O leão rodou o ringue e deixou Hércules nas cordas
fechando-lhe o escape com o corpo de bruta besta.
Habituado a nocautes rápidos, partiu para cima
e levou um tronco de árvore no meio da testa.
O animal tonteia da pancada e, surpreso, falha.
Vacila por um segundo desconhecendo onde estava
e antes que pudesse retomar o controle da batalha
um mata-leão hercúleo roubou-lhe o oxigênio.
A fera poderosa cobrou caro pelas sete vidas
ralou o herói na areia, bateu com ele nas rochas
e passaram-se horas dolorosas e cansativas
até aceitar que sua alma rumara ao Hades.
Hércules puxou o bicho para o claro e, ao vê-lo,
resolveu fazer da sua pele um manto invulnerável
Mas nem a lâmina feita nas forjas de Vulcano
conseguiu arrancar sequer um pelo.
Matutou horas até que teve a ideia luminosa:
usou as próprias garras do animal para escalpelá-lo.
Vestido com seus troféus voltou para Micenas
para testemunhar o cumprimento da tarefa.
Mas Euristeu olhando lá de cima da muralha
desmaiou de medo ao ver os restos do leão
e ao voltar a si complementou sua covardia
ao proibir Hércules de passar do portão.
Mas, como o povo aclamava o herói, o canalha
teve de dar por cumprida a primeira tarefa,
enquanto imaginava outra pior para a sequência
sem saber que Hera lhe assoprava na orelha.
O povo de Nemeia ficou livre do gato manhoso
e reservou aquele dia para jogos em honra a Zeus.
E o deus dos deuses, para eternizar o tinhoso
Hércules, incluiu o leão entre as constelações.
O herói misturou-se ao povo simples que amava
antes de partir para as penitências que o fariam um deus.
Mas lá no céu, indiferente às hecatombes, vigiava,
maior que a galáxia, o olhar de Hera, a mulher injuriada.
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