Nos anos 80 foi lançado no Brasil um livro que tinha esta epígrafe tirada do Fausto de Goethe: “-…mas, quem é você, afinal? – Sou a parte da força que quer sempre o mal, mas sempre faz o bem”.
Era o romance “O Mestre e Margarida”, escrito nos anos 30 por Mikhail Bulgákov, um médico ucraniano que combateu os bolcheviques na guerra civil. Naquele contexto de queda do Muro de Berlin e fim do comunismo, o livro fez um grande sucesso na minha geração por tratar da presença do demônio e seus asseclas numa Moscou em pleno governo de Stalin. Mas por que resenhar uma obra lançada há tanto tempo? É que “O Mestre e Margarida” voltou à tona com toda força em janeiro deste ano, quando um filme baseado no livro estreou em Moscou. Deu no New York Times: “A vida imita a arte e ‘O Mestre e Margarida’ agita a Rússia”. E mais: “Foi uma das estreias mais dramáticas e carregadas da história russa recente”.
O filme é uma superprodução de 17 milhões de dólares, dos quais 7 milhões vieram do Estado e que teve 5,5 milhões de espectadores até agora. O triunfo foi intensificado pelas palmas ao fim de várias sessões.
Em artigo de 6/4/2024, o colunista Mário Sérgio Conti escreveu: “Como tudo em torno do Beiçudo, a feitura do filme parece saída de um breviário de magia negra. Seu diretor, Michael Lockshin, é um norte-americano criado em Moscou. Em 1986, quando cientistas soviéticos fugiam para o Ocidente, o pai de Lockshin engatou marcha à ré: comunista, refugiou-se com a família em Moscou e denunciou o assédio do FBI.
O diretor topou adaptar o romance porque o amava desde a adolescência. Ao que parece, seu filme enfatiza a perseguição a um escritor refratário ao regime – um tema não muito do agrado de Putin. Mesmo assim, “O Mestre e Margarida” foi adiante; era a adaptação de um clássico que nada teria a dizer ao presente.
Deu-se a balalaika: a Rússia invadiu a Ucrânia, a coerção à intelligentsia se acentuou e o lançamento do filme foi adiado. O desconforto cresceu porque o melífluo Lockshin, de volta à sua casa em Los Angeles, foi às redes sociais apupar Putin e apoiar a Ucrânia.
Não se sabe por que diabos, o filme estreou, embora sem propaganda nem divulgação. Mas, para fúria do Kremlin, levou uma legião de diabretes ao cinema. Putin, versado nas sanhas do Pata-de-Bode, deve ter mandado para o quinto dos infernos os burocratas que o liberaram.
A balalaika virou sabá das feiticeiras: serviçais de Putin na imprensa e na televisão desancaram o filme, xingando-o de antirrusso. O sucesso de uma obra financiada e atacada por um mesmo regime configura o que Lênin, outra encarnação do Demo, chamava de contradições do sistema.
O derradeiro paradoxo é que o filme “antirrusso” só pode ser visto na Rússia, porque as autoridades luciferinas proibiram sua exportação. Mas o que resta é ótimo – o magma de sortilégios do romance de Bulgákov. É nele que o Capiroto proclama, ao saber que o Mestre pôs fogo em seus escritos sobre Pilatos: “Manuscritos não queimam”. O de “O Mestre e Margarida”, de fato, escapou aos lança-chamas de Stálin e Putin. O fogo nada pode contra a arte à vera, a negativa, a de Belzebu e Bulgákov.”
Já que Putin proibiu a exportação do filme, podemos nos vingar lendo ou relendo o livro. Há duas traduções dele na praça, a de Irineu Franco Perpetuo, da Editora 34, e a de Zoia Prestes (filha do nosso capitão), da Alfaguara. Mas, não conte pra ninguém: o serviço de espionagem da coluna Frente Fria já descobriu que existe uma cópia da primeira parte do filme no YouTube legendado para o português, clique aqui para ver: https://www.youtube.com/watch?v=Mn_Ykzyl3I4.
Seu enredo lembra um pouco “Alice no País das Maravilhas”, mas é demoníaco: um gato enorme fala como se fosse um bobo da corte, uma bruxa nua sobe às nuvens numa vassoura voadora, seguida por outra montada num porco castrado e alado, uma vampira crava os caninos num burocrata e por aí vai. O livro tem muitas tramas, que são centradas numa visita do Diabo a Moscou no início da década de 1920, em plena era stalinista.
Mikhail Bulgákov, que foi jornalista e literato, escreveu sua obra máxima em segredo, durante 12 anos. Um primeiro manuscrito foi destruído em março de 1930 pelo autor, que o queimou em um forno, quando soube que outro livro seu, de conteúdo cabalístico (Кабала святош), havia sido banido. O trabalho foi recomeçado em 1931, e em 1935 Bulgakov foi a um Festival de Primavera que teria inspirado o baile do livro. A segunda versão foi terminada em 1936, e nesse ponto todas as tramas do romance já existiam. O terceiro rascunho terminou em 1937. O escritor parou de trabalhar na quarta versão em 1940, quatro semanas antes de sua morte. O trabalho foi completado por sua esposa em 1940-41. Sabendo do perigo que tinha guardado no armário, a viúva o escondeu até 1967, quando alguns trechos, com as partes mais polêmicas expurgadas, foram publicados numa revista. A primeira edição integral saiu na União Soviética em 1973, sendo distribuída em cópias clandestinas. Em 1989, a especialista Lidiya Yanovskaya compôs uma nova versão oficial, com base em manuscritos do autor. Algumas das tramas do livro já haviam aparecido em contos de Bulgakov.
O apartamento antigo do escritor, no qual se passa parte da trama, virou local de culto desde os anos oitenta e posteriormente foi convertido em museu. Em 22 de dezembro de 2006, o Museu Bulgákov foi vandalizado por fanáticos religiosos que alegavam ser “O Mestre e Margarida” um romance satanista.
Enredo
A Moscou de 1929 é visitada pelo Diabo, sob o nome de Woland. Em seu séquito estão Koroviev, o enorme gato negro Behemot, Azazello, Abadon e a bruxa Hella, personagens que vão entrando aos pouco na história.
Primeira parte
Começa com uma conversa entre o presidente da MASSOLIT (abreviação em estilo soviético para sociedade moscovita de literatura para as massas), Mikhail Aleksandrovic Berlioz e o poeta Ivan Nikolaevitch Poniriev, que responde pela alcunha Bezdomni, que em russo, significa “sem casa”. O assunto da conversa é um poema anti religioso escrito por Bezdomni. Berlioz lhe diz que, apesar de satírico, o poema deixa crer que Jesus Cristo existiu, embora isso nunca tenha sido provado.
Nesse ponto, um estrangeiro, professor de magia negra que fará um espetáculo em Moscou, entra na conversa. Esse é Woland, que diz para os escritores que Jesus existiu sim, e que ele estava presente a seu processo. Segue-se um longo capítulo do livro em que Woland conta a história de Yeshua Ha-Nozri (Jesus de Nazaré) e Pôncio Pilatos, com ênfase no segundo personagem.
O romance trata da luta entre o bem e o mal, inocência e culpa, racional e irracional, ilusão e o real, examinando temas como a responsabilidade frente a verdade quando a autoridade tenta negá-la e a liberdade de espírito num mundo que não é livre.
Há diversas possibilidades de leitura do livro, como comédia de humor negro, como profunda alegoria místico-religiosa, como mordaz sátira da Rússia soviética, mas também da superficialidade das pessoas em geral. Apesar disso, não há nostalgia quanto à Rússia tsarista, que só é mencionada uma vez, pelo próprio diabo.
Woland não é visto em aberta oposição a deus, mas como o ser que pune a mesquinhez e a covardia (é frequentemente dito no livro que a covardia é a pior das fraquezas). A cena em que ele faz uma sessão de magia negra para um grande teatro lotado de moscovitas é uma das mais famosas do livro e não merece um spoiler.
Segunda Parte
A segunda parte começa com esta epígrafe: “Venha comigo, leitor! Quem lhe disse que não existe no mundo o verdadeiro, o fiel, o eterno amor? Pois que cortem a língua deste mentiroso infame!”
O Mestre surge misteriosamente num sanatório em que está internado o poeta Bezdomni e conta a mesma história de Woland sobre Pôncio Pilatos. Na verdade, o Mestre é que tinha escrito um livro sobre este assunto e acabou entrando em desgraça com a crítica literária moscovita que o interna neste sanatório e o obriga a queimar o que tinha escrito. A mais famosa citação do livro é “os manuscritos não queimam” (рукописи не горят). Ela faz referência a censura da União Soviética dos anos trinta, e tem cunho autobiográfico.
Quando estava escrevendo os manuscritos, o Mestre conhece Margarida, uma mulher infeliz no casamento com um engenheiro, e acabam se apaixonando. Quando o Mestre desaparece sem deixar aviso, Margarida entra em depressão, só esperando o momento de revê-lo.
Certo dia, ela passeia perto do Kremlin e é abordada por Azazello, um dos comparsas do Diabo. Ele conversa com ela e diz que Margarida pode rever seu amante, se encontrar um estrangeiro naquela noite e que para isto, ela deve passar um creme, dado por ele, por todo seu corpo e esperar por novo contato, a ser feito às dez horas da noite.
Margarida passa o creme, que a transforma em uma bruxa, e voa invisível por Moscou sobre uma vassoura. Destrói o apartamento de um dos críticos que acabou com a carreira do Mestre, e voa para a Sibéria. Então, Margarida volta a Moscou e aceita a proposta de Koroviev, de ser a anfitriã de Woland no “Baile dos Cem Reis”, ou Noite de Walburga, outra inspiração de “O Fausto”. Os convidados morto vivos saem em fileiras da grande lareira do castelo pra cumprimentar a “Rainha Margot”: os homens vestidos de fraques e as mulheres nuas, com um pena negra sobre as cabeças. Margarida consegue se sair bem no baile e Woland lhe diz que passou no teste; lhe traz de volta o amante e lhes manda ao porão em que começaram o romance. Ou seja, temos um “happy end” que faz jus à epígrafe do livro.
Epílogo
O poeta Ivan Bezdomni sai do hospício e passa a viver com relativa normalidade, sendo atormentado por visões e lembranças todo plenilúnio de primavera.
Bulgákov usa estilos diferentes em cada trecho do livro. Os capítulos que se passam em Moscou têm um ritmo vivo e um tom de farsa, enquanto os capítulos de Jerusalém estão escritos em estilo hiper-realista. O tom muda do jargão dos burocratas soviéticos para o sarcasmo, o inexpressivo, o lírico, conforme a cena. Às vezes o narrador é onisciente e às vezes põe o leitor como parte da cena. Diversos personagens são, em determinados momentos, o centro da cena, o que é visto como influência de Tolstói. O romance também emprega elementos de horror macabro.
Woland é uma variante alemã para Diabo, utilizada nos originais do Fausto de Goethe. Abaddon é um demônio cujo nome significa destruição. Azazello vem de Azazel, nome hebraiico que significa “a força de Deus”. Vários mitos o colocam como senhor das cabras. Azazel foi traduzido como “bode expiatório” na Bíblia do Rei James. Bieguemot é um mostro bíblico que muitos identificam com o hipopótamo. Sem dúvida, este gato é um dos personagens mais interessantes da literatura moderna.
Em suma, estas são algumas dicas para você se instruir, se admirar, se assustar ou se deliciar com “O Mestre e Margarida”.
Leia outras colunas Frente Fria aqui.
1 Comentário
Viralobos é suco de cultura. Depois de ler a matéria, o filme fica muito instigando…o elenco é bem interessante!